Técnica de tributação por dentro
Kiyoshi Harada
A técnica de tributação por dentro consiste em fazer com que o tributo incida sobre si próprio, como se o tributo fosse uma mercadoria ou serviço. Aumenta de forma invisível aos olhos do consumidor final a alíquota real do tributo e consequentemente o preço da mercadoria ou serviço. É uma técnica que se presta à sonegação fiscal ao contrário da tributação por fora em que o valor do tributo pertencente ao fisco é separado do preço da mercadoria ou serviço pertencente ao agente econômico que promove a venda da mercadoria ou presta o serviço. É a modalidade que vigora no Japão, nos Estados Unidos e outros países onde o fenômeno da sonegação praticamente não existe. E quando ele ocorre a perseguição criminal é pronta e eficaz graças a transparência da técnica de tributação, sem a nebulosidade que singulariza a tributação por dentro, como é o caso do nosso IPI e ICMS. O ICMS por se tratar de imposto não cumulativo procede-se ao destaque do valor do imposto para mero efeito de controle, mas que na realidade não representa o valor real do imposto que corresponde a muito mais do que a simples multiplicação da alíquota legal, no caso, de 18%, sobre o preço da mercadoria ou serviço.
Essa técnica de tributação nebulosa está consagrada na jurisprudência de longa data, bem antes de sua previsão constitucional contrastando com a tendência de excluir o valor do tributo da base de cálculo de outros tributos, um mal menor, no nosso entender.
Este artigo tem por objetivo enfocar exatamente essa realidade jurisprudencial em que os argumentos que conduzem à exclusão do valor do imposto da base de cálculo de outro tributo não servem para excluir o valor desse mesmo imposto da sua base de cálculo.
Ao julgar do RE n. 582.461 o Supremo Tribunal Federal assentou três teses: a legitimidade e constitucionalidade do emprego da Taxa Selic para atualização de débitos tributários; a constitucionalidade da inclusão do valor do ICMS na base de cálculo desse imposto; e a razoabilidade e constitucionalidade da multa moratória de 20%. Reconheceu a existência de repercussão geral nessas questões constitucionais discutidas.
Neste artigo examinaremos a questão da inclusão do valor do imposto na sua própria base de cálculo. Para tanto transcrevamos para melhor exame a Ementa desse julgado:
“Ementa1. Recurso extraordinário. Repercussão geral. 2. Taxa Selic. Incidência para atualização de débitos tributários. Legitimidade. Inexistência de violação aos princípios da legalidade e da anterioridade. Necessidade de adoção de critério isonômico. No julgamento da ADI 2.214, Rel. Min. Maurício Corrêa, Tribunal Pleno, DJ 19.4.2002, ao apreciar o tema, esta Corte assentou que a medida traduz rigorosa igualdade de tratamento entre contribuinte e fisco e que não se trata de imposição tributária. 3. ICMS. Inclusão do montante do tributo em sua própria base de cálculo. Constitucionalidade. Precedentes. A base de cálculo do ICMS, definida como o valor da operação da circulação de mercadorias (art. 155, II, da CF/1988, c/c arts. 2º, I, e 8º, I, da LC 87/1996), inclui o próprio montante do ICMS incidente, pois ele faz parte da importância paga pelo comprador e recebida pelo vendedor na operação. A Emenda Constitucional nº 33, de 2001, inseriu a alínea “i” no inciso XII do § 2º do art. 155 da Constituição Federal, para fazer constar que cabe à lei complementar “fixar a base de cálculo, de modo que o montante do imposto a integre, também na importação do exterior de bem, mercadoria ou serviço”. Ora, se o texto dispõe que o ICMS deve ser calculado com o montante do imposto inserido em sua própria base de cálculo também na importação de bens, naturalmente a interpretação que há de ser feita é que o imposto já era calculado dessa forma em relação às operações internas. Com a alteração constitucional a Lei Complementar ficou autorizada a dar tratamento isonômico na determinação da base de cálculo entre as operações ou prestações internas com as importações do exterior, de modo que o ICMS será calculado "por dentro" em ambos os casos. 4. Multa moratória. Patamar de 20%. Razoabilidade. Inexistência de efeito confiscatório. Precedentes. A aplicação da multa moratória tem o objetivo de sancionar o contribuinte que não cumpre suas obrigações tributárias, prestigiando a conduta daqueles que pagam em dia seus tributos aos cofres públicos. Assim, para que a multa moratória cumpra sua função de desencorajar a elisão fiscal, de um lado não pode ser pífia, mas, de outro, não pode ter um importe que lhe confira característica confiscatória, inviabilizando inclusive o recolhimento de futuros tributos. O acórdão recorrido encontra amparo na jurisprudência desta Suprema Corte, segundo a qual não é confiscatória a multa moratória no importe de 20% (vinte por cento). 5. Recurso extraordinário a que se nega provimento.” (Recurso Extraordinário nº 582.461/SP, Rel. Min, Gilmar Mendes, Julgamento em 18/05/2011, REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-158 DIVULG 17-08-2011 PUBLIC 18-08-2011 EMENT VOL-02568-02 PP-00177).
Como se pode constatar do exame do item 3 da ementa, a Emenda Constitucional n. 33, de 11-12-2001, ao incluir a letra i no inciso XII, do par. 2º , do art. 155 da CF dispondo que cabe a lei complementar fixar a base de cálculo, de modo que o montante do imposto a integre, também na importação do exterior de bem, mercadoria ou serviço teria partido do pressuposto de que o imposto já era calculado por dentro em relação às operações internas.
De fato, a Lei Complementar n. 87/96, lei de regência nacional do ICMS dispõe no inciso I, do par. 1º, do art. 13 que integra a base de calculo do imposto o montante do próprio imposto, constituindo o respectivo destaque mera indicação para fins de controle.
E mais, antes da LC n. 87/96, na vigência do antigo ICM o STF declarava a constitucionalidade da tributação por dentro. Na época, não havia previsão legal ou constitucional de inclusão do valor do ICM na sua própria base de cálculo.
Ocorre que aquele dispositivo da LC n. 87/96 não tinha matriz constitucional quando foi editado, como até hoje continua não tendo em relação às operações internas.
Outros sim, o V. Acórdão da Corte Suprema argumenta que a base de cálculo do ICMS, definida como o valor da operação de circulação de mercadorias (art. 155, II, da CF/1988, c/c arts. 2º, I e 8º, I, d LC 87/1996), inclui o próprio montante do ICMS incidente, pois ele faz parte da importância paga pelo comprador e recebida pelo vendedor na operação.
Na verdade, a questão que se coloca não é a de saber se o ICMS faz parte da importância paga pelo comprador a título de preço de aquisição da mercadoria. O que é relevante saber é se o imposto que tem como fato gerador a circulação de mercadorias e serviços, circulação essa entendida em seu sentido jurídico (negócio bilateral) pode ou não incluir nesse conceito o imposto. Afinal, o ICMS não incide sobre a circulação de imposto, e nem isso seria possível. No caso da COFINS o STF já proferiu seis votos no sentido da exclusão do ICMS da base de cálculo daquela contribuição social que na dicção constitucional tem como fato gerador o faturamento e o imposto não pode estar compreendido no conceito de faturamento (RE n. 240.785, Rel. Min. Marco Aurélio). A exclusão do ICMS da base de cálculo da COFINS conduzirá a um complicado cálculo desse imposto por dentro, não sendo correta a simples dedução do imposto destacado para os fins de controle fiscal na implementação do princípio da não cumulatividade. E sabemos todos nós que o cálculo por dentro conduz a uma alíquota real bem superior à legal de 18%. A tese da exclusão, para ser coerente, deve bater-se pela exclusão total do valor que representa o ICMS e não parte apenas parte dele por ser uma operação cômoda. Por conta da demora na ultimação desse julgamento que já conta com maioria necessária para emplacar a tese da exclusão, juízes e tribunais locais vêm determinando a exclusão não apenas do ICMS, como também do ISS da base de cálculo do PIS/COFINS. E certamente a tese evoluirá para a exclusão do valor do PIS/COFINS da base de cálculo do ICMS/ISS, se mantida a coerência de raciocínio. Confrontadas as duas situações – a inclusão do ICMS na base de cálculo da COFINS e a inclusão do ICMS na sua base de cálculo – os argumentos são conflitantes. Se o ICMS não pode ser incluído na base de cálculo da COFINS porque não configura mercadoria ou serviço a ser objeto de faturamento, com muito maior razão o ICMS não pode ser incluído na sua base de cálculo, pois o imposto não pode ser objeto de circulação, mas sim a mercadoria ou o serviço. Nem se pode cogitar da figura de tributação do imposto, isto é, o próprio imposto ser objeto do imposto.
Em outro Acórdão o STF reconheceu a inconstitucionalidade da inclusão do valor do ICMS no valor aduaneiro que serve de base de cálculo do PIS-COFINS/importação, bem como do valor das próprias contribuições, tendo em vista a dicção da letra a, do inciso III, do par. 2º do art. 149 da CF que se refere apenas ao valor aduaneiro como base de cálculo dessas contribuições sociais (RE n. 559.607, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe de 22-2-2009). Foi reconhecida a existência de repercussão geral da questão constitucional discutida. No mesmo sentido o RE n. 559937, Rel. Min. Ellen Gracie, Relator para Acórdão Min. Dias Toffoli, DJe de 4-4-2013).
A tributação por dentro, que faz com que o imposto incida sobre si próprio ensejando aumento tributário não visível ao consumidor, atenta contra o princípio de transparência tributária inscrito no par. 5º, do art. 150 da CF segundo o qual a lei determinará medidas para que os consumidores sejam esclarecidos acerca dos impostos que incidam sobre mercadorias e serviços. A expressão final impostos que incidam sobre mercadorias e serviços, por si só, está a excluir a tributação do próprio imposto.
É preciso que a questão enfocada neste artigo seja examinada de forma sistemática tendo em conta a ordem jurídica global para evitar decisões conflitantes nos argumentos utilizados, n’um e n’outro caso.
O princípio da segurança jurídica, qualquer que seja a tese, pela exclusão ou pela inclusão do ICMS na sua base de cálculo ou na de outro tributo, pouco importa, exige argumentação jurídica uniforme que se harmonize com o ordenamento jurídico global.
Kiyoshi Harada
Sócio fundador da Harada Advogados Associados. Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Financeiro, Tributário e Administrativo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos - CEPEJUR. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo e ex-Diretor da Escola Paulista de Advocacia.