A letra morta do artigo 23 do Supersimples

Marcus Vinicius Buschmann – Com a edição da Lei Complementar nº 123, de 2006, que criou o Supersimples, surgiu uma grande e assustadora controvérsia com relação ao artigo 23 da referida lei, que determina que “as microempresas e as empresas de pequeno porte, optantes pelo Simples Nacional, não farão jus à apropriação nem transferirão créditos relativos a impostos ou contribuições abrangidos pelo Simples Nacional”. Neste sentido, em interpretação exclusivamente literal, as empresas tributadas pelo lucro real – e, por sua vez, sujeitas à tributação não-cumulativa do PIS/Cofins – não poderão calcular créditos com relação às compras de bens e serviços advindas de micro e pequenas empresas, pois estas não poderão transferir os créditos relativos às contribuições.
A análise literal da norma nos leva à conclusão de que as empresas de grande porte não poderão utilizar os créditos de PIS/Cofins quando adquirirem produtos e serviços, dentre outros, de micro e pequenas empresas, pois o artigo 23 da Lei Complementar nº 123 veda a transferência de créditos relativos aos impostos ou contribuições abrangidos pelo Supersimples.

Ocorre que os créditos de PIS/Cofins seguem um método distinto dos créditos oriundos de impostos indiretos. Portanto, a transferência não ocorre. O PIS e a Cofins não são tributos que acarretam transferência de créditos. PIS/Cofins não-cumulativos são como o minotauro: cabeça de touro e corpo de homem. O PIS/Cofins possui “cabeça de ICMS” – ou seja, intenção não cumulativa – mas corpo de Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) – ou seja, determinação legal da base de cálculo e permissão legal de possíveis deduções mediante cálculo determinado.

Apesar do desejo de criar uma não-cumulatividade semelhante à do ICMS, a Lei nº 10.637, de 2002, e a Lei nº 10.833, de 2003, não determinam que seja compensado o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas operações anteriores. Não existe uma compensação pelo imposto pago na etapa passada, mas tão somente uma permissão legal de deduções, mediante um cálculo previsto em lei.

Neste diapasão, veja que a Constituição Federal é clara ao criar a diferença de regimes não-cumulativos. O artigo 155, parágrafo 2º, inciso I da Constituição informa que o ICMS “será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação da mercadoria ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal”. Em contrapartida, o artigo 195, parágrafo 12º da Constituição determina que “a lei definirá os setores de atividade econômica para os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos I, alínea b, e inciso IV do caput serão não-cumulativas”. Assim, vale notar que a não-cumulatividade do PIS e da Cofins advém de um permissivo constitucional para que as mesmas, segundo definição legal, sejam não-cumulativas.

A vedação ao uso de créditos é inexistente juridicamente, pois trata de uma transferência que não existe na lei

Neste instante já notamos a grande diferença de regimes de não-cumulatividade. No caso do ICMS, se trata de uma compensação por operação, ou seja, é uma não-cumulatividade de imposto com imposto, operação com operação, sendo este o comando constitucional, apesar de a legislação, muitas vezes, tratar a questão de forma distinta no que tange à apuração do imposto. Já no caso das contribuições, o comando constitucional deixa ao critério do legislador, que determinou claramente que, sobre determinados e permitidos custos e despesas, sejam aplicadas as mesmas alíquotas para que deles sejam extraídos créditos passíveis de compensação.

Assim sendo, a não-cumulatividade do PIS/Cofins não ocorre em virtude do pagamento ocorrido em operações anteriores, mas sim em virtude da permissão legal de calcular e extrair de determinadas despesas e custos créditos passíveis de compensação, ou ainda, dito de outra forma, valores passíveis de dedução. Portanto, voltamos a afirmar que se trata de uma espécie híbrida com alma não-cumulativa, mas corpo de Imposto de Renda. Neste sentido, ao tratarmos sobre créditos do PIS/Cofins será melhor enxergarmos sempre deduções ao invés de compensações.

Na aquisição de um produto ou serviço, a legislação não se importa com o quantum pago na operação anterior. Dito de outra forma, se há aquisição de algum insumo de pessoa jurídica tributada pelo regime cumulativo, por exemplo, que gerou um pagamento de 3,65% a título de PIS e Cofins (pessoas submetidas ao lucro presumido), mesmo assim sobre o valor total deste insumo será aproveitado crédito à razão de 9.25%.

Por todo o exposto, como devemos interpretar o artigo 23 da Lei Complementar nº 123? Através do método teológico e sistemático de interpretação, podemos compreender que a vedação à transferência dos créditos não deve ser aplicada ao PIS/Cofins, pois, como exposto, não existe transferência de créditos destas contribuições, já que nenhuma lei que as regulamenta trata da transferência de créditos, mas sim da possibilidade de deduções da contribuição a pagar, na forma da lei. Assim, do ponto de vista legal e constitucional, a não-cumulatividade do PIS e da Cofins não envolve a transferência de créditos, mas tão somente a possibilidade legal de deduzir da base de cálculo do PIS e da Cofins, mediante cálculo determinado em lei, valores pagos na aquisição de bens e serviços especificados na legislação. Desta forma, as empresas que tributam a renda pelo lucro real sujeitas ao regime não-cumulativo do PIS/Cofins poderão utilizar os valores pagos as empresas cadastradas no Supersimples para cálculo e utilização dos créditos (ou melhor, deduções) de PIS/Cofins, desde que continuem a obedecer a determinação da legislação do PIS/Cofins não-cumulativos.

Portanto, para cumprimos o comando do artigo 146, inciso III, alínea “d” da Constituição Federal, que determina o tratamento diferenciado e favorecido para as pequenas empresas, devemos entender que a vedação da transferência de créditos das contribuições prevista no artigo 23 da lei que criou o Supersimples é não-escrita ou inexistente juridicamente, pois trata de uma transferência inexistente na lei e no direito atual.

Marcus Vinicius Buschmann é advogado, sócio do escritório Buschmann & Associados Advogados e mestre em direito tributário

Fonte: Valor Online

Data da Notícia: 31/08/2007 00:00:00

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