Voto de qualidade e as decisões em matéria aduaneira no Carf sob escrutínio

Liziane Angelotti Meira

No dia 26 de janeiro, comemoramos o dia internacional da aduana. Essa data foi escolhida porque, em 26 de janeiro de 1953, foi realizada na Bélgica a primeira reunião do Conselho de Cooperação Aduaneira — que adotou, em 1994, o nome de Organização Mundial da Aduanas (OMA) —, foro de discussão multilateral das aduanas. Em cada aniversário da OMA, escolhe-se um tema prioritário e, nos 70 anos, o tema é “Nurturing the next generation: promoting a culture of knowledge-sharing and professional pride in Customs” [1]. A ideia é promover e compartilhar o conhecimento na comunidade aduaneira, para formação e aprimoramento dos profissionais, especialmente da nova geração. Ideia essa já encampada originalmente neste Território Aduaneiro, mediante investigação e análise das mais relevantes e atuais questões aduaneiras.

Em terras brasileiras, cumpre registrar outra data essencial para nossa história aduaneira: no dia 28 de janeiro de 1808, dom João 6º assinou a Declaração de Abertura dos Portos às Nações Amigas [2], e esse dia passou a ser celebrado como o dia do comércio exterior e também dos profissionais de comércio exterior e dos portuários. Parabéns a esses importantes profissionais!

Prestadas as merecidas reverências, passemos por mais de 200 anos de história e comércio exterior e desembarquemos em 2023. A proposta é conversar um pouco sobre a matéria aduaneira no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), especificamente sobre o voto de qualidade, tema do dia neste início de ano. Naturalmente que essa discussão não se restringe à matéria aduaneira, mas, sem dúvida, interfere de forma direta na interpretação e aplicação do Direito Aduaneiro no Brasil e, portanto, merece realmente nossa atenção.

O Carf é formado por assessorias, divisões e coordenações, incumbidas da tarefa administrativa, e por órgãos julgadores. Estes são divididos em três seções. Em cada seção, existem turmas extraordinárias [3], turmas ordinárias; há também três turmas da Câmara Superior Recursos Fiscais (CSRF) [4], que possuem a incumbência de julgar recursos de acórdãos das turmas ordinárias e extraordinárias de cada seção, em caso de divergências, uniformizando a jurisprudência administrativa.

Em todas as turmas do Carf, há número par de conselheiros (julgadores) [5], sendo metade indicada pelo Fisco [6] e metade indicada por categorias econômicas e profissionais [7].

Dentro dessa formação paritária, os cargos de presidente de turma, presidente de câmara e presidente de seção (bem como, todos os substitutos) foram reservados aos conselheiros fazendários. Aos conselheiros dos contribuintes, cabem as posições de vice-presidentes, sem a atribuição de substituir os titulares nas ausências.

Um dos problemas inerentes a essa estrutura paritária de julgadores é a possibilidade de empates nas decisões e a necessidade de se estabelecer um mecanismo para solução do impasse [8].

Assim, considerando que o processo tributário no Carf é contencioso administrativo e que é reservada ao contribuinte a possibilidade de recurso ao Poder Judiciário, foi introduzido em norma de estatura legal, em 2008 [9], no artigo 25, § 9º, do Decreto no 70.235/1972, o voto de qualidade, segundo o qual incumbe aos presidentes das turmas (conselheiros fazendários) o voto decisivo em caso de empate nos julgamentos do Carf. A Lei no 13.988, de 14 de abril de 2020, no seu artigo 28, afastou a aplicação do voto de qualidade no caso de determinação e exigência do crédito tributário, prescrevendo nesses casos decisão favorável ao contribuinte.

No começo de 2023, em um cenário de calorosas discussões sobre a necessidade de recursos para gerir o país, sobre a justiça econômica e social, sobre a legítima representatividade e o afastamento do elitismo, o debate sobre o Carf emerge e ganha bastante relevância. Assim, decidiu-se, por meio da Medida Provisória nº 1.160, de 12 de janeiro de 2023, artigo 1º, o restabelecimento do voto de qualidade. Essa determinação, contudo, não encerra a contenda; ao contrário, acirra, pois estamos diante de uma medida provisória, submetida democraticamente ao Congresso Nacional.

Cabe lembrar que, conforme entendimento do Parecer SEI nº 6898/2020/ME, o afastamento do voto de qualidade não era aplicado às multas aduaneiras. O voto de qualidade continuava e continua vigente para as multas aduaneiras, sem sofrer as turbulências que atingiram os julgamentos de crédito tributário. Ou seja, as questões estritamente aduaneiras continuaram sujeitas ao voto de qualidade, sem idas e vindas.

Nesse sentido, propõe-se aqui olhar as decisões do Carf em matéria aduaneira, buscando levantar alguns números e temas que foram decididos por voto de qualidade. Tendo em conta que o foco é aduaneiro e ainda que nos interessam as questões mais complexas e divergentes, vamos restringir a pesquisa às decisões da 3ª Turma da CSRF [10]. Escolhemos os anos de 2019 e 2021.

Necessário esclarecer que o propósito não é fazer uma análise profunda e exaustiva, mas extrair e examinar dados que estão disponíveis no sistema de pesquisa do Carf, usando os mecanismos de pesquisa lá fornecidos, para iluminar e enriquecer nossas reflexões [11].

Em 2019, pesquisando no site do Carf processos aduaneiros julgados por voto de qualidade na 3ª Turma da CSRF, encontramos 19 acórdãos [12]. Vejamos:

01 – Conhecimento do recurso especial [13]

01 – Certificado de origem [14]

06 – Classificação de mercadorias e multas relacionadas [15]

01 – Decadência tributária

01 – Drawback e Vinculação física [16]

01 – Drawback e inadimplemento [17]

01 – Isenção e similaridade nacional [18]

01 – Multa de 1% por omissão de informação [19]

02 – Perdimento e Fraude na da declaração de valor na importação [20]

01 – Perdimento e Interposição Fraudulenta na importação [21]

01 – Roubo de carga em trânsito aduaneiro [22];

01 – “Revisão aduaneira” e alteração de critério jurídico [23]

01 – Valor Aduaneiro e “capatazia” [24]

01 – Valor aduaneiro e parcelas pagas [25]

Em 2021, verificou-se um decréscimo, sendo 12 acórdãos aduaneiros decididos por voto de qualidade na 3ª Turma da CSRF:

03 – Conhecimento do recurso especial [26]

05 – Mercadoria importada atentatória à moral e aos bons costumes [27]

02 – Multa por falta de prestação de informações aduaneiras [28]

02 – Perdimento e interposição fraudulenta na exportação [29]

Voltando-se aos acórdãos da CSRF de 2019 levantados, pode-se inferir que a demanda de harmonização de jurisprudência ocorre em relação a temas aduaneiros realmente importantes em termos econômicos, aduaneiro-tributários e de comércio internacional, com destaque para classificação de mercadorias, com seis decisões, e para perdimento e valoração aduaneira, com dois acórdãos cada.

Em 2020, a amostra é menor, mas se verifica que a CSRF decidiu sobre um tema cuja jurisprudência realmente se apresentava claudicante: a interposição fraudulenta na exportação. Também observamos decisões sobre multa por omissão na prestação de informações aduaneiras. Houve cinco decisões, todas na mesma sessão de julgamento, sobre mercadoria importada atentatória à moral e aos bons costumes, matéria esta, excepcionalmente, sem muita frequência no Tribunal Administrativo.

Além da relevância dos temas decididos pela CSRF, merecem menção alguns outros aspectos importantes verificados na pesquisa.

Em 2019, em todos os 19 acórdãos selecionados, em todas essas decisões submetidas ao voto de qualidade na CSRF, configurou-se uma forma de empate em que todos os conselheiros indicados pelos contribuintes votaram juntos a favor do contribuinte e todos os conselheiros indicados pela Fazenda Nacional votaram juntos em sentido oposto. Essa constatação demanda necessariamente aprofundamento, mas já direciona no sentido de indicar problemas de fragilidade no Carf, seja na estrutura, seja na composição, seja no grau de segurança e autonomia dos julgadores.

Em 2020, por sua vez, o Acórdão nº 9303-011.436 e os cinco acórdãos sobre mercadoria importada atentatória à moral e aos bons costumes (Acórdãos nº 9303-010.299, 9303-010.300, 9303-010.302, 9303-010.301 e 9303-010.303, julgados todos na mesma sessão) apresentaram diversidade nos votos, considerando a origem da indicação dos julgadores. Sendo que esse conjunto de decisões sobre mercadoria importada atentatória à moral e aos bons costumes foi o único em todo o universo pesquisado em que houve voto de qualidade favorável ao contribuinte.

Dessa forma, a proposta do presente artigo não foi construir inferências absolutas, mas trazer subsídios sobre os julgamentos de matérias aduaneiras no Carf envolvendo o voto de qualidade e, assim, contribuir para o enriquecimento e amadurecimento dessa importante reflexão, submetida neste momento a intenso escrutínio público.

[1] Conforme informações divulgadas pela OMA em: https://www.wcoomd.org/en/media/newsroom/2023/january/wco-secretariat-celebrates-international-customs-day-2023.aspx. Acesso em: 29 jan. 2023).

[2] Encontramos o texto na Carta Régia do Príncipe Regente D. João, de 28 de janeiro de 1808, disponível no sítio da Câmara Legislativa: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/carreg_sn/anterioresa1824/cartaregia-35757-28-janeiro-1808-539177-publicacaooriginal-37144-pe.html. Acesso em: 29 jan. 2023).

[3] As turmas extraordinárias julgam recursos voluntários que envolvam créditos tributários de até 120 salários mínimos (Portaria Carf nº 6.786, de 1 de agosto de 2022).

[4] O organograma completo é disponibilizado pelo Carf em: http://idg.carf.fazenda.gov.br/acesso-a-informacao/institucional/organograma/organograma-carf-2019.jpg. Acesso em: 29 jan. 2023).

[5] A composição e distribuição completa dos julgadores do Carf está disponível em: http://idg.carf.fazenda.gov.br/acesso-a-informacao/institucional/quem-e-quem/2016.pdf/view. Acesso em: 29 jan. 2023).

[6] São Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil, que cumprem requisitos de experiência e formação acadêmica, passam por uma pré-seleção do Fisco e são submetidos em lista tríplice ao Comitê de Acompanhamento, Avaliação e Seleção de Conselheiros (mais informações disponíveis em: http://idg.carf.fazenda.gov.br/acesso-a-informacao/servidores. Acesso em: 29 jan. 2023).

[7] Em tempos de grande preocupação com a estabilidade democrática e com a representatividade dos interesses sociais, importa examinar a distribuição das vagas destinadas aos conselheiros representantes dos contribuintes no Carf. A Portaria nº 453, de 26 de agosto de 2019, atribui três vagas para os representantes de cada uma das seis categorias econômicas (CNA, CNC, CNF, CNI, CNS, CNT) e atribui uma vaga para os representantes de cada uma das seis categorias profissionais ou dos trabalhadores (CUT, UGT, CTB, Força Sindical, CSB, NCST).

As vagas para os representantes das categorias de trabalhadores foram alocadas somente na 2ª Seção do Carf, a qual não tem competência para julgar matérias aduaneiras (conforme quadro de distribuição de vagas de conselheiros disponibilizado pelo Carf em: file:///C:/Users/CARF/Downloads/Distribui%C3%A7%C3%A3o%20de%20Vagas%20de%20Conselheiros%20-%20Contribuintes.pdf).

Cabe anotar que , neste momento, dentre as representantes das categorias dos trabalhadores, apenas a CUT tem efetivamente um conselheiro atuando (segundo informações constantes do sítio do Carf, atualizadas em 26/1/2023 e disponíveis em: https://carf.economia.gov.br/acesso-a-informacao/institucional/quem-e-quem/2016.pdf). Acesso em: 29 jan. 2023).

Muito curioso observar que se debate muito sobre o voto de qualidade — se se contraporia ao interesse social ou dos contribuintes —, mas se dá pouca atenção à composição dos indicados em nome dos contribuintes. Isso me lembra a famosa expressão de Adam Smith “a mão invisível do mercado”; muito mais inquietante do que ser assombrado por uma “mão invisível”, é não identificar o braço nem o dono do braço.

[8] Vale lembrar que o colega colunista Rosaldo Trevisan, no artigo da semana passada nesta coluna, apresentou reflexões muito perspicazes sobre o voto de qualidade e a necessidade de se estabelecer métodos de desempate nos julgamentos, abordando critério adotado no STF e também critério previsto para o Tribunal Fiscal de la Nación, na Argentina. Recomenda-se leitura ou releitura desse elucidativo trecho (nota 13 do artigo “Acontecimentos aduaneiros em 2022, Keynes e a ‘lanterna na popa'”, disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jan-24/territorio-aduaneiro-acontecimentos-aduaneiros-2022-keynes-lanterna-popa?pagina=3. Acesso em: 29 jan. 2023).

[9] Pela Medida Provisória no 449, de 2 de dezembro de 2008, convertida na Lei no 11.941, de 27 de maio de 2009.

[10] É competência da 3ª Seção julgar recursos que versem sobre matéria aduaneira e, da 3ª Turma da CSRF, julgar recursos especiais no caso de divergência nas turmas ordinárias e extraordinárias da 3ª Seção (conforme arts. 4º e 67 do Ricarf, aprovado pela Portaria MF no 343, de 09 de junho de 2015).

[11] A pesquisa foi feita em 29 de janeiro de 2023, no seguinte site: https://acordaos.economia.gov.br/solr/acordaos2_shard8_replica_n42/browse?q=

O método foi o seguinte: no site indicado, encontramos 490.439 decisões, relativas a sessões de julgamento nos anos de 2005 a 2021. De 2019, são 30.464 decisões e, de 2021, 33.933 decisões. Nesses dois anos, limitamos a pesquisa aos acórdãos da 3ª Turma da CSRF, Então, escolhemos as decisões tomadas por voto de qualidade, em seguida, selecionamos aquelas sobre matéria aduaneira usando as palavras: “aduaneiro”, “importação” e “exportação”. Foi verificada cada uma das decisões encontradas para confirmar se o acordão foi decidido por voto de qualidade e também se se tratava realmente de matéria aduaneira, e foram descartadas manualmente aquelas não pertinentes.

[12] Aparecem 20 temas porque o Acórdão no 9303­008.652 aparece com dois temas.

[13] Acórdão no 9303­008.132.

[14] Acordão no 9303-009.560.

[15] Acórdãos no 9303-009.392, 9303­008.252, 9303­007.979, 9303­008.194, 9303­008.113 e 9303­008.719.

[16] Acórdãos no 9303­009.400 e 9303-008.652. .

[17] Acordão no 9303-007.708.

[18] Acórdão no 9303-008.794.

[19] Acordão no 9303-009.408.

[20] Acórdãos no 9303-009.807 e 9303­008.652.

[21] Acórdão no 9303­008.128.

[22] Acórdão no 9303­009.407.

[23] Acórdão no 9303-009.392

[24] Acórdão no 9303­009.204.

[25] Acórdão no 9303-009.693.

[26] Acórdãos no 9303-011.719, 9303-010.288 e 9303-010.286.

[27] Acórdãos no 9303-010.299, 9303-010.300, 9303-010.302, 9303-010.301 e 9303-010.303.

[28] Acórdãos no 9303-010.516 e 9303-010.498.

[29] Acórdãos no 9303-011.436 e 9303-011.114.

Liziane Angelotti Meira

Liziane Angelotti Meira é presidente da 3ª Seção do Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.

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