Trump e o novo cenário global: pode a OMC responder ao aumento abusivo de tarifas?
Liziane Angelotti Meira
O comércio internacional revelou-se sempre muito dinâmico e em expansão. Os agentes e também os estados estão continuamente procurando novas oportunidades para impulsionar suas atividades comerciais e fortalecer suas economias.
Entretanto, não é surpresa que o comércio reflita crises sociais, econômicas e políticas ao longo da história. Conflitos, como a 2ª Guerra Mundial, tiveram impacto significativo na economia e nos fluxos comerciais internacionais. Por sua vez, epidemias, como a Peste Negra no século 14 e a gripe espanhola no início do século 20, também deixaram suas marcas profundas.
A humanidade, por outro lado, enfrenta novos e significativos desafios relacionados à tecnologia neste momento. Vivemos em uma era marcada por amplas disparidades digitais. O impacto social, econômico e político da inteligência artificial — que se concentra na mão de poucos e se torna cada vez mais poderosa — causa grande temor. Além disso, as mídias sociais e a excessiva exposição das pessoas, somadas à dificuldade de combater as fake news, configuram-se como fantasmas perturbadores.
Como podemos evitar que a tecnologia contribua para o aumento da pobreza, do desemprego e da exclusão social? Como garantir que a falta de ética e o descompromisso com a verdade não se consolidem na vida virtual e também na real? Como prevenir que as informações sobre cidadãos e consumidores sejam manipuladas, transformando-se em instrumentos de exploração e de discriminação? Como evitar que poucas pessoas ou países dominem a tecnologia e o mundo de forma excludente, egoísta e sem ética?
Os desafios políticos são igualmente intrincados. O mundo abriga conflitos profundos, como o religioso-político entre cristãos, muçulmanos e judeus, que remontam a tempos antigos, mas se renovam e se recrudescem.
Além disso, os embates entre diferentes valores socioeconômicos, que marcaram a Guerra Fria, continuam a alimentar tensões no cenário atual, especialmente entre os Estados Unidos e a Rússia e a China. Embora a ideia de declínio dos modelos de esquerda seja amplamente aceita, é fundamental questionar se o capitalismo, por sua vez, está realmente conduzindo o mundo para seu melhor momento histórico.
Conflitos no cenário internacional
Mais recentes, porém intrinsicamente conectados a desavenças seculares, os conflitos atuais incluem a Guerra da Ucrânia, que provocou grande comoção e expressivos impactos econômicos, e a Guerra de Israel, que desperta preocupação e divide o mundo.
Isso acontece em um ambiente pós-pandemia, marcado por mudanças consideráveis na forma de trabalhar, consumir, estudar e se relacionar. O predomínio da atividade virtual e o intenso uso da tecnologia permitiram ultrapassar limites e fronteiras. Hoje, é possível uma pessoa viver em Jericoacoara, com vista para o mar, trabalhar para uma organização internacional sediada em Paris, assistir aulas na Universidade de Harvard, estudar francês com professores residentes em Lyon, jogar em tempo real um novo jogo estadunidense com parceiros canadenses e suecos, acessar a cultura coreana, comprar produtos chineses — tudo sem sair de casa [1]. Antes da pandemia, grande parte dessas experiências soava como ficção.
Ainda compondo nosso conturbado cenário hodierno, acompanhamos uma crescente intensificação dos problemas climáticos, como chuvas torrenciais, secas prolongadas, tufões e outros fenômenos extremos, que refletem as dificuldades do ser humano em preservar o seu próprio habitat. Esses eventos são um claro indicativo dos riscos imensos que enfrentamos, não apenas para a humanidade, mas para toda a vida no planeta.
Diante da necessidade de combater tantos problemas, não se encontram instituições fortalecidas, governos empenhados nem eleitores conscientes. Ao contrário, as vicissitudes políticas se intensificam. A política se polariza, a atenção se desvia para questões superficiais, como a pauta de costumes, enquanto os problemas essenciais permanecem sem solução. O Estado se torna menos laico, seu corpo funcional perde o caráter profissional e fica mais politizado. O proselitismo predomina, impulsionado por um caráter egoísta, baseado no individualismo combinado com o nacionalismo.
É nesse contexto que o país mais rico e que mais participa do comércio internacional [2] se desengaja dos compromissos multilaterais comerciais, ambientais e da saúde. Adota medidas populistas e protecionistas, fecha-se e tenta, inclusive de forma agressiva, proteger-se do mundo ao mesmo tempo em que o explora intensamente. E pior, essa postura de um país tão relevante não fica isolada, mas arrasta os outros na sua trajetória. A nossa vizinha Argentina já nos mostra essa face, ao anunciar sua saída da OMS e afirmar que avalia, na linha de Trump, retirar-se do Acordo de Paris, do pacto ambiental global.
A Organização Mundial do Comércio
E como fica a Organização Mundial do Comércio nesse ambiente tão hostil?
Spacca
A OMC é calcada na ideia de que o comércio internacional, as trocas entre países, a geração de riqueza e os lucros decorrentes dessas interações desempenham um papel crucial na preservação da paz global. Em um mundo cada vez mais interconectado, o impacto econômico de um conflito — seja pelo aumento de preços, pela escassez de recursos ou pela destruição de infraestruturas — resulta em prejuízos e perdas para todos.
Dessarte, o pensamento não deve ser derrotista, no sentido de considerar que a OMC está ultrapassada ou que as instituições multilaterais falharam em seus objetivos. Pelo contrário: precisamos muito hoje (talvez mais do que no pós-2ª Guerra Mundial) de uma OMC forte, assim como de um multilateralismo robusto no comércio — e também em outras áreas, especialmente nas questões ambientais — que seja apoiado e revitalizado.
Pois bem, o objetivo da OMC é facilitar a abertura do comércio internacional de forma multilateral, por meio da celebração de acordos internacionais, como o Gatt. Por meio desses acordos, os países se comprometem a não aumentar e a reduzir gradualmente suas barreiras tarifárias. Esse compromisso é assumido por cada nação em troca da expectativa de benefícios advindos do acesso ao mercado dos demais membros da Organização.
No entanto, esse sistema nasceu com algumas fragilidades. A OMC não possui jurisdição sobre os países; assim, casos de descumprimento dos acordos devem ser levados ao seu sistema de solução de controvérsias pelos países prejudicados. Caso a infração seja reconhecida, a OMC determina que o país condenado ajuste suas normas. Se o ajuste não ocorrer, os países prejudicados têm permissão para retaliar. No entanto, não há a imposição de multas, nem compensação retroativa por danos causados.
Essa dinâmica compromete a eficácia das decisões da OMC, especialmente quando envolve a infração de um país rico contra uma nação com poder econômico muito menor. Mesmo que o país prejudicado recorra à retaliação, é provável que sofra as consequências negativas, ao passo que o infrator seja pouco ou nada afetado.
Ademais, devido à demora e aos efeitos meramente prospectivos da decisão, os países podem praticar infrações, fruindo os benefícios derivados enquanto a decisão final não é proferida. Ainda, mesmo após a decisão da OMC e a alteração das normas, muitas vezes estas normas continuam em desacordo com os compromissos assumidos, o que gera novos conflitos, com descumprimentos e procrastinações planejados.
No entanto, as promessas e atitudes do atual governo dos EUA vão além de simplesmente explorar as brechas e a lentidão do sistema da OMC; trata-se de um descumprimento frontal e ostensivo. Para compreendermos melhor essa situação, é necessário aprofundar um pouco mais no sistema de solução de controvérsias da OMC [3]:
Órgão de solução de controvérsias da OMC
Dentre os compromissos que levaram à criação da OMC, estava o Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias (ESC). Esse entendimento que deu origem ao Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da OMC.
O processo no OSC segue quatro fases:
1. Consultas: inicialmente, busca-se uma solução por meio de consultas, com o objetivo de promover uma negociação entre os países envolvidos no litígio.
2. Painel: se as consultas não resultarem em consenso, é formado um painel composto por três juízes indicados pelo Diretor da OMC em acordo com as partes, a partir de uma lista de especialistas habilitados. Esses juízes analisarão o caso e elaborarão um relatório conclusivo.
3. Órgão de Apelação: caso uma das partes não concorde com o relatório do painel, ela pode recorrer ao Órgão de Apelação, composto por sete juízes, dentre os quais três revisarão os aspectos jurídicos do caso e emitirão um novo relatório.
4. Avaliação dos relatórios: por fim, os representantes dos membros da OMC avaliam os relatórios e emitem uma decisão final sobre o caso.
Caso se conclua que houve efetiva violação aos acordos da OMC, recomenda-se que o país condenado retire a medida e ajuste sua conduta. Se isso não for feito, o país demandante é autorizado a aplicar sanções comerciais, como a retirada das vantagens tarifárias e outras obrigações comerciais concedidas ao responsável pela violação, com base nos acordos da OMC.
O problema no OSC reside no Órgão de Apelação, que deveria ser composto por sete juízes, sendo necessários três para decidir cada caso. Esses juízes são escolhidos por consenso dos membros da OMC, com mandato de quatro anos, renovável uma vez.
As severas críticas estadunidenses ao Órgão de Apelação começaram no governo Obama. Desde 2017, no primeiro mandato de Trump, os EUA vetaram os juízes escolhidos para compor o Órgão de Apelação. Sob o governo Biden, havia expectativas positivas, mas não houve avanços, e a situação vem se agravando. Desde 2019, a OMC não conta com o número mínimo de três juízes para julgar os recursos no Órgão de Apelação, o que compromete a eficácia da organização e enfraquece o compromisso dos países com os acordos firmados. Ou seja, a crise não surgiu neste governo de Trump e não é sua responsabilidade exclusiva, mas agora se intensifica [4].
Crise no comércio internacional e o aumento de tarifas
Dessa forma, a paralisação do Órgão de Apelação abre espaço para medidas contrárias aos acordos da OMC, como as que o atual governo Trump vem anunciando e começou a implementar. Aumento de imposto sobre a importação acima dos limites acordados na OMC [5], assim como a imposição de alíquotas diferenciadas com base no posicionamento político dos líderes de outros países membros da Organização, viola frontalmente compromissos assumidos na OMC, inclusive regras fundamentais, como o princípio da nação mais favorecida e os binding tariffs (ou tarifas consolidadas).
Caso os EUA continuem e ampliem essas arbitrariedades, outros países se sentirão legitimados a adotar práticas semelhantes, o que redundaria em mais incertezas e grande insegurança para o mundo inteiro. Diante do enfraquecimento da OMC, consolidar-se-ia um ambiente adequado para violação dos acordos e enfraquecimento do multilateralismo comercial.
Aqui no Brasil, isso vai afetar fortemente nossa economia, impactando especialmente o agronegócio e também outros setores competitivos. Nesse sentido, estamos verificando a imposição por Trump de tarifa de 25% sobre o aço e alumínio, em decreto recém-assinado.
Considerações finais
Dessarte, o OSC da OMC está desmontado, de forma que, respondendo à questão proposta no título deste artigo, a organização está sem condições de atender e responder aos pleitos contra os violadores dos seus acordos.
É imprescindível que, neste momento tão delicado, as lideranças internacionais, como o Brasil no G20, como França e Alemanha na União Europeia, deixem de lado as rivalidades e se unam para evitar o desmantelamento da OMC e a perda do equilíbrio construído ao longo de décadas de muito trabalho e intensas negociações.
Diante de intensas dificuldades e grandes desafios, é ainda muito mais importante e necessário que as regras multilaterais sejam respeitadas, para que os laços comerciais não se desfaçam, gerando perdas econômicas muito significativas e intensificação das tensões internacionais.
[1] Para sentir no corpo a onda do mar, entretanto, vai ter que sair.
[2] E é também grande poluidor do planeta, sendo os estadunidenses que têm o maior índice de emissão de CO2 per capita.
[3] Sobre a estrutura do OSC da OMC e suas idiossincrasias, recomenda a leitura do seguinte artigo: MEIRA, Liziane Angelotti; SANTANA, H. L. ; NEIVA, L. J. F. . As regras do comércio internacional no desfecho do contencioso do algodão (DS267). REVISTA DE DIREITO CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL, v. 99, p. 303-320, 2017 (Disponível em . Acesso em: 09 fev. 2025)
[4] Conforme observou a amiga Fernanda Kotzias sobre o tema, no seu interessantíssimo artigo sobre política e comércio internacional, “a verdade é que os indícios e raízes do movimento advêm de um conjunto de variáveis mais complexa do que uma simples eleição”. “Geopolítica e comércio internacional: o que esperar em 2025” (Disponível em . Acesso em: 09 fev. 2025).
[5] Sobre essa querela tarifária, recomendo o excelente artigo “As tarifas estão de volta!”, de autoria de Rosaldo Trevisan (Disponível em . Acesso em: 09 fev. 2025)
Liziane Angelotti Meira
presidente da 2ª Seção do Carf, auditora fiscal da Receita Federal, professora, pesquisadora e coordenadora adjunta do Programa de Mestrado em Políticas Públicas e Governo da FGV-EPPG, membro da Academia Internacional de Direito Aduaneiro, doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, mestre em Direito e especialista em Tributação Internacional pela Universidade Harvard e agraciada com o Prêmio Landon H. Gammon Fellow por Harvard.