Split payment e a reforma da arrecadação tributária na era digital
Silvia Piva
A trajetória das transações financeiras ao longo das últimas décadas tem refletido a capacidade de adaptação e inovação da sociedade frente aos avanços tecnológicos. Desde as trocas diretas, passando pelo uso de dinheiro físico e cartões de crédito, até chegarmos aos sofisticados sistemas de pagamento digital de hoje, percebemos um avanço notável. Em particular, os “pagamentos invisíveis” tornaram-se um marco da era digital, caracterizados pela interação quase imperceptível entre algoritmos e sistemas digitais, que processam transações instantâneas integradas às atividades diárias dos usuários.
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Recentemente, no 3º Congresso Internacional de Direito Tributário do IAT, presidido pelo professor Tácio Lacerda Gama e realizado em Trancoso (BA), o foco foi a reforma tributária, um novo paradigma que traz consigo não apenas desafios, mas também princípios e conceitos inovadores. Durante o evento, foi discutida a importância crescente do debate acadêmico em torno dessa temática, especialmente no contexto da economia digital.
No painel sobre os impactos da reforma tributária na economia digital, explorei como o modelo de split payment, já utilizado por plataformas como Uber e iFood, representa uma forma de simplificação no modelo de arrecadação tributária e que reflete a evolução das práticas financeiras impulsionadas por novas tecnologias.
Transformação tecnológica no modelo de arrecadação
Dentro deste cenário de constante evolução, o método de split payment se destaca como um desenvolvimento significativo, revolucionando especialmente o e-commerce e os marketplaces. Esse sistema permite que transações envolvendo múltiplos atores — como plataformas, fornecedores e intermediários financeiros — sejam divididas automaticamente. Por exemplo, plataformas como Uber, iFood e Amazon utilizam esse método para fracionar cada transação e direcionar as parcelas adequadamente para consumidores, fornecedores e outros intermediários financeiros no ato da compra.
No contexto tributário, a utilização do split payment promete transformar significativamente a arrecadação de tributos. Ao vincular cada pagamento à nota fiscal e ao registro contábil correspondente, garante-se que o valor transferido no sistema bancário seja idêntico ao registrado na escrituração fiscal. Isso permite que a arrecadação seja mais dinâmica e precisa, facilitando a segregação imediata do tributo devido, que é diretamente remetido ao fisco, reduzindo as possibilidades de sonegação fiscal e aumentando a eficiência da arrecadação.
Nítido, portanto, que a reforma tributária pode e deve ser entendida não apenas como uma alteração legislativa, mas como uma transformação tecnológica no modelo de arrecadação, que acompanha a evolução das transações financeiras, desde trocas diretas até complexas operações digitais, integrando a arrecadação tributária à moderna infraestrutura tecnológica.
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Miguel Abuhab tem sido um proponente dessa ideia há pelo menos 20 anos, enfatizando a necessidade de um debate contínuo sobre as adaptações legais e tecnológicas necessárias para implementar esse sistema. Abuhab, considerado como o pai do split payment buscou resolver, a partir da teoria das restrições, quais os “efeitos indesejáveis” do nosso sistema atual — no caso, sonegação, inadimplência e informalidade e como causas raízes desses efeitos, o imposto declaratório com recolhimento por iniciativa do contribuinte e transações bancárias sem a interligação (correspondência) fiscal. Para isso, estruturou a ideia para eliminar os efeitos indesejados do sistema atual dentro de uma visão já possível dentro das dinâmicas da era digital.
Desafios
Além dos benefícios evidentes, a implementação do split payment apresenta desafios. Um dos principais é a preocupação sobre o impacto no fluxo de caixa das empresas, pois os recursos que anteriormente podiam ser geridos até o momento da apuração do tributo são agora imediatamente destinados ao fisco. Isso exige uma gestão financeira mais rigorosa e pode afetar temporariamente a liquidez das empresas. Outros temas relevantes surgem, tais como o tempo de devolução de eventuais créditos (o PLP 68/24 prevê a devolução em prazos longos, o que não faria sentido frente à evolução da sistemática de arrecadação) bem como sobre qual será a responsabilidade tributária de intermediários quando da adoção deste modelo.
A operacionalização eficaz do split payment, de fato, exigirá a evolução dos testes operacionais, mas não poderá se esquivar de uma discussão normativa detalhada sobre a questão dos créditos e da responsabilidade tributária. Porém não seria arriscado dizer que uma combinação entre normas jurídicas adequadas, tecnologia embutida e cooperação em prol da simplificação não deem conta do desafio.
Isso não impede, porém, que a transição para o split payment seja cuidadosamente testada e gerenciada desde já. Com a observação dessa dinâmica, haverá espaço para o que se deve fazer quando o assunto é inovação: testar, errar e corrigir rapidamente o erro.
Implica também em iniciar uma colaboração entre governo, empresas e instituições financeiras para desenvolver procedimentos que suportem essas inovações enquanto protegem os interesses dos contribuintes e promovam a sonhada simplificação.
Junto dessas questões, é importante que se coloque como desafio o respeito ao princípio do “devido processo tecnológico”, uma preocupação crescente em uma era onde a tecnologia permeia todos os aspectos da vida cotidiana e que agora chega ao âmbito de discussão da reforma tributária. Esse termo, criado por Daniele Citron e Frank Pasquale [1] manifesta o quão fundamental é que os processos automatizados sejam transparentes e auditáveis, permitindo a verificação e a revisão em caso de erros.
Isso é essencial para garantir que os direitos dos contribuintes sejam respeitados, com a validação deste processo de forma legítima. Para os autores, o devido processo tecnológico, nesse contexto, envolve a submissão de programas de decisão automatizada a padrões específicos de revisão e contestação, assegurando que os resultados sejam justos e precisos.
Esse procedimento deve ser aplicado tanto a decisões totalmente automatizadas quanto àquelas baseadas em inteligência artificial. Esse enfoque na precisão e na justiça dos resultados é crucial, especialmente quando consideramos as implicações da adoção de tecnologias como o split payment na reforma tributária.
Conclusão
Dessa forma, o split payment não é apenas uma ferramenta para simplificar a arrecadação de tributos; ele simboliza a modernidade na gestão e arrecadação fiscal. A reforma tributária brasileira, ao adotar essa tecnologia, junto com outras inovações, pode não apenas simplificar as etapas operacionais complexas que hoje temos no sistema de apuração dos tributos, mas também sinalizar para um futuro onde eficiência, transparência e cooperação sejam os pilares fundamentais.
Esse novo paradigma não só facilita a administração tributária, mas também fortalece a integridade do sistema, promovendo os pilares da reforma tributária : um ambiente de maior confiança, simplificação e colaboração.
[1] CITRON, Danielle Keats and PASQUALE, Frank A., The Scored Society: Due Process for
Automated Predictions (2014). Washington Law Review, Vol. 89, 2014, p. 1-; U of Maryland
Legal Studies Research Paper No. 2014-8. Disponível em: https://ssrn.com/abstract=2376209
Acesso em 12 mai. 2021.
Silvia Piva
doutora em Direito Tributário pela PUC-SP e pesquisadora do IEA-USP sobre IA Responsável.