Os tributos e a igualdade concorrencial
Társis Nametala S. Jorge e Viviane Matos G. Perez – Recentemente o informativo do Supremo Tribunal Federal (STF) publicou, ainda em caráter pré-oficial, uma decisão proferida em uma ação cautelar que traz à discussão um assunto cujas sutilezas por vezes escapam à análise cotidiana: as influências das normas tributárias sobre a livre circulação de bens e riquezas e, mais especificamente, da liberdade de concorrência.
Nos autos da referida ação, a empresa autora alegava que o cancelamento de seu registro especial como contribuinte efetuado pela Receita Federal, com base no artigo 2º, inciso II do Decreto-lei nº 1.593, de 1977, por descumprimento de obrigação tributária significava, entre outras coisas, afronta à jurisprudência do próprio Supremo, já cristalizada, inclusive, na Súmula nº 70, que estabelece que “é inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo”; na Súmula nº 323, que prevê que “é inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”; e na Súmula nº 547, que diz que “não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais”.
As súmulas refletem uma preocupação não somente com o excesso de poder passível de ser praticado pelo fisco em suas investidas fiscais, mas também – o que mais nos interessa aqui – um viés de proteção à livre concorrência.
Por outro lado, é conhecida a lição tributária acerca do fenômeno que denominamos de extrafiscalidade tributária, que, em termos simples, significa exatamente os efeitos da norma tributária que extravasam a mera arrecadação, como ocorre com os impostos de importação e de exportação. O mesmo pode ser dito com relação a incentivos fiscais concedidos no âmbito, por exemplo, do ICMS – respeitadas, evidentemente determinadas normas, para se evitar a chamada guerra fiscal entre os Estados.
A decisão do Supremo percebe a influência poderosa que o IPI possui sobre o equilíbrio das forças do mercado
Ocorre, no entanto, que fora das hipóteses admitidas pelo nosso sistema jurídico, os tributos somente devem ter função arrecadatória, devendo primar pela neutralidade tributária. Ou seja, os tributos não podem criar (1) nem embaraços à atividade de produção e circulação de mercadorias e serviços que cheguem ao ponto de torná-la extremamente onerosa ou mesmo impossibilitá-la; (2) nem estabelecer, ainda que por via indireta, distinções entre concorrentes, sob pena de subverter o princípio da igualdade concorrencial.
No caso que serviu de mote às presentes considerações, exatamente pautando-se neste equilíbrio é que o Supremo optou por negar o pedido efetuado pelo contribuinte. De acordo com o que resta descrito no já citado informativo, sobressaem as linhas seguintes: tendo em conta a singularidade factual e normativa do caso, entendeu-se faltar razoabilidade jurídica ao pedido, salientando-se que poderia haver “periculum in mora” inverso, consistente na exposição dos consumidores, da sociedade em geral e, em particular, da condição objetiva da livre concorrência ao risco da continuidade do funcionamento de empresa para tanto inabilitada.
Mais adiante, consignou-se no acórdão que haveria justificativa extrafiscal para a exigência da regularidade tributária, que, em princípio, à vista das características do mercado concentrado da indústria de cigarros, seria proporcional e razoável. Afirmou-se que o IPI é rubrica preponderante no processo de formação do preço do cigarro, produto extremamente gravoso à saúde e tributado pela mais alta alíquota deste imposto, e que a diferença a menor no seu recolhimento tem reflexo superlativo na definição do lucro da empresa. Considerou-se, diante das características do mercado de cigarros, que tem na tributação dirigida um dos fatores determinantes do preço do produto, ser compatível com o ordenamento limitar a liberdade de iniciativa em prol de outras finalidades jurídicas tão ou mais relevantes, como a defesa da livre concorrência.
Encômio merece, portanto, a decisão do Supremo, percebendo a influência poderosa que, no caso, a tributação do IPI possui sobre o equilíbrio das forças competitivas do mercado.
Társis Nametala Sarlo Jorge e Viviane Matos González Perez são, respectivamente, procurador federal da Advocacia Geral da União (AGU) e coordenador do LLM em direito corporativo do Ibmec do Rio de Janeiro; e procuradora do município de São Gonçalo, professora do LLM em direito corporativo do Ibmec do Rio de Janeiro e sócia do escritório Alves, González, Martinelli & Jorge Associados
Nos autos da referida ação, a empresa autora alegava que o cancelamento de seu registro especial como contribuinte efetuado pela Receita Federal, com base no artigo 2º, inciso II do Decreto-lei nº 1.593, de 1977, por descumprimento de obrigação tributária significava, entre outras coisas, afronta à jurisprudência do próprio Supremo, já cristalizada, inclusive, na Súmula nº 70, que estabelece que “é inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo”; na Súmula nº 323, que prevê que “é inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”; e na Súmula nº 547, que diz que “não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais”.
As súmulas refletem uma preocupação não somente com o excesso de poder passível de ser praticado pelo fisco em suas investidas fiscais, mas também – o que mais nos interessa aqui – um viés de proteção à livre concorrência.
Por outro lado, é conhecida a lição tributária acerca do fenômeno que denominamos de extrafiscalidade tributária, que, em termos simples, significa exatamente os efeitos da norma tributária que extravasam a mera arrecadação, como ocorre com os impostos de importação e de exportação. O mesmo pode ser dito com relação a incentivos fiscais concedidos no âmbito, por exemplo, do ICMS – respeitadas, evidentemente determinadas normas, para se evitar a chamada guerra fiscal entre os Estados.
A decisão do Supremo percebe a influência poderosa que o IPI possui sobre o equilíbrio das forças do mercado
Ocorre, no entanto, que fora das hipóteses admitidas pelo nosso sistema jurídico, os tributos somente devem ter função arrecadatória, devendo primar pela neutralidade tributária. Ou seja, os tributos não podem criar (1) nem embaraços à atividade de produção e circulação de mercadorias e serviços que cheguem ao ponto de torná-la extremamente onerosa ou mesmo impossibilitá-la; (2) nem estabelecer, ainda que por via indireta, distinções entre concorrentes, sob pena de subverter o princípio da igualdade concorrencial.
No caso que serviu de mote às presentes considerações, exatamente pautando-se neste equilíbrio é que o Supremo optou por negar o pedido efetuado pelo contribuinte. De acordo com o que resta descrito no já citado informativo, sobressaem as linhas seguintes: tendo em conta a singularidade factual e normativa do caso, entendeu-se faltar razoabilidade jurídica ao pedido, salientando-se que poderia haver “periculum in mora” inverso, consistente na exposição dos consumidores, da sociedade em geral e, em particular, da condição objetiva da livre concorrência ao risco da continuidade do funcionamento de empresa para tanto inabilitada.
Mais adiante, consignou-se no acórdão que haveria justificativa extrafiscal para a exigência da regularidade tributária, que, em princípio, à vista das características do mercado concentrado da indústria de cigarros, seria proporcional e razoável. Afirmou-se que o IPI é rubrica preponderante no processo de formação do preço do cigarro, produto extremamente gravoso à saúde e tributado pela mais alta alíquota deste imposto, e que a diferença a menor no seu recolhimento tem reflexo superlativo na definição do lucro da empresa. Considerou-se, diante das características do mercado de cigarros, que tem na tributação dirigida um dos fatores determinantes do preço do produto, ser compatível com o ordenamento limitar a liberdade de iniciativa em prol de outras finalidades jurídicas tão ou mais relevantes, como a defesa da livre concorrência.
Encômio merece, portanto, a decisão do Supremo, percebendo a influência poderosa que, no caso, a tributação do IPI possui sobre o equilíbrio das forças competitivas do mercado.
Társis Nametala Sarlo Jorge e Viviane Matos González Perez são, respectivamente, procurador federal da Advocacia Geral da União (AGU) e coordenador do LLM em direito corporativo do Ibmec do Rio de Janeiro; e procuradora do município de São Gonçalo, professora do LLM em direito corporativo do Ibmec do Rio de Janeiro e sócia do escritório Alves, González, Martinelli & Jorge Associados