Carregamento de carro elétrico gera disputa entre Estados e municípios
Por Marcela Villar — De São Paulo
A oferta de pontos de carregamento de veículos elétricos gerou uma nova disputa entre Estados e municípios. Os governos de São Paulo, Santa Catarina e Minas Gerais entendem como válida a cobrança de ICMS sobre o serviço. A interpretação está em recentes soluções de consulta. O município de São Paulo, por sua vez, defende a incidência do ISS, conforme nota enviada ao Valor.
Segundo tributaristas, não deve haver dupla tributação sobre a atividade. Na visão deles, o entendimento dos Estados nas soluções de consulta vai contra resolução da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) que classifica a recarga como prestação de serviço e não venda de mercadoria. Ou seja, deveria incidir apenas o ISS. Também contraria anexo da Lei Complementar (LC) nº 116/2003, que criou o tributo municipal.
A maioria das empresas, ainda de acordo com advogados, tem se ancorado nessas previsões legais para recolher o ISS ao invés do ICMS. Além de mais simples, por não ser um imposto cumulativo como o estadual, a carga tributária é significativamente menor: varia de 2% a 5% sobre o valor cobrado dos contribuintes, enquanto o segundo tem alíquota, em média, de 18% a 21%.
Foram emitidas duas soluções de consulta pela Secretaria da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo (Sefaz-SP). Ambas permitem a tomada de crédito de ICMS sobre a operação, o que reduz o custo para a empresa na cadeia produtiva. Porém, com a reforma tributária, as companhias têm evitado acumular créditos, pela dificuldade de ressarcimento. A boa notícia é que o novo sistema tributário deve resolver o impasse federativo a partir de 2033, pois o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) substituirá totalmente os dois impostos.
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Os contribuintes que questionam o Fisco paulista são postos de gasolina – um ainda não começou a oferecer o serviço e o outro já o oferece a clientes. A cobrança é normalmente feita por hora de uso, além de uma tarifa fixa. A dúvida das empresas era justamente se incide o ICMS ou ISS sobre a operação.
Estado não deveria exigir o ICMS porque já é cobrado na etapa anterior”
— Leonardo Battilana
Isso porque na Resolução Normativa nº 819/2018, a primeira sobre o assunto, a Aneel classificou a recarga de veículos elétricos como uma prestação de serviço. Mas por ter caráter regulatório, não gera efeitos tributários. Já a LC nº 116/2003 exemplifica “carga e recarga” de máquinas e veículos e outros aparelhos, de forma genérica, na lista de anexo de atividades entendidas como serviço para fins de incidência do ISS.
Para advogados, as soluções de consulta estaduais não esclarecem totalmente o assunto, pois não há interpretação formal dos municípios acerca da matéria. Eles acreditam que o tema seja decidido pelo Judiciário, como ocorreu em outros casos de conflitos entre os entes federativos sobre quem é responsável pela cobrança de impostos – como na tributação de software e medicamentos prontos e manipulados.
Até lá, a orientação dos advogados é continuar com o modelo de operação praticado e esperar uma possível autuação do Fisco estadual, pois há argumentos jurídicos para questionar a cobrança. “Esses pronunciamentos vão movimentar o Judiciário porque existem dois entes se dizendo competentes para cobrar o tributo. Então o Judiciário deve resolver esse conflito que é da natureza do federalismo tributário”, diz Gabriel Baccarini, sócio no Cascione Advogados.
Nas respostas, a Sefaz-SP diz que a Constituição Federal de 1988, no artigo 155, estabelece a competência dos Estados e do Distrito Federal para tributar impostos sobre a circulação de mercadorias. Lembra que no texto constitucional há a previsão que nenhum outro imposto pode incidir sobre operações relativas à energia elétrica.
Na visão do órgão, isso significa que “somente o ICMS pode incidir sobre as operações relativas à circulação da energia elétrica, assim caracterizada como mercadoria”. Cita julgamento de mais de 30 anos atrás em que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) caracterizou a energia elétrica como mercadoria, pois ela “é produzida para ser alienada (operação de mercancia), sem impeço para ser identificada como mercadoria, conceituação privada, admitida pela lei tributária” (REsp 38344).
Por isso, para a secretaria, também incide o imposto no fornecimento de energia elétrica para veículos. Ela orienta ainda que a nota fiscal deve ser emitida antes da “saída da mercadoria (venda de energia) conforme o inciso I do artigo 125 do RICMS/2000, c/c artigo 40 da Portaria CAT 162/2008”. Como o imposto virá destacado na nota, o contribuinte pode tomar crédito sobre esse valor.
Em Minas Gerais, a Solução de Consulta nº 35/2025 teve o mesmo entendimento, assim como em Santa Catarina, na Consulta à Comissão Permanente de Assuntos Tributários (Copat) nº 76/2024.
Já a Secretaria Municipal da Fazenda de São Paulo, em nota ao Valor, diz entender que “a operação de carga e recarga de veículos elétricos configura prestação de serviço, estando, portanto, sujeita ao ISS, nos termos da legislação vigente”. O órgão também cita a Resolução nº 1000/2021, da Aneel, para reforçar a interpretação de que “a atividade de carga e recarga de veículos elétricos deve ser tributada exclusivamente pelo ISS, conforme a legislação consultada”.
“A atividade em questão é devidamente enquadrável no subitem 14.01 da Lista de Serviços anexa à Lei Complementar nº 116/2003. Com base nesse entendimento, os prestadores de serviço de recarga de veículos elétricos já estão emitindo, de maneira regular, a Nota Fiscal de Serviços Eletrônica (NFS-e), conforme estipulado pela legislação municipal”, afirma o órgão.
Segundo o tributarista Leonardo Battilana, sócio do Veirano Advogados, as empresas têm muitas dúvidas sobre como tributar a operação. Para ele, deveria incidir apenas o tributo municipal. “Os eletropostos são unidades consumidoras de energia elétrica e o ICMS já foi cobrado para a unidade geradora. Então o Estado não deveria exigir o ICMS porque já é cobrado na etapa anterior.”
Na visão dele, a própria Lei Complementar nº 116 não é tão clara. “É uma lista antiga e fala das expressões carga e recarga de forma genérica. A princípio, não seria hipótese para tributação de ISS. Mas, se for para tributar algo, o mais próximo seria o ISS do que o ICMS”, diz. “A falta de clareza vai acabar gerando contencioso”, conclui.
Para Anderson Mainates, do Cascione Advogados, o maior problema para as empresas é a dúvida. “O contribuinte fica sem saber para qual ente recolhe e essa briga entre Estados e municípios, na prática, foi gerada porque cada um quer aumentar a arrecadação”, afirma. “Essa situação tributária é a pior possível. Seja qual tributo for, o mercado se adapta. O problema é a dúvida.”