Carf adota tese do STF e derruba multa de R$ 5,2 milhões aplicada pela Receita
Por Marcela Villar — De São Paulo
Uma decisão do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) cancelou uma multa de R$ 5,2 milhões, em valores históricos, aplicada à Amaggi, multinacional do setor do agronegócio. O relator do caso, o conselheiro Laércio Cruz Uliana Júnior, aplicou uma tese recente do Supremo Tribunal Federal (STF), firmada em repercussão geral, para adequar o processo à nova orientação dos ministros.
O STF julgou, em 2023, que é inconstitucional aplicar multa isolada de 50% quando a compensação tributária feita pelo contribuinte é rejeitada pela Receita Federal. Os ministros entenderam que a simples rejeição do pedido não é um ato ilícito capaz de gerar sanção tributária. Aplicar de forma automática a multa, decidiu a Corte, equivale a atribuir ilicitude ao exercício do direito de petição, garantido pela Constituição (Tema 736).
No Carf, o relator aplicou a tese “de ofício”, ou seja, sem solicitação da parte para aplicação do precedente. Isso porque, na época em que o recurso foi proposto, o STF não tinha julgado a tese. A decisão, unânime, foi dada na análise de embargos de declaração pelos conselheiros da 1ª Turma da 4ª Câmara da 3ª Seção na semana passada.
Tributaristas elogiam a decisão. Segundo eles, é incomum o tribunal administrativo aplicar precedente do STF em embargos de declaração, modificando o resultado de um julgamento. O Carf, dizem, privilegiou a economia processual e evitou que o contribuinte tivesse que estender a discussão no Judiciário – onde teria que pagar custas, advogado e apresentar garantia do crédito tributário – e, provavelmente, venceria, gerando custos com sucumbência para a União.
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O caso tratava inicialmente de um fundamento errado no acórdão anterior, que havia mantido parcialmente a multa isolada. Ele havia sido copiado do processo principal, sobre aproveitamento de créditos de PIS/Cofins. O antigo relator, Leonardo Ogassawara de Araújo Branco, entrou com embargos apenas para corrigir o equívoco. Mas o atual relator aproveitou a oportunidade para aplicar a tese do STF e afastar a sanção.
“Como o Supremo Tribunal já declarou inconstitucional essa multa e temos o artigo 98 do regimento do Carf que diz que temos observar a declaração de inconstitucionalidade, de ofício, proponho o cancelamento da multa”, afirmou o conselheiro Laércio Cruz Uliana Júnior na sessão de julgamento (processo nº 14090.720171/2019-10).
Ele invocou “questão de ordem pública” com base no artigo 493 do Código de Processo Civil (CPC) para incorporar fato superveniente – o julgamento do STF – e cancelar a penalidade. Também levou em conta julgado do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que aplicou esse dispositivo processual em embargos de declaração para se adequar à decisão vinculante do Supremo (REsp 1392773).
Considerou ainda o julgamento da “coisa julgada” em matéria tributária do STF, em que foi decidida a quebra automática dos efeitos de uma sentença quando o Supremo decidir o contrário, em ações de controle concentrado (Temas 881 e 885).
É uma forma mais saudável de promover a redução do contencioso”
— Caio Quintella
O advogado José Francisco Silva Colado Barreto, gerente tributário da Amaggi, diz que a decisão é positiva. “A legislação veio no governo Dilma [Rousseff] que criou a multa isolada sobre compensação não homologada, então a empresa ficava com a espada no pescoço quando fazia compensação, porque a multa de 50% é bastante gravosa, além dos 20% sobre o valor do tributo não pago”, afirma.
Desde a tese do STF, Barreto diz que vários casos sobre multa isolada têm sido julgados em bloco no Carf, anulando as penalidades. A diferença, nesse caso, foi o embargo ter vindo do relator, o que não é comum. No processo principal, que trata de créditos de PIS e Cofins sobre insumos, a empresa aguarda o julgamento do recurso.
Para o tributarista Diego Diniz Ribeiro, sócio do Daniel & Diniz Advocacia Tributária e ex-conselheiro do Carf, o entendimento do conselho dá segurança jurídica, pois “demonstra que está respeitando as decisões do Supremo”. Apesar de o regimento do Carf prever essa obrigação, nem sempre ela é cumprida. “Algumas vezes, pode se entender em relação ao mérito que o caso concreto é distinto do precedente vinculante, então teria que ser feita uma distinção”, afirma.
Também chamou a atenção de Diniz a questão ser tratada como de “ordem pública”, algo não previsto em lei, mas aceito na jurisprudência. “O ponto mais interessante é dar tratamento de questão de ordem pública para decisão vinculante, na medida em que não tinha sido levantada pelo contribuinte e nem poderia. Quando foram propostos os embargos, não se tinha ainda decisão do STF”, adiciona.
Para o advogado Caio Cesar Nader Quintella, sócio do Nader Quintella Advogados, também ex-conselheiro do Carf, a decisão privilegia a integração entre as esferas julgadoras – a judicial e a administrativa. “É uma forma mais saudável de promover a redução do contencioso”, diz ele, acrescentando que há resistência dos julgadores de aplicarem as teses em repercussão geral de forma ampla.
A decisão também evitou excessos de formalidade, vez que embargos de declaração só poderiam servir para corrigir o julgamento. “Na época do julgamento inicial, não havia ainda o precedente do STF, mas, depois, em embargos, o Supremo já havia declarado inconstitucional a multa, então por que dar continuidade a algo que vai morrer lá na frente?”, acrescenta Quintella.
Procuradas pelo Valor, a Amaggi e a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) não quiseram comentar o assunto.