Voto de qualidade e transação tributária
Ricardo Soriano e Mariana Fernandes
Na segunda quinzena de setembro foi publicada a Lei nº 14.689/2023, que reinaugurou, em sua plenitude, o instituto do voto de qualidade como critério de desempate em julgamentos no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Apesar de destacado o retorno desse instituto pela mídia, ainda pouco se falou sobre alterações promovidas, no mesmo ato, no cenário das negociações com o Fisco (mais especificamente, nas transações tributárias).
Aqueles que acompanham a temática tributária sabem que o voto de qualidade perdurou até 2019, quando sua aplicabilidade nos julgamentos, perante o Carf, de determinação e exigência do crédito tributário restou afastada pela mesma medida provisória que viabilizou a transação tributária em âmbito federal. E é sabido também que, se o afastamento do instituto – há cerca de quatro anos – foi fruto de intensa construção política, o mesmo fato se deu com o retorno de tal critério de desempate, neste momento.
Com efeito, dada a inegável importância ao Fisco do retorno do voto de qualidade (que assegura prevalência, em caso de empate, do entendimento dos presidentes dos colegiados que compõem o Carf e esses são sempre indicados pela Fazenda Nacional), sua reintegração no cenário legislativo somente se fez possível a partir de algumas concessões relevantes, em prol dos contribuintes.
Ricardo Soriano e Mariana Fernandes são, respectivamente, sócio responsável pela área tributária do Figueiredo e Velloso Advogados e ex-procurador-geral da Fazenda Nacional; e advogada tributarista do Figueiredo e Velloso Advogados
No âmbito da Receita Federal, ao lado de inovações outras já mais amplamente divulgadas, chama a atenção que, condicionado ao pedido em até 90 dias, o pagamento em caso de condenação possa não apenas ser realizado em até 12 parcelas, mas mediante a utilização de prejuízo fiscal, base de cálculo negativa de CSLL ou, ainda, precatórios.
Interessante notar, no ponto, que, diferentemente da regra existente para as transações tributárias, não houve aqui a estipulação de limite percentual para utilização de prejuízo fiscal e/ou base de cálculo negativa de CSLL, o que conduz, ao menos em teoria, à possibilidade de sua utilização para amortização integral do montante remanescente (após a exclusão das multas e dos juros de mora).
Já no âmbito da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), prevê o artigo 3º da Lei nº 14.689/2023 que os créditos em discussão judicial os quais tiverem sido resolvidos favoravelmente à Fazenda Pública pelo voto de qualidade poderão ser objeto de proposta de acordo de transação tributária específica, por iniciativa do contribuinte.
A referida inovação também é bem-vinda, e de se supor – por silêncio eloquente da lei, no ponto – que não constitui uma possibilidade restrita a contribuintes com baixa capacidade de pagamento. Em verdade, o dispositivo parece se aproximar de transação de tese tributária, impressão reforçada por seu vetado parágrafo único, que dispunha que a regulamentação da nova hipótese de transação deveria se dar “em condições não menos favorecidas do que as ofertadas aos demais sujeitos passivos e considerando o prognóstico do risco judicial de cada processo”.
Fato é que, sobre o artigo 3º, alguma regulamentação será bem-vinda para aclarar seu efetivo alcance.
Ainda sobre a transação de teses tributárias em discussão em contencioso, talvez esse tenha sido o alvo da maior parte das alterações promovidas na legislação. A ideia por trás das mudanças parece ser também a de tornar mais atrativa essa modalidade de transação, ainda com poucas experiências e baixa adesão, até o momento. Merece destaque, especificamente, o aumento do desconto máximo para até 65% ou 75% (a depender do tipo de devedor), bem como a ampliação do prazo para pagamento, chegando para até 120 meses ou 145 meses (do mesmo modo).
Por outro lado – e talvez mais interessante no ponto de vista dos contribuintes – a lei trouxe a possibilidade, também no âmbito da transação de teses, da já mencionada utilização de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa da CSLL. E o limite é a também já conhecida trava de 70% para quitação do saldo remanescente, após os descontos aplicáveis. Até então, no âmbito da PGFN, só se fazia possível cogitar da utilização de tais resultados contábeis negativos quando da transação individual (e, então, abrangendo apenas débitos considerados irrecuperáveis ou de difícil recuperação).
Por fim, no que tange às obrigações do sujeito passivo ao aderir a transação nessa modalidade (transação no contencioso de relevante controvérsia), duas outras modificações também merecem registro. Agora, é autorizada a veiculação de edital que: i) não imponha ao contribuinte a sujeição, em relação aos fatos geradores futuros ou não consumados, o entendimento da administração tributária sobre a matéria objeto da transação, e ii) não exija que o requerimento de adesão abranja todos os litígios relacionados à tese objeto da transação.
Como se vê, ao lado das mais conhecidas e divulgadas alterações promovidas pela nova lei do voto de qualidade, outras igualmente relevantes aos interesses dos contribuintes foram incorporadas ao sistema legislativo pátrio, com o condão de ainda mais potencializar a aproximação e diálogo entre Fisco e contribuinte – no que ganham todos. De se ver, com boas perspectivas, como regulamentarão tais alterações tanto Receita como PGFN.
Ricardo Soriano e Mariana Fernandes
São, respectivamente, sócio responsável pela área tributária do Figueiredo e Velloso Advogados e ex-procurador-geral da Fazenda Nacional; e advogada tributarista do Figueiredo e Velloso Advogados