Valor justo, devolução de capital e a guilhotina
Caio Cesar Nader Quintella
Uma manobra societária muito comum, corriqueiramente realizada, é a devolução de parte da participação do sócio no capital social da empresa, pelo seu valor contábil – de modo que não ocorra ganho de capital nesse evento sem expressão econômica – garantida expressamente pelo artigo 22 da Lei nº 9.249/95.
Contextualizando, tal dispositivo de lei compõe as reformas do primeiro governo FHC, a qual conferiu incentivos ao empresariado nacional e modernizou a legislação tributária, assegurando a desoneração dos lucros e dividendos, a dedutibilidade dos juros sobre o capital próprio pagos do cálculo dos tributos sobre a renda das empresas e instituiu um verdadeiro regime de neutralidade contábil e tributária do acréscimo patrimonial, quando do trânsito de investimentos promovidos entre as pessoas jurídicas e seus respectivos titulares (aporte e devolução de bens e direitos).
Não há dúvidas sobre a objetividade e clareza da faculdade conferida no mencionado artigo 22 da Lei nº 9.249/95, permitindo que “os bens e direitos do ativo da pessoa jurídica, que forem entregues ao titular ou a sócio ou acionista, a título de devolução de sua participação no capital social, poderão ser avaliados pelo valor contábil ou de mercado”. Ocorre que tal norma jurídica tributária foi editada ainda na vigência das antigas regras contábeis, instituídas em 1976 com a edição da Lei das S/A, muito antes da adoção no Brasil do International Financial Reporting Standards – IFRS, posteriormente introduzido por meio das leis nº 11.638/07, nº 11.941/09 e nº 12.973/14, em esforço de aproximação da OCDE.
Encerrada a transição, restaram criadas diversas obrigações de controle de valoração de ativos (e passivos) das entidades no tempo, por meio da chamada Avaliação a Valor Justo (AVJ), mantida em subcontas. Desse modo, quando da alienação de um ativo das empresas controlado por essa figura, tais registros de cifras servirão como base para calcular ganhos ou perdas e, consequentemente, sua tributação.
Frise-se que a maior e persistente regra do processo de adoção do IFRS e adequação das normas tributárias aos seus novos parâmetros sempre foi a neutralidade, prevenindo que a alteração da ordinária ciência contábil não interferisse na majestade da lei – e suas reais consequências. Isso se verificou em todo processo legislativo que culminou, derradeiramente, no comando do artigo 58 da Lei nº 12.973/14, que ordena à Receita Federal proceder à anulação de quaisquer efeitos sobre a apuração de tributos, decorrentes de modificação ou da adoção de métodos/critérios contábeis, posteriormente regulados.
Surpreendentemente, esse mesmo órgão de arrecadação editou a Solução de Consulta Cosit nº 415/2017, onde se entendeu (vinculando todos auditores fiscais do país e Delegacias de Julgamento) que “o valor contábil inclui o ganho decorrente de avaliação a valor justo controlado por meio de subconta vinculada ao ativo, e, quando da realização deste, qual seja, transferência dos bens aos sócios, o aumento do valor do ativo, anteriormente excluído da determinação do lucro real e do resultado ajustado, deverá ser adicionado à apuração das bases de cálculo do IRPJ e da CSLL”.
E o fundamento disso é simplório: “o valor contábil inclui o ganho decorrente de avaliação a valor justo controlado por meio de subconta vinculada ao ativo, nos termos da IN RFB nº 1.700, de 2017, e, quando da realização deste, qual seja, transferência dos bens aos sócios, o aumento do valor do ativo, anteriormente excluído da determinação do lucro real e do resultado ajustado”. Traduzindo: agora, mesmo entregando o bem ao sócio pelo “valor contábil”, a empresa deve imediatamente tributar sua valorização registrada em subconta, pelo IRPJ e pela CSLL.
Ou seja, toda a supereminência legal da neutralidade e da objetiva faculdade de ausência de apuração ganhos conferida pelo legislador foi destronada, em verdadeira insurgência por interpretação de regras internas do próprio Poder Executivo, sob a bandeira da ascensão transcendente do “valor justo” a conceito legal de valor contábil.
Ora, é pacífico que para o direito tributário (e societário, também) a contabilidade lhe é servil e secular, submetendo-se obedientemente ao seus mandos, proibições e decretações, somente possuindo alguma relevância jurídica e produzindo efeitos correspondentes quando o próprio direto assim, expressamente, comandar.
Independentemente de propostas legítimas de reformas, temos aqui uma insurreição, que suprime a eficácia de uma fundamental faculdade jurídica e os seus efeitos expressamente pretendidos, como conferidos pelo Poder Legislativo e plenamente vigente.
Se antes do IFRS a devolução de capital para o sócio pelo valor contábil não ensejava o dever de tributar a valorização do ativo pela pessoa jurídica, não serão a nova dinâmica contábil do uso da figura do AVJ e, muito menos, as disposições de uma instrução normativa que farão nascer tal obrigação com o Fisco – guilhotinando, num jacobino golpe, a opção fiscal do artigo 22 da Lei nº 9.249/95.
Ainda que a nova sistemática contábil e seu regramento infralegal possam conferir alguma plausibilidade a tal interpretação, se o resultado implica em novo ou diverso evento tributável, seus efeitos devem ser neutralizados, por imposição do artigo 58 da Lei nº 12.973/14 – desde 2017, sabotado.
Revolução às vezes pode representar evolução na história, mas no direito tributário, a lei deve continuar reinando, soberana e absoluta.
Caio Cesar Nader Quintella
sócio do Ogawa, Lazzerotti & Baraldi Advogados, parecerista e professor, mestre em Direito Tributário pela PUC-SP