Voto de qualidade no Carf no contexto da unidade da jurisdição
Hélcio Lafetá Reis
No sistema jurídico brasileiro, vigora o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, comumente conhecido como princípio da unidade da jurisdição, segundo o qual, nos termos do inciso XXXV do artigo 5º da Constituição, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Referido princípio constitui garantia de direitos subjetivos — individuais ou coletivos — e se fundamenta no princípio da separação dos Poderes, bem como nos princípios da imparcialidade e do direito de ação e de defesa, abarcando, por conseguinte, o direito ao contraditório, à isonomia e à bilateralidade dos atos procedimentais.
Nesse sentido, “nenhum assunto relativo a direito poderá ser excluído do conhecimento do Poder Judiciário”, de forma que, havendo qualquer ameaça a direito, mesmo “antes de concretização da lesão”, assegura-se o acesso ao juízo, com vistas à obtenção de uma decisão justa [1].
Quando a lei instituiu o atual Processo Administrativo Fiscal (PAF) [2], possibilitando aos contribuintes a discussão voluntária das controvérsias tributárias no âmbito administrativo, o fez, não em afronta ao princípio da unidade da jurisdição, mas para possibilitar, por meio de revisão, o aperfeiçoamento do procedimento fiscal, em prol da efetividade do princípio da legalidade estrita previsto no inciso I do artigo 150 da Constituição [3].
No processo administrativo fiscal federal, havendo contrariedade manifesta do contribuinte ao resultado do procedimento fiscal, forma-se o litígio em que a esperada decisão final, nessa mesma esfera, não se dará por meio de arbítrio ou de disposição de interesses, mas em decorrência da aplicação de normas jurídicas, decisão essa que, diante do princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional, pode vir a ser revista pelo Poder Judiciário a partir de provocação do interessado.
Dessa forma, não se concebe, sob pena de afronta à Constituição, a possibilidade de que uma decisão final definitiva no âmbito processual administrativo, resultante da aplicação das normas jurídicas por julgadores administrativos — decisão essa não decorrente de consenso entre partes, frise-se, mas de lide formada a partir da contrariedade do administrado — venha contrariar a unidade da jurisdição, dado que o bem jurídico em jogo, na parte de interesse do Fisco e da coletividade, qual seja, o patrimônio público ou o Erário, não pode se submeter ao critério da disponibilidade ou da discricionariedade, mas da vinculação, devendo sempre se submeter aos termos delimitados pelo sistema jurídico fundado na Constituição Federal.
É nesse sentido que, nos termos da Súmula nº 346 do Supremo Tribunal Federal (STF), para se preservar o interesse público e o Direito, “a Administração Pública pode declarar a nulidade dos seus próprios atos”, hipótese essa, contudo, que não abrange os atos não classificáveis como nulos, como, por exemplo, o ato administrativo decisório com trânsito final no processo administrativo pautado em interpretação da norma jurídica obnubilada por dúvidas quanto ao efetivo alcance de determinados dispositivos legais, muitos deles fundados em termos linguísticos abertos, cuja amplitude e alcance só podem ser delimitados definitivamente, por força da Constituição, pelo Poder Judiciário.
Pressupor como inatacável uma decisão administrativa fundada em interpretação de normas jurídicas construída por agentes da Administração Pública significa prover o julgador administrativo de poder equivalente àquele garantido constitucionalmente ao Poder Judiciário, qual seja, o poder jurisdicional final, pois que, considerando-se essa possibilidade, a decisão administrativa definitiva, quando desfavorável ao ente público, independentemente de se encontrar coerente ou não com orientações jurisprudenciais, será a definitiva em termos de aplicação do direito, a despeito do princípio da unidade da jurisdição.
Suponha uma decisão administrativa final envolvendo questões constitucionais, como, por exemplo, aquelas afetas a imunidades tributárias ou à não cumulatividade, nessa hipótese, a possível imutabilidade de uma tese jurídica formada administrativamente, favorável ao contribuinte, alçará o julgador a uma posição superior à de ministro do STF, pois que o alcance de uma norma constitucional terá sido delimitado definitivamente a despeito da competência constitucional da Corte suprema.
Tendo por fundamento o artigo 45 do decreto nº 70.235/1972 [4] e o artigo 156, inciso IX, do Código Tributário Nacional (CTN) [5], prevalece na doutrina o entendimento de que a Administração Pública não pode contestar judicialmente um ato decisório por ela mesma exarado, por ausência de interesse de agir, hipótese essa que sustenta o alegado caráter definitivo de uma decisão administrativa favorável ao contribuinte, não mais passível de contestação no âmbito do processo administrativo fiscal.
Essa concepção doutrinária é aqui interpretada, num exercício livre (não sem riscos), de caráter lógico e dedutivo, como a origem da instituição do voto de qualidade nos julgamentos de segunda instância (Carf) [6] do processo administrativo fiscal federal (§9º do artigo 25 do Decreto nº 70.235/1972) [7], pois, havendo dúvida relevante quanto à aplicação de uma determinada norma jurídica, evidenciada pelo empate de votos no colegiado, e encontrando-se o órgão administrativo impossibilitado, em princípio, de contestar em juízo uma decisão própria de caráter definitivo, mantém-se, por força da opção do legislador, a decisão defendida pela metade da turma em que se posiciona o seu presidente.
Melhor teria andado a criação desse instituto se tivesse sido definido como “de qualidade” o voto proferido, independentemente da posição do presidente, pela metade da turma favorável à tese defendida pela Administração tributária, já que esta é a parte sobre a qual paira a espada de Dâmocles, cujo fio que a sustenta pode se romper, definitivamente, no caso de se decidir em última instância administrativa em prol da tese contrária ao Fisco.
No entanto, não se pode perder de vista que a Administração Pública, diferentemente dos administrados, não pode agir em interesse próprio, mas de acordo com a lei e o interesse público.
O direito, há muito, “deixou de ser apenas instrumento de garantia de direitos do indivíduo e passou a ser visto como meio para consecução da justiça social, do bem comum, do bem-estar coletivo” [8]. As garantias processuais tributárias “formam um sistema de autoproteção da relação jurídica tributária e não apenas dos contribuintes”, pois “[focá-las] como meras garantias dos contribuintes é angustiá-las em sua autêntica dimensão e promove perspectiva preconceituosa da função das garantias constitucionais” [9].
Nesse sentido, a atuação administrativa voltada ao atingimento da finalidade pública não se confunde com o agir do particular, pois, neste caso, tem-se o interesse de um único cidadão ou de um grupo de pessoas e, naquela, toda uma coletividade, cujas necessidades se suprem a partir dos recursos financeiros coletados pelo Estado, em quase sua totalidade por meio da arrecadação de tributos, cuja instituição encontra-se assegurada constitucionalmente.
É nesse contexto que, havendo dúvida relevante no processo administrativo acerca da exigência de um determinado tributo, com empate de votos no julgamento das turmas do Carf, deve-se resolver o litígio administrativo favoravelmente à Fazenda Pública, pois, não se tendo certeza acerca da melhor interpretação da lei em face do caso concreto, dúvida essa que somente o Poder Judiciário encontra-se autorizado a sanar de forma definitiva, a solução que se mostra mais consentânea com a tutela do interesse público é aquela que garante a remessa da incerteza interpretativa ao exame do poder estatal competente para efetivar, em último grau, o controle jurisdicional, tarefa essa que, conforme acima apontado, somente o contribuinte pode realizar.
Uma decisão fundada na dúvida acerca da melhor interpretação da norma jurídica, ou seja, acerca da realização do princípio da legalidade estrita, que beneficia um único indivíduo ou um grupo de interesses individuais, não pode se revestir de caráter definitivo, imutável, em desfavor da realização dos deveres institucionais previstos na Constituição, sob pena de se instituir, inadvertidamente, a supremacia do interesse particular em detrimento da unidade de jurisdição e dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, dentre os quais, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária e a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais (artigo 3º da Constituição Federal).
Conforme nos ensina Celso Antônio Bandeira de Mello, “de nada valeria proclamar-se o assujeitamento da Administração à Constituição e às leis, se não fosse possível, perante um órgão imparcial e independente, contrastar seus atos com as exigências delas decorrentes, obter-lhes a fulminação quando inválidos e as reparações patrimoniais cabíveis” [10].
Os interesses públicos, quais sejam, aqueles próprios da coletividade, são inalienáveis e inapropriáveis, razão pela qual não podem ser suplantados por interesses particularizados, sendo essa sua característica inata que impede que a Administração possa decidir, unilateral e definitivamente, acerca de sua disponibilidade.
Dotar de caráter imutável uma decisão administrativa favorável à tese jurídica defendida pelo contribuinte, sobre a qual pairam dúvidas relevantes, além de debilitar a unidade da jurisdição, pode entrar em choque, ou seja, ir de encontro a construções jurisprudenciais do Poder Judiciário ainda não revestidas de caráter vinculante, derrocando-se a consolidação da segurança jurídica em favor de uma pretendida “supremacia do interesse particular” garantido na última instância do “todo poderoso” contencioso administrativo.
A proteção conferida pela Constituição ao cidadão contribuinte, por meio, precipuamente, de direitos e garantias fundamentais, não pode frustrar a arrecadação de tributos devidamente amparada na legalidade, necessária à consecução dos deveres estatais, pois “o Estado é um credor particularmente digno de tutela”, diverso daquele existente nos contratos civis e comerciais [11], não podendo o processo administrativo tributário se desenvolver segundo as regras próprias do processo ordinário.
Não se pode esquecer que “a competência impositiva dos entes políticos não é decorrência senão da opção dos indivíduos em submeterem-se ao regime jurídico político denominado Estado de Direito” [12]; nesse sentido, a estruturação particularizada ou qualificada do processo administrativo tributário decorre de uma relação jurídica com contornos próprios, regida por princípios inerentes a uma específica função judicante, cujas normas não se submetem necessariamente às do processo civil ou mesmo às do processo administrativo genérico.
O Estado, no contexto tributário, detém uma condição peculiar no ordenamento jurídico, pois atua ao mesmo tempo 1) como legislador, criador das normas jurídicas instituidoras da obrigação tributária, 2) como destinatário de tais normas, 3) como credor da dívida fiscal e 4) como juiz dos litígios tributários, tanto administrativos quanto judiciais [13], situação essa que, embora assimétrica na relação fisco-contribuinte, evidencia uma condição jurídica própria da Administração tributária, cuja atuação, frise-se mais uma vez, não se pauta por meio das regras processuais ordinárias, dada a inexistência de interesse particular, mas pela busca da efetividade da legalidade, da generalidade e da isonomia (o que não pode se confundir com a propalada “sanha arrecadatória”), harmonizando-se a etapa judicante administrativa à judicial, pois, do contrário, viola-se o sistema jurídico a partir de uma decisão administrativa final destituída de certeza, contrária, potencialmente, à segurança jurídica e à inafastabilidade da tutela jurisdicional.
[1] SILVA, José Afonso de. Comentário contextual da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 131-132.
[2] Decreto nº 70.235, de 1972.
[3] Artigo 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
[4] Artigo 45. No caso de decisão definitiva favorável ao sujeito passivo, cumpre à autoridade preparadora exonerá-lo, de ofício, dos gravames decorrentes do litígio.
[5] Artigo 156. Extinguem o crédito tributário: (…) IX – a decisão administrativa irreformável, assim entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais possa ser objeto de ação anulatória;
[6] Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), do Ministério da Fazenda.
[7] Decreto nº 70.235/1972 (…) Artigo 25. O julgamento do processo de exigência de tributos ou contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal compete: (…) II – em segunda instância, ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, órgão colegiado, paritário, integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, com atribuição de julgar recursos de ofício e voluntários de decisão de primeira instância, bem como recursos de natureza especial. (…)§ 9o Os cargos de Presidente das Turmas da Câmara Superior de Recursos Fiscais, das câmaras, das suas turmas e das turmas especiais serão ocupados por conselheiros representantes da Fazenda Nacional, que, em caso de empate, terão o voto de qualidade, e os cargos de vice-presidente, por representantes dos contribuintes.
[8] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 35. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 83.
[9] MARINS, James. Direito processual tributário brasileiro. 7. ed. São Paulo: Dialética, 2014, p. 84 e 85.
[10] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 76.
[11] MARINS, James. Direito processual tributário brasileiro. 7. ed. São Paulo: Dialética, 2014, p. 77.
[12] MARINS, James. Direito processual tributário brasileiro. 7. ed. São Paulo: Dialética, 2014, p. 115.
[13] MARINS, James. Direito processual tributário brasileiro. 7. ed. São Paulo: Dialética, 2014, p. 44.
Hélcio Lafetá Reis
Presidente da 1ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 3ª Seção do Carf; auditor fiscal da Receita Federal desde 4 de julho de 1995; mestre em Direito Público pela PUC-MG (2012) e graduado em Direito pela UFMG (2005); pós-graduado em Gestão de Direito Tributário pela FGV (2006) e em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG (2017).