O cancro social da sonegação tributária
Na excelente obra “D. Pedro II”, de José Murilo de Carvalho, este, ao narrar o envolvimento do biografado com a abolição da escravatura, iniciando com o episódio da aprovação da Lei do Ventre Livre, conta-nos que o nosso imperador encomendara ao senador Pimenta Bueno, o grande constitucionalista do império, que redigisse projetos de lei abolicionistas. Nas discussões públicas que se seguiram, liberais, conservadores e republicanos atacaram com vigor o projeto do então visconde de São Vicente, acusando-o de ir de encontro aos mais elevados interesses nacionais. Ilustra o historiador mineiro: “o jornal A República combateu o projeto por ser de iniciativa imperial e não das câmaras; fora elaborada nas ‘trevas do palácio’, à revelia da nação. Voltaram também as acusações de despotismo dirigidas ao Poder Moderador. A se dar crédito às posições dos críticos, inclusive republicanos, o abolicionismo era o despotismo, o escravismo era a democracia”. O cancro social da escravidão já nos deixou há mais de um século. Não podemos dizer o mesmo da sonegação tributária, que tem acompanhado todos os passos do nosso país. Por mais chocante que possa parecer aos mais sensíveis, não é desarrazoado traçarmos um paralelo entre o descompasso das classes dirigentes de então, em face do esforço abolicionista proveniente do Palácio de São Cristóvão, com a repulsa que medidas que visam combater a sonegação recebem de certos setores da atual sociedade organizada. Lamentavelmente, sempre que o Poder Executivo buscou dotar o fisco de instrumentos para identificar e punir os sonegadores, submetendo ao Poder Legislativo projetos de lei nesse sentido, a reação de vários segmentos da sociedade brasileira tem sido similar ao narrado no parágrafo anterior: o combate à sonegação dotado de instrumentos eficazes é o despotismo, a ampla e irrestrita liberdade para sonegar ou evitar a fiscalização é a democracia.