Ágio por expectativa de rentabilidade nas empresas com patrimônio líquido negativo
Danielle Bertagnolli
O ano de 2021 foi histórico no Brasil e no mundo para o cenário das fusões e aquisições. Considerado como o melhor ano da história em M&As (merges and acquisitions), o valor global das negociações ultrapassou a marca de US$ 5 trilhões [1]. No Brasil, pesquisas apontaram ter sido movimentado o montante de R$ 595 bilhões em 2.560 operações realizadas ao longo do ano, representando um aumento de 143% em relação ao volume de negócios de 2020 [2]. Para 2022, a expectativa é que sejam movimentados globalmente até US$ 4,7 trilhões [3].
Quando se fala em fusões e aquisições, imediatamente vem em mente o cenário jurídico do ágio, juntamente com as diversas discussões que o permeiam. Uma dessas discussões diz respeito ao tratamento jurídico-tributário a ser dispensado quando a empresa adquirida possui patrimônio líquido negativo, ou seja, quando o valor total do passivo supera o montante dos ativos. Surge, então, a questão: qual valor deverá ser considerado como ágio por expectativa de rentabilidade futura (goodwill) para fins de dedução do imposto de renda?
De acordo com o enunciado nº 15 do Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), a sociedade investidora deve realizar a alocação do preço de aquisição ao valor justo líquido dos ativos identificáveis adquiridos e dos passivos assumidos, a fim de que apenas o valor residual seja tratado como ágio por rentabilidade futura (goodwill), ou seja, será contabilizada como rentabilidade futura a diferença entre o valor pago, o valor justo e a proporção do capital adquirido do PL.
Entende-se por valor justo “o preço que seria recebido pela venda de um ativo ou que seria pago pela transferência de um passivo em uma transação não forçada entre participantes do mercado na data de mensuração” [4] (CPC nº 46). Ou seja, de acordo com o CPC nº 46, o valor justo é considerado sempre na perspectiva de mercado, independente da destinação que será dada ao ativo. Especificamente em relação à mensuração do ágio, o CPC nº 15 estabelece que “o adquirente deve reconhecer, separadamente do ágio por expectativa de rentabilidade futura (goodwill), os ativos identificáveis adquiridos, os passivos assumidos e quaisquer participações de não controladores na adquirida” [5].
Da análise conjunta dos CPCs mencionados e da redação atual do artigo 20 do Decreto-Lei nº 1.598/1977, depreende-se que a avaliação do investimento deve seguir três etapas: num primeiro momento, define-se o valor do patrimônio líquido da sociedade investida; posteriormente, avaliam-se a os ativos e passivos a valor justo (mais ou menos-valia); por fim, chega-se à existência de ágio ou deságio na operação de investimento. Portanto, o ágio depende de um simples cálculo aritmético: deduz-se do preço o montante do patrimônio líquido, ajustado pela mensuração do seu valor justo, e ao que “sobrar” será atribuída a condição de ágio pela expectativa de rentabilidade futura.
As dúvidas surgem quando, na apuração do patrimônio líquido da sociedade investida, as dívidas superam os ativos e, portanto, a investida possui valor de patrimônio líquido negativo. Veja-se, por exemplo, a situação de uma sociedade A que possui ativos no valor total de R$ 1 milhão e passivos de R$ 1,5 milhões, de modo que seu patrimônio líquido é negativo em R$ 500 mil. No cenário de uma negociação, em que a sociedade A seja integralmente adquirida pela sociedade B pelo valor total de R$ 2,5 milhões, esta se comprometendo a quitar as dívidas existentes, qual será o preço de aquisição do patrimônio líquido, ajustado pela mais ou menos-valia? Quanto será o ágio registrado no ativo da sociedade B?
O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) já se pronunciou a respeito do tema, proferindo o acórdão nº 1201-003.693. No caso analisado pelo Carf, a aquisição da empresa investida pela empresa investidora deu-se em diversas etapas, utilizando-se de outras empresas-veículo. Em uma dessas etapas, considerando que a empresa-veículo se encontrava com patrimônio líquido negativo, a investidora fez aportes financeiros por meio de aumentos do capital social, os quais foram posteriormente deduzidos como uma parcela do ágio. Todavia, não se pode deixar de considerar que tanto a realização de aporte pela empresa investidora no capital social da empresa investida, quanto o cenário de que a empresa investidora assume a responsabilidade pela quitação de dívidas da empresa investida implicam em necessário desembolso de caixa pela empresa investidora.
Voltando ao exemplo antes exposto, para que pudesse adquirir a empresa A (investida), a empresa B (investidora) quitou dívidas no montante de R$ 1,5 milhões. E, independentemente da maneira como isso tenha ocorrido, necessariamente implicou em desembolso de caixa pela investidora. Na análise do Carf, esse valor não pode ser considerado como ágio, pois “apesar de o saneamento contábil e financeiro da empresa adquirida ser importante para a continuidade do seu negócio, este saneamento não fez parte do negócio jurídico que gerou o ágio, ou seja, a aquisição” [6]. Contudo, e se, diferentemente da situação analisada pelo Carf, a quitação das dívidas da empresa investida, resultando na reversão do seu patrimônio líquido de negativo para positivo, fizesse parte do negócio jurídico de investimento? Em outras palavras, se as partes acordassem que parte do preço pago pela aquisição da participação societária seria destinado ao pagamento do passivo (até o limite do ativo)?
Nesse cenário, parece-nos haver duas hipóteses distintas: a) de um lado, é possível considerar que o investimento foi feito enquanto a empresa investida ainda tinha patrimônio líquido negativo, ocorrendo a quitação dos débitos e, posteriormente, a consequente reversão do patrimônio líquido para positivo num evento posterior à conclusão da aquisição e, consequentemente, à apuração do ágio; b) por outro lado, o pagamento dos débitos pela empresa investidora e consequente reversão do patrimônio líquido da investida de negativo para positivo fez parte do acordo negocial, compondo o preço de aquisição da participação societária.
Em qualquer hipótese, não se está diante de situação envolvendo ágio. O ágio, tal como preceitua o inciso III, do artigo 20, do Decreto-Lei nº 1.598/1977, “corresponde à diferença entre o custo de aquisição do investimento e o somatório dos valores de que tratam os incisos I [valor do patrimônio líquido] e II [mais ou menos-valia] do caput”. Assim, sob qualquer dos pontos de vista por meio dos quais se analise a questão, o investimento na empresa com patrimônio líquido negativo deverá ser considerado como parte do preço pago na operação societária, não se confundindo com o ágio nela existente.
[1] Informação divulgada pela CNN Brasil, disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/business/fusoes-e-aquisicoes-globais-batem-recorde-e-chegam-a-us-5-trilhoes/; acesso em: 23 out. 2022.
[2] Informação divulgada pela Bloomberg Línea, disponível em: https://www.bloomberglinea.com.br/2022/02/06/os-10-escritorios-de-advogados-que-dominaram-fusoes-e-aquisicoes-no-brasil/; acesso em: 23 out. 2022.
[3] Informação divulgada pela Exame Invest, disponível em: https://exame.com/invest/mercados/mercado-de-fusoes-e-aquisicoes-pode-alcancar-us-47-trilhoes-em-2022-preve-bain/; acesso em: 26 out. 2022.
[4] Item 9, disponível em: http://www.cpc.org.br/Arquivos/Documentos/395_CPC_46_rev%2014.pdf; acesso em: 2 mar. 2022.
[5] Item 10, disponível em: http://www.cpc.org.br/Arquivos/Documentos/235_CPC_15_R1_rev%2019.pdf; acesso em: 2 mar. 2022.
[6] Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, acórdão nº 1201-003.693, processo administrativo nº 16561.720071/2018-44, p. 5.942
Danielle Bertagnolli
Advogada tributarista na Carpena Advogados Associados.