Tributação das altas rendas e miscelânea metódica no cálculo do redutor previsto pelo PL 1.087
Diego Bomfim
O Brasil tem um sistema tributário regressivo e que, portanto, termina por onerar proporcionalmente mais quem tem menos capacidade contributiva. Isso decorre de muitos fatores distintos, mas, fundamentalmente, em razão de termos um sistema majoritariamente baseado na tributação sobre o consumo (que é ínsita e estruturalmente regressiva) em comparação com a tributação da renda e do patrimônio.
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Esse efeito regressivo é acentuado no âmbito do imposto de renda das pessoas físicas por um histórico longo de não correção monetária da tabela que prescreve as faixas de tributação e, ainda, pela previsão de poucas e concentradas faixas de alíquotas nominais. Isso gera a tributação de rendas de pessoas com baixa capacidade contributiva, com a fixação de uma progressividade acentuada apenas nas faixas iniciais de renda.
Parece encontrar foros de consenso a ideia de que algum ajuste de rota é necessário. Em que pese esse diagnóstico, a reforma da tributação sobre o consumo, com a criação dos novos Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), com uma alíquota combinada que pode girar em torno de 28%, parece desmentir a conclusão de que os últimos movimentos legislativos estão modalizados com esse propósito.
De todo modo, no âmbito da tributação da renda, surge agora o Projeto de Lei nº 1.087/25, que tem por objeto a implantação, no Brasil, de uma espécie de imposto mínimo sobre a renda, destinado a contribuintes que tenham auferido renda superior a R$ 600 mil. O projeto prevê a incidência desse Imposto de Renda das Pessoas Físicas Mínimo (IRPFM) sobre pessoas que aufiram rendas superiores a esse valor, sendo que a aplicação da alíquota máxima de 10% fica reservada para contribuintes que aufiram R$ 1,2 milhão ou mais.
Como começa a ser exposto pela doutrina especializada, o projeto pode ser criticado por diversos fundamentos, a começar pela falta de transparência quanto ao real objetivo da mudança que, ao final e ao cabo, pretende tributar dividendos recebidos por pessoas físicas [1], ainda que a hipótese de incidência prevista seja ligeiramente mais ampla. Além disso, já surgem vozes sustentando que o IRPFM não é propriamente um adicional do imposto de renda das pessoas físicas, tratando-se, em verdade, de um novo imposto que apenas poderia ser criado por meio de lei complementar [2]. Também não faltam críticas quanto ao fato de o IRPFM não distinguir sociedades de capital e sociedades de pessoas, o que gera uma tributação potencialmente injusta e desigual [3].
O objetivo deste pequeno texto é tratar de um ponto específico do projeto: a criação do que foi chamado, no texto do PL, de um “redutor” do IRPFM no caso de pagamento de lucros e dividendos. O redutor deve ser aplicado para evitar que a cobrança do imposto mínimo acarrete uma tributação final que, considerada a carga tributária da pessoa jurídica e da pessoa física segundo parâmetros próprios fixados no projeto, ultrapasse a alíquota nominal do Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro (CSL). De modo bastante objetivo, o redutor é aplicado quando a soma das alíquotas efetivas da pessoa jurídica e da pessoa física ultrapassar o limite da alíquota nominal combinada.
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A presença desse redutor parece ser uma resposta antecipada do governo a eventuais críticas sobre o fato de que, no final do dia, haverá tributação de dividendos, sem a redução correspondente das alíquotas incidentes na tributação corporativa. A resposta que o redutor parece ofertar é: ninguém pagará mais do 34%, mesmo que venha a ser considerada a carga tributária cumulada da pessoa jurídica e da pessoa física após a incidência do IRPFM. O projeto, portanto, nessa óptica, apenas eliminaria uma situação de subtributação.
O mecanismo, no entanto, merece revisão, especialmente na parte em que prevê a mensuração da carga tributária efetiva das pessoas jurídicas pela razão entre o valor efetivamente pago de IRPJ e CSL e o lucro contábil apurado no exercício pelas pessoas jurídicas.
Não há dúvida de que a apuração das bases de cálculo do IRPJ e da CSL parte do lucro contábil apurado pelas entidades, mas, por uma série de razões jurídicas (razões essas que são sempre tomadas como relevantes pelo legislador) com ele não se confunde. O chamado lucro real é, nos termos da legislação de regência, calculado a partir do lucro contábil com adições e exclusões que o legislador considera pertinentes, para que a renda (tributável do ponto de vista jurídico) do contribuinte possa ser efetivamente onerada.
Isso não deve causar qualquer surpresa, já que a contabilidade é informativa e preparada com propósitos de reconhecimento, mensuração e evidenciação da posição econômica do contribuinte, enquanto a norma tributária, voltada à oneração da renda, não acolhe, de forma direta, a base de cálculo contábil, realizando ajustes, ora para aumentar a base (adições), ora para reduzi-la (exclusões). O lucro contábil e o lucro real, portanto, dificilmente coincidem, pois são grandezas diversas que servem a propósitos absolutamente distintos. No lucro presumido, do mesmo modo, quase sempre existe um descasamento entre o lucro contábil e o lucro fiscal, apurado pela aplicação de um percentual de presunção fixado em lei. A regra simplificadora se aplica para a mensuração da base tributável.
Condão de embaralhar
Se assim o é, a chamada carga tributária efetiva suportada pelas empresas será, em regra, de 34%, já que o imposto pago deveria ser dividido pela base imponível tributária (o lucro real ou o lucro presumido), e não sobre uma base (o lucro contábil) que sequer serve como parâmetro de mensuração da renda auferida pela pessoa jurídica.
De modo singelo: o tributo pago por uma pessoa jurídica, calculado pela aplicação da alíquota de 34% sobre a base legalmente prescrita, conforma uma carga efetiva de 34%. A tentativa de se mensurar a carga efetiva com base em outros parâmetros, como o lucro contábil, é arbitrária, notadamente porque esse dado serve a outro propósito e sequer é juridicamente tributável como renda. Como já decidiu o Supremo Tribunal Federal (RE nº 606.107), conceitos contábeis e jurídicos não se confundem, sendo indevida a subordinação da tributação a critérios contábeis.
O mecanismo de tributação mínima, como posto no projeto, tem o condão de embaralhar uma série de subregimes tributários que foram (ou deveriam ter sido) pensados com o objetivo de cumprir certas políticas públicas, já que ele gera um efeito transversal na tributação de todas as espécies de renda. Isso termina gerando uma tributação de rendimentos que, por algum fundamento constitucional, foram desonerados. Ora, ou esses rendimentos foram desonerados com um objetivo nobre e, portanto, não podem ser, depois, onerados (ainda que via um IRPFM). Ou, não, não estão amparados num fundamento constitucional (são “privilégios odiosos”) e, então, o caminho deve ser a revogação da desoneração e não sua tributação sub-reptícia.
Anda mal, portanto, o projeto de lei quando cria essa espécie de redutor, altamente complexo e que dificilmente surtirá efeitos concretos, já que é construído com base em uma miscelânea de critérios distintos, talvez porque moldado apenas para servir de resposta à crítica de que o projeto aumenta a tributação das pessoas físicas sem reduzir, de forma correspondente, a tributação das pessoas jurídicas, embaralhando o atual modelo brasileiro de integração da tributação da renda.
[1] SCAFF, Fernando Facury. Tributação disfarçada de dividendos e distribuição disfarçada de lucros. Conjur, 14/04/2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-abr-14/tributacao-disfarcada-de-dividendos-e-distribuicao-disfarcada-de-lucros/
[2] BIFANO, Elidie Palma. Projeto de Lei 1.087/25: estamos diante de mais uma confusão tributária? Conjur, 02/04/2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-abr-02/o-projeto-de-lei-1-087-25-estamos-diante-de-mais-uma-confusao-tributaria/
[3] DERZI, Misabel; e MOURA, Fernando. Isenção de IR até R$ 5.000: atecnias em busca de maior justiça tributária. Conjur, 28/03/2025. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-mar-28/pl-1087-2025-atecnias-em-busca-de-maior-justica-tributaria/
Diego Bomfim
é professor de Direito Tributário da UFBA, doutor pela USP, onde também realizou estágio de Pós-Doutoramento, presidente do Instituto de Direito Tributário da Bahia (ITB) e sócio de Bomfim Novis Advogados.