Tributar crowdfunding gera insegurança jurídica e conflito de competências

Gustavo Brigagão

Atendendo ao convite que me foi gentilmente feito pelo professor Paulo de Barros Carvalho e pela coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos de Direito Tributário (Ibet), professora Priscila Souza, participarei, nesta data, do XIII Congresso Nacional de Estudos Tributários – 50 Anos do Código Tributário Nacional, em São Paulo. Nesta oportunidade, falarei sobre a insegurança jurídica e os conflitos de competência que se dão nas atividades desenvolvidas no âmbito da internet, entre elas o crowdfunding e a divulgação de publicidade em websites e mídias sociais.

Temas como esse costumam despertar o interesse porque, com o avanço tecnológico, surgem no âmbito da internet novas atividades e alternativas de negócio cuja natureza, por ser de difícil identificação, torna complexa e polêmica a definição das regras de tributação sobre elas incidentes.

Em decorrência da capacidade contributiva demonstrada pelos volumes financeiros movimentados no exercício dessas novas atividades, vê-se, com facilidade, que elas não deveriam, pelo menos em tese, escapar a alguma forma de tributação, sob pena de estar-se dando tratamento desigual às operações realizadas na rede mundial de computadores, quando comparadas com aquelas (similares) realizadas pelos meios tradicionais.

Porém, como já tive a oportunidade de demonstrar neste espaço, a verificação da existência de capacidade contributiva não é suficiente para que determinado fato seja tributado. Para tanto, é necessária a existência de lei que estabeleça essa tributação de forma precisa e detalhada.

Logo, a adequação das normas tributárias à nova realidade e a consequente abrangência pelas regras de tributação de todas as operações não antes existentes (mas que denotam capacidade contributiva por parte de quem as realiza) dependerá sempre de ajustes da legislação em vigor dos quais resultem a expressa previsão daquelas operações entre as situações (ou fatos) que, ao ocorrerem, propiciam o nascimento da obrigação tributária.

Note-se que a alternativa da aplicação da analogia, possível em outros ramos do Direito, não poderá ser adotada para suprir essa omissão legislativa, por força do disposto nos artigos 9º e 108, parágrafo 1º do Código Tributário Nacional, cujos 50 anos de existência são comemorados no Congresso do Ibet a que me referi acima.

Com essas premissas em mente, ao examinar as incidências a que estariam sujeitas essas novas atividades realizadas no âmbito da internet, o intérprete e/ou o aplicador da norma tributária devem se perguntar: a legislação tributária hoje em vigor é suficiente para alcançar essas operações que surgem no âmbito da internet? É possível aplicar conceitos que foram desenvolvidos para um mundo de circulação física de bens e com limites territoriais claros a essas novas operações?

No que diz respeito à tributação da divulgação de publicidade em websites e mídias sociais pelo ICMS e pelo ISS, remeto os leitores às colunas em que tive a oportunidade de examinar essa questão e concluir pela impossibilidade de ambas as incidências nessas atividades (leia em Divulgação de publicidade e propaganda na internet não sofre incidência do ICMS e Divulgação de publicidade e propaganda na internet não sofre incidência do ISS).

No que diz respeito ao crowdfunding (ou “financiamento coletivo”), ele designa um modelo de captação de recursos pelo qual determinada pessoa (“captador”) realiza uma chamada pública, geralmente por meio da internet, com o objetivo de atrair interessados em contribuir com recursos financeiros destinados à consecução de determinado projeto e/ou empreendimento.

Para que a referida chamada seja bem-sucedida, é necessário que a meta de arrecadação pré-fixada para o início da efetivação do empreendimento seja atingida. Do contrário e em regra, as contribuições são devolvidas aos respectivos financiadores, em espécie ou em crédito para projetos futuros.

Repare o leitor que a implementação de grandes empreendimentos por meio de financiamento coletivo não chega a representar, por si só, uma inovação. Há registros de que a montagem da Estátua da Liberdade, ainda no ano de 1885, somente foi viabilizada por meio de uma campanha de captação de recursos junto à população[1].

Narra-se que, à época, o então governador do estado de Nova York, Grover Cleveland, recusou-se a utilizar fundos governamentais para custear a instalação do monumento. O Congresso, por sua vez, não chegou a um acordo sobre a possibilidade de concessão de um pacote de financiamento para esse fim.

Nesse contexto de incertezas, algumas cidades norte-americanas (São Francisco, Filadélfia, Baltimore e Boston) se ofereceram para financiar a montagem da estátua em seus territórios. Foi quando Joseph Pulitzer, diretor do The New York World, iniciou uma campanha de financiamento coletivo para custear a instalação da estátua em Nova York, que, ao final, provou-se extremamente bem-sucedida. Contando com mais de 160 mil doadores, foram captados todos os recursos necessários à montagem da Estátua da Liberdade, que lá permanece como um dos maiores símbolos da cidade até os dias atuais.

Em terras brasileiras, temos exemplo similar.

Conta-se que a montagem dos blocos que compõem o Cristo Redentor, na cidade do Rio de Janeiro, também foi viabilizada por meio da captação coletiva de recursos. Em campanha iniciada no ano de 1921, a Igreja Católica teria angariado junto a fiéis e devotos os recursos necessários à instalação da referida estátua.

Foi, contudo, com o advento da internet que os “financiamentos coletivos” se popularizaram, já havendo registro, somente no Brasil, de mais de 20 plataformas ativas para a captação de recursos junto ao grande público.

Em seu formato atual, o crowdfunding se alicerça, via de regra, em uma estrutura tripartite, que envolve as seguintes partes: (i) o empreendedor/captador, isto é, a pessoa interessada em angariar recursos para determinado projeto; (ii) o “intermediário”, assim entendido aquele que disponibiliza e administra a plataforma on-line por meio da qual os recursos são captados; e, por fim, (iii) os doadores/financiadores, ou seja, os indivíduos que contribuem com recursos para o projeto ou empreendimento em questão.

Entre as atividades acima, desempenhadas no contexto do financiamento coletivo, a única que parece ter os seus contornos razoavelmente delimitados é a desempenhada por aquele que disponibiliza e administra a plataforma on-line, que em muito se aproxima da prestação regular de serviços de “intermediação” (item 10 da Lista de Serviços anexa à Lei Complementar 116/03[2]).

A jurisprudência relativa a essa atividade é muito embrionária. O único precedente de que tenho notícia que buscou definir a sua natureza é a decisão proferida pelo Tribunal Superior Eleitoral que, ao responder consulta formulada pelo deputado Jean Wyllys sobre a possibilidade de captação de recursos para campanha eleitoral por meio de plataforma de crowdfunding, atribuiu a natureza de prestação de serviço às atividades desempenhadas por tais “intermediários”:

“As técnicas e serviços de financiamento coletivo (crowdfunding), como se vê do segundo questionamento formulado, envolvem a figura de um organizador, ou seja, uma pessoa jurídica ou física, que é responsável pela arrecadação e posterior repasse dos valores recebidos ao financiado. Tais serviços podem ser realizados gratuitamente, mas, geralmente, são remunerados em percentuais relevantes. Assim, admitir a adoção de um intermediário para a arrecadação de recursos que possa, ainda que em tese, ser remunerado pelos valores que vierem a ser captados seria desvirtuar o próprio conceito da doação eleitoral” (TSE, Consulta 208-87.2014.6.00.0000, Classe 10, Distrito Federal, sessão de 22/5/2014).

Parece-nos correta essa avaliação. De fato, parece indiscutível que a atividade desempenhada pelo “intermediário” tem a natureza de uma obrigação de fazer, com todos os contornos próprios de uma prestação de serviços.

Mas que município seria competente para cobrar o ISS sobre ela incidente?

A tentativa de responder a essa pergunta é sempre envolta de profunda incerteza, em decorrência da complexidade prática relativa à forma como esses serviços são prestados, o que impede a definição precisa da localização do respectivo estabelecimento prestador e, consequentemente, nos termos da Lei Complementar 116/03, do município competente para tributá-los.

De fato, por se tratar de atividade desenvolvida no âmbito da internet, é possível que o servidor que hospeda a plataforma on-line esteja situado em um município, e a equipe responsável pela manutenção/administração do website, em outro. É igualmente possível que tal atividade seja completamente descentralizada, atuando cada indivíduo responsável pela plataforma em uma localidade diversa no país ou mesmo no mundo.

Disso decorre potencial e provável conflito de competência na determinação do município competente para a cobrança do ISS incidente nessas atividades, não resolvido, como deveria, pela lei complementar de regência.

Mas, como dissemos anteriormente, dos três players que atuam no crowdfunding, a definição da natureza jurídica da atividade exercida pelo intermediário é a menos complexa.

Tarefa mais nebulosa é a relativa à definição do tratamento tributário a ser adotado em relação às demais relações jurídicas que se estabelecem no contexto do financiamento coletivo de empreendimentos.

Isso porque, como observam os estudiosos do assunto, há pelo menos cinco modalidades “mais comuns” de projetos financiados por meio de crowdfunding[3]:

“Apesar de não tratar-se de um rol taxativo, atualmente, os formatos mais comuns de negócio baseados em crowdfunding são, na visão de Vinícius Maximiliano Carneiro, cinco, quais sejam: (a) para fins filantrópicos ou para projetos sociais; (b) de produtos ou serviços existentes ou em desenvolvimento; (c) para abertura de novas empresas; (d) de empréstimo para pessoas físicas e jurídicas; (e) de clubes de investimento”.

Não nos parece possível atribuir uma só natureza jurídica que seja comum a todas essas modalidades de crowdfunding, na medida em que os interesses objetivados pelas partes (financiadores e captadores) são substancialmente distintos em cada caso. Cabe-nos, por essa razão, fazer esse exame em cada uma das situações acima referidas.

Ao fazermos esse exame na hipótese em que o financiador, por pura e simples liberalidade, decide contribuir para determinado projeto de cunho humanitário (modalidade classificada pela doutrina como “crowdfunding não oneroso” para fins filantrópicos), não nos parece haver dúvidas de que, pela essência da operação, a ela deve ser atribuída a natureza jurídica de doação.

Mas, fixada essa premissa, entramos novamente em um terreno de incertezas, em que surgem dúvidas como as que seguem: (a) Qual seria o momento correto para o recolhimento do ITCMD: aquele em que a contribuição é depositada pelo financiador junto à plataforma virtual, ou apenas quando a meta fixada para o projeto é atingida e os recursos são vertidos em favor do captador? (b) Como proceder nos casos em que o doador mantém residência no exterior, ante a ausência de lei complementar que regulamente a cobrança do ITCMD nessas situações[4][5]? (c) Seria possível aplicar ao financiamento de projetos por meio de crowfunding as isenções de ITCMD usualmente previstas nas legislações estaduais para doações de pequena monta?

Questões ainda mais complexas e relevantes afloram quando examinamos a modalidade de financiamento coletivo conhecida como “crowdfunding oneroso”, em que o financiador realiza a contribuição com o objetivo de obter uma contrapartida por parte do captador, que pode se materializar na entrega de bens, serviços, ou em qualquer forma de retribuição de que resulte o reconhecimento da vinculação do financiador ao empreendimento financiado (normalmente, mediante à aposição da sua marca em local de destaque, que demonstre ser ele colaborador do evento).

Na hipótese em que a contrapartida se dá por meio da entrega de bens ou serviços, parece-me razoável entender que as contribuições desembolsadas pelos financiadores representariam “adiantamento” do preço pago para fins da respectiva aquisição, e que, por conseguinte, os impostos incidentes seriam o ICMS ou o ISS, a depender da natureza da contraprestação assegurada pelo captador, e, também, no caso da entrega de bens, da possibilidade de atribuirmos a eles a natureza de “mercadorias” cuja propriedade fosse transferida ao adquirente, sem o que não haveria que se falar na incidência do imposto estadual.

Já na hipótese referida por último (retribuição de que resulte o reconhecimento da vinculação do financiador ao empreendimento financiado), parece-nos que o razoável seria sustentar que as contribuições em questão são equiparáveis a patrocínio, sendo-lhe, consequentemente, aplicável o regime de tributação próprio dessa atividade.

Ocorre que, aqui também, estaremos em zona de insegurança no que concerne à possibilidade de incidência do ISS. De fato, não obstante tais atividades (relativas à disponibilização de espaço para veiculação da marca do investidor) serem equiparáveis a mera “locação” (por envolverem, em regra, mera obrigação de “dar”, qual seja, a cessão de determinado espaço publicitário), estando, portanto, fora do âmbito de incidência do ISS[6], é comum que os municípios tentem fazer incidir o imposto municipal sobre verbas dessa natureza.

Sob outro enfoque, também seria possível sustentar que as contribuições em questão seriam espécie de doação “onerosa” ou “condicional”, em que o “doador” (financiador) estaria contribuindo para o empreendimento sob a condição de que o captador lhe recompensasse com bens, serviços ou exposição publicitária, o que faria com que tal operação estivesse sujeita ao ITCMD.

Essa linha de entendimento tem sido criticada, sob o argumento de que a “condição” em comento teria sido imposta unilateralmente pelo “donatário” (e não pelo “doador”), subvertendo-se, assim, a lógica da doação “onerosa”[7].

Para os autores, as operações em questão ostentariam a natureza de “promessa de recompensa”, a qual é regulamentada pelo artigo 854 do Código Civil, que prevê que “aquele que, por anúncios públicos, se comprometer a recompensar, ou gratificar, a quem preencha certa condição, ou desempenhe certo serviço, contrai obrigação de cumprir o prometido” [8].

Todos os questionamentos até o momento feitos demonstram a inequívoca necessidade de que a matéria seja regulamentada. E tal regulamentação, tendo em vista os potenciais conflitos de competência envolvidos, deverá ser feita por lei complementar, sob pena de a operação não poder ser tributada, como decidiu o Supremo Tribunal Federal nos precedentes relativos à incidência do já não mais existente Adicional do Imposto de Renda (Adir) e do ICMS sobre a prestação de serviços de transportes aéreos de pessoas.

Essa insegurança jurídica, causada por essa e outras circunstâncias similares propiciadas por falhas no nosso Sistema Tributário Nacional, afasta investidores e inibe a livre iniciativa, tornando o Brasil opção menos atrativa para o florescimento de novos negócios e empreendimentos. Impõe-se, portanto, aos legisladores o dever de definir a natureza e os contornos jurídicos dessas atividades realizadas no âmbito da internet de forma a que seja possível a determinação da tributação que lhe seja própria.

[1] British Broadcasting Corporation (BBC). Artigo publicado em 25/4/2013. Disponível em . Acesso em 24/10/2016.
[2] “10 – Serviços de intermediação e congêneres.” Vale mencionar que, ainda assim, há controvérsia sobre a possibilidade de enquadramento dos serviços desempenhados pelas plataformas de crowdfunding como uma mera intermediação (uma vez que tais atividades teriam um escopo mais amplo). Sobre o tema, recomendamos a leitura de artigo publicado por Gabriela Lima (DE LIMA, Gabriela Eulalio. A tributação do crowdfunding no sistema jurídico brasileiro. Revista Tributária e de Finanças Públicas. São Paulo: Revista dos Tribunais. Vol. 125/2015, p. 142-143.)
[3] LIMA, Gabriela Eulalio. Op. Cit., p. 132, citando GIARDELI, Gil e CARNEIRO, Vinícius Maximiliano, em Direito da Multidão: oportunidades x burocracia no crowdfunding nacional. 1. Ed. [S.I. : s. n. ]. 2014. Disponível em: . Acesso em 24/10/2016.
[4] CF/88 – “Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:; I – transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos; (…) § 1º O imposto previsto no inciso I: (..) III – terá competência para sua instituição regulada por lei complementar: a) se o doador tiver domicilio ou residência no exterior”.
[5] BRIGAGÃO, Gustavo. Sem lei complementar, não há ITD em doação e herança provenientes do exterior. Disponível em . Acesso em 31/10/2016.
[6] Conforme decidiu o STF, RE 116.121, rel. p/ acórdão min. Marco Aurélio, DJ de 25/5/2001.
[7] CORREIO, Armênio Lopes e POMPEU, Renata Guimarães. Considerações sobre o regime legal de tributação na operação de crowdfunding por recompensa, em Revista Tributária e de Finanças Públicas, vol. 129, jun-ago/2016, p. 89.
[8] “Ainda que se utilize a expressão de “doação” para os depósitos voluntários feitos por meio do financiamento coletivo, não parece que esse desenhe um contrato de doação nos moldes como tradicionalmente o negócio opera. Por esses motivos o crowdfuding como sistema de recompensa parece se aproximar mais do negócio jurídico unilateral da promessa, nos termos do art. 854 do Código Civil Brasileiro, do que propriamente da doação” (CORREIA, Armênio Lopes e POMPEU, Renata Guimarães. Op. Cit., p. 89.).

Gustavo Brigagão

Sócio do escritório Ulhôa Canto, Rezende e Guerra Advogados; presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF); membro do Comitê Executivo da International Fiscal Association (IFA); presidente da Câmara Britânica do Rio de Janeiro (BRITCHAM-RJ); conselheiro da OAB-RJ; diretor de Relações Internacionais do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa); diretor da Federação das Câmaras de Comércio do Exterior (FCCE); e professor em cursos de pós-graduação na Fundação Getulio Vargas.

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