Supremo acertou ao interferir no caso do aumento do IOF
Isaac Kofi Medeiros
A judicialização da derrubada do aumento do IOF é uma oportunidade boa para adicionar complexidade a uma discussão que, a meu ver, tem sido feita de forma reducionista. Quando o Supremo Tribunal Federal interfere no Legislativo ou Executivo, ele está sendo necessariamente ativista?
Reprodução
Foram ajuizadas três ações no STF sobre o aumento do IOF. Uma pela oposição para cassar o aumento, outra pelo PSOL para anular o decreto legislativo que cassou o aumento e outra pelo governo com a mesma finalidade. Enquanto escrevia este artigo, o ministro Alexandre de Moraes havia acabado de conceder liminar determinando o retorno da eficácia do decreto que aumentou o IOF, dando, por ora, prevalência ao Executivo na matéria. Não importa a decisão que for tomada ao final, creio que será taxada de ativista pelo campo político perdedor por interferir em matéria dos demais Poderes.
Mas o que é ativismo?
Uma maneira reducionista de analisar o ativismo é dizer ser ativista qualquer decisão do Supremo que interfira no funcionamento dos outros Poderes. Essa fórmula está errada porque coincide parcialmente com um princípio básico e legítimo de qualquer democracia ocidental: a ideia de freios e contrapesos.
Na sua definição mais convencional, estabelecida por James Madison, os Poderes são dispostos de tal maneira que um controla o outro, fazendo uso da rivalidade de interesses contrapostos. Madison estava preocupado que o texto constitucional não fosse mera “barreira de pergaminho” contra o abuso de poder. Dentro de sua visão pragmática, aprofundou uma noção, já esboçada por Montesquieu, de que a interferência de um Poder sobre o outro conteria os abusos e garantiria a liberdade. [1] Ou seja, não seria o texto constitucional que conteria o abuso de poder, mas o uso do próprio poder contra ele mesmo. Daí a qualidade pragmática dessa arquitetura constitucional.
Percebem que, assim definida, a noção histórica de contrapeso coincide com a de ativismo judicial atualmente difundida?
No entanto, quando falamos em ativismo, queremos majoritariamente nos referir a algo ilegítimo. Uma degeneração da atividade jurisdicional, cuja inércia não combina com postura proativa. Logo, deve haver uma diferença substancial entre ativismo ilegítimo e contrapeso legítimo, este último consagrado pela doutrina constitucionalista, pela Constituição e, creio, por todos os brasileiros preocupados com nossa democracia.
Ativismo é quando prejudica a política preferencial
Sem estabelecermos uma distinção, o ativismo se torna um conceito referencial. Ou seja, é ativista o juiz que prejudica a minha política de preferência, como na famosa charge de Jesse Springer, onde há dois juízes lutando num ringue e um observador pergunta qual é o ativista e qual é o honorável. Outro observador responde: “depende de qual deles você concorda”. Se for assim, se tudo é política, o termo ativismo judicial não é jurídico e não vale a perda do nosso tempo.
Spacca
Essa percepção política das atividades do STF não é ocasional. Há tempos que o controle de constitucionalidade na Corte se tornou um meio de transformar o Supremo em um “tribunal de pequenas causas políticas” [2]. A Corte assume para si, sem muitas ressalvas, a tarefa de se pronunciar sobre temas politicamente controvertidos apresentados por partidos, colocando-se na arena da política — com os reveses daí decorrentes — para derrubar decisões do Legislativo e do Executivo [3].
Não há país no mundo cuja entrada à Corte Constitucional pela classe política seja tão facilitada e livre de riscos. No Brasil, basta que o partido tenha um representante no Congresso, diferente, por exemplo, do modelo predominante no continente europeu, onde uma ação dessa natureza precisa ser subscrita por parcela considerável do Parlamento (1/3 na Áustria, 1/5 no Senado da Espanha, 1/6 no Senado da França, etc), o que impõe custos de negociação entre a oposição. Como no Brasil o controle de entrada é complacente e o sistema é multipartidário (e põe multi nisso), a política entra porta adentro com facilidade e frequência, sem riscos para os litigantes, que sequer pagam custas.
Por consequência, discussões jurídicas ganham audiência política (para não dizer torcida), que mistura opinião com técnica constitucional: o que não gosto, é contrário à Constituição. Aliás, nem os juristas escapam da tentação de legitimar suas opiniões pessoais sobre políticas públicas com argumentos constitucionais. Como lembra Jeremy Waldron, as pessoas depositam esperanças no controle de constitucionalidade “quando querem maior peso para suas opiniões do que conseguiriam com a política eleitoral” [4]. Faria bem a todos nós nessas horas o lendário carimbo (talvez fictício) de Antonin Scalia, ex-juiz da Suprema Corte dos EUA, estampado com os dizeres Stupid But Constitucional. Ou seja, a lei pode até ser ruim; mas se é constitucional, permanece de pé.
Ativismo x contrapeso
Bom, se ativismo não é opinião, então o que ele é? O problema é que ativismo judicial é em sua origem um termo jornalístico e não uma definição científica [5]. A academia veio depois, a reboque, e tentou conceituar o fenômeno como uma invasão do Judiciário no núcleo essencial de funcionamento dos Poderes Legislativo e Executivo, por meio de uma decisão que revela postura proativa que não combina com a inércia jurisdicional, geralmente destoando daquilo que prevê o direito positivo e amparada em princípios constitucionais genéricos [6].
Sigamos essa linha, aplicando o conceito em dois casos concretos. Um ativista, outro de contrapeso.
Um exemplo de decisão ativista. Em 2007, o STF estabeleceu que o mandato parlamentar pertence ao partido, não ao candidato eleito, consagrando a chamada fidelidade partidária. Esta regra não estava escrita em lugar algum. Com base em princípios constitucionais abstratos e um punhado de boas intenções, o STF se arvorou no papel do Congresso e abertamente legislou. No mérito, a regra é boa? Talvez, mas essa é a minha opinião. A Constituição não a previa. Ou seja, a regra criada pelo STF destoou do direito positivo, em virtude de uma postura proativa do Supremo, que tentava resolver com as próprias mãos defeitos do sistema político-eleitoral.
Um exemplo de contrapeso. Durante a pandemia, a oposição parlamentar no Senado reuniu assinaturas suficientes para instalar a CPI da Covid-19. O presidente da Casa se manteve inerte e não determinou a abertura da comissão parlamentar. Diziam à época que ele podia não abrir a CPI, por ser matéria interna corporis do Legislativo. Porém, a CPI é um típico instrumento de contrapeso do Legislativo contra o Executivo, previsto explicitamente na Constituição, cujo texto estipula até mesmo o quórum mínimo para instaurar a Comissão.
A Presidência do Senado, por sua inércia, cometia uma inconstitucionalidade nítida, em virtude de ofender direito positivado claramente no texto constitucional. O STF agiu de forma legítima, sem ativismo, e determinou a abertura da CPI.
Aumento do IOF seria ativismo?
Com base nisso, podemos responder se eventual decisão final do STF de interferir na questão do IOF é ativista ou não. A controvérsia reside no seguinte. Segundo o § 1º do artigo 153 da Constituição, compete ao Executivo alterar as alíquotas de impostos como o IOF, o que aconteceu no caso. Por outro lado, o artigo 49 da Constituição prevê que o Congresso Nacional pode sustar atos normativos do Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites da delegação legislativa.
O artigo 49 estipula um exemplo clássico de contrapeso do Legislativo contra o Executivo. A competência de legislar é originalmente do Legislativo. Em algumas leis, o Legislativo defere ao Executivo a competência de regulamentação da matéria, dando a ela mais detalhes. No entanto, como esse direito é do Legislativo e ele o concede oportunamente ao Executivo, pode o Congresso sustar atos do Executivo se entender que os limites do poder regulamentar foram ultrapassados.
Porém, apesar de ser uma prerrogativa do Legislativo, ela deve obedecer a critérios pois se trata de um controle jurídico do Parlamento, ao contrário de um controle político totalmente discricionário. O controle é jurídico porque visa “restaurar a ordem normativa” [7] quando o Executivo se desvia do padrão de legalidade ao editar determinada norma. Assim, o controle do Congresso só é legítimo quando juridicamente motivado.
Judiciário acertou ao interferir
No caso, o decreto legislativo do Congresso não motiva a sustação do aumento do IOF. Apenas o faz, citando o dispositivo constitucional que o autoriza fazê-lo. A rigor, é um argumento circular: “faço porque posso, sem precisar me explicar”. Não há uma linha de fundamentação que explique de que modo o decreto que aumentou o IOF extrapolou o poder regulamentar do Executivo.
A questão é ainda mais evidente em favor do Executivo por se tratar matéria constitucional. A própria Constituição concedeu ao Executivo a prerrogativa de aumentar as alíquotas de impostos como o IOF. Assim, a rigor, sequer estamos falando aqui de um direito do Legislativo concedido a outro Poder, mas de uma prerrogativa dada pelo legislador constituinte diretamente ao Poder Executivo, sem mediação do Congresso. Assim, sob todos os ângulos, o Executivo tinha o direito de aumentar o IOF e o Congresso não poderia sustar esse aumento, salvo caso de nítida extrapolação do poder regulamentar.
Por essa razão, acertou o STF, por ora, ao dar a última palavra sobre a controvérsia ao Executivo. E, vejam, sou contrário ao aumento do IOF. Prefiro pagar menos. Mas essa é só minha opinião, que não se confunde com controle de constitucionalidade.
[1] HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O federalista. Tradução de Hiltomar Martins Oliveira. Belo Horizonte: Líder, 2003, p. 317-318.
[2] O termo “tribunal de pequenas causas políticas” é de VIEIRA, Oscar V. Supremocracia. Revista Direito GV São Paulo, São Paulo: n. 8, jul/dez, 2008. p. 447-449.
[3] OLIVEIRA, Cláudio Ladeira de. Democracia e ativismo judicial: algumas considerações sobre suas causas e consequências. Revista de Direitos e Garantias Fundamentais, Vitória, v. 16, n. 1, p. 183-216, 2015, p. 192-193.
[4] WALDRON, Jeremy. A essência da oposição ao judicial review. In: BIGONHA, Antônio Carlos. A.; MOREIRA, Luiz. (Org.). Legitimidade da jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 144.
[5] CAMPOS, B. V. B. As raízes históricas do ativismo judicial na tradição jurídica norte-americana e sua repercussão no debate hermenêutico constitucional: o império dos homens sobre o direito. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Federal de Minas Gerais. Minas Gerais, 2014, p. 31.
[6] RAMOS, E. da S. Ativismo judicial: parâmetros dogmáticos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2015p. 118; KMIEC, K. D. The origin and current meanings of “Judicial Activism”. California Law Review, California, v. 92, p. 2004. p. 1463-1475.
[7] JORDÃO, Eduardo F. et al. Sustação de normas de agências reguladoras pelo Congresso Nacional: pesquisa empírica sobre a prática do art. 49, V, da CRFB. Revista Direito GV, São Paulo, v. 19, e. 2315, p. 1-30, 2023.
Isaac Kofi Medeiros
advogado e doutor em Direito do Estado pela USP, com doutorado-sanduíche (Capes) na Sapienza Università di Roma. Sócio da Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados.