Sobre reformas e tributos aduaneiros: expectativas

Fernando Pieri, Daniela Lacerda Chaves

Quem já fez qualquer reforma em casa, apartamento ou escritório, sabe que há várias etapas necessárias desde a decisão de reformar até a entrega do imóvel pronto e acabado. A primeira delas é a elaboração de um projeto, sendo ele o que vai permitir a preparação do orçamento, a identificação dos prestadores de serviço necessários, a compra de materiais a serem utilizados, a avaliação quanto à viabilidade da reforma, considerando a estrutura do imóvel, seu projeto hidráulico, elétrico e os pilares de sustentação.

O projeto parte de um diagnóstico inicial do que já existe, do que será reformado, permitindo definir a amplitude do escopo e o caminho para se atingir o objetivo. Permite, principalmente, vislumbrar como será o resultado da reforma, podendo o interessado por sua realização entender, de antemão, aonde as mudanças irão levá-lo. Hoje temos programas como Revit, AutoCAD e Sketchup, com uma tecnologia cada vez mais avançada, que antecipa cada detalhe do resultado final, dando-nos a oportunidade de prelibar o momento tão esperado da entrega da reforma. A certeza de que estamos caminhando para algo melhor permite-nos suportar os desconfortos intrínsecos à empreitada.

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Assim como um imóvel antigo, que já sofreu diversas modificações [1] aqui e acolá e que continua demandando muitos reparos, no Sistema Tributário Nacional são identificados, há tempos, especialmente na tributação sobre o consumo, problemas que o tornam demasiadamente complexo, desestimulante ao empreendedorismo e aos investimentos. Um imóvel usado repleto de trincas e rachaduras!

Esse diagnóstico não é novo. Estamos, desde há muito, falando sobre reforma tributária e eis que ela veio a lume no dia 20/12/2023, por meio da Emenda Constitucional nº 132 [2]. Segundo o governo federal, a alteração do nosso sistema tributário funda-se em três grandes objetivos: fazer a economia brasileira crescer de forma sustentável; tornar nosso sistema tributário mais justo; e reduzir a complexidade da tributação, assegurando transparência e provendo maior cidadania fiscal [3]. São objetivos nobres, e que, por certo, devem ser perseguidos.

Apesar de ter delimitado o caminho a ser seguido com as mudanças, a aprovada EC nº 132 deixou dezenas de pontos que permanecem em suspenso, pendentes de definição por lei complementar e ordinária, e apenas especulados em todas as análises que avaliam os seus impactos. Quem dera pudéssemos ter uma visão 3D de como ficaria o sistema tributário após todo esse processo [4]!

Cabe dizer que, no contexto da reforma, a EC nº 132/2003 reflete muito pouca atenção aos temas relacionados à tributação aduaneira. Observa-se a ausência de um diagnóstico técnico dos impactos das alterações para as operações de comércio internacional, que possuem suas particularidades, jurídicas e operacionais, e, inclusive, que seguem, em grande parte, diretrizes de normas internacionais decorrentes de tratados internalizados no Brasil.

Isso talvez tenha ocorrido porque as mudanças aprovadas não afetam os tributos aduaneiros por natureza [5], imposto de importação e de exportação, eis que a reforma não trouxe alterações quantos aos mesmos. Entretanto, as alterações relacionadas aos tributos niveladores; IPI, PIS, Cofins e ICMS refletirão, direta e significativamente, sobre tributação das importações e exportações.

Em linhas gerais, o que temos com a reforma tributária é a criação de três novos tributos: imposto seletivo (IS), contribuição sobre bens e serviços (CBS) e imposto sobre bens e serviços (IBS). Nos próximos dois anos nenhum deles incidirá, iniciando-se sua cobrança com a CBS e o IBS, em 2026, sob as alíquotas de 0,9% e 0,1%, respectivamente. A cobrança do IS está prevista para se iniciar em 2027 [6]. Entre alguns pontos negativos ou preocupantes da reforma, podemos citar a coexistência dos dois sistemas, o que ocorrerá entre 2026 e 2033. Alguns dos pontos positivos, entre outros: a não-cumulatividade ampla prevista para a CBS e para o IBS, tanto para a indústria, o comércio e os serviços, o que permite esperar neutralidade e desoneração da produção, com a efetiva tributação sobre o consumo. Outro ponto positivo é a previsão da tributação por fora, com a alíquota nominal coincidindo com a carga efetivamente suportada pelo contribuinte, sem o famigerado cálculo por dentro.

Quanto ao IPI, a EC nº 132/2023 não revoga o inciso IV do artigo 153 da CF/88, todavia prevê que, a partir de 2027, as alíquotas serão reduzidas a zero, exceto em relação aos produtos que tenham industrialização incentivada na Zona Franca de Manaus. O artigo 195, IV, que trata das contribuições sociais, fica revogado a partir de 2027. Não se enganem os importadores, pois a redução a zero das alíquotas do IPI e a extinção das contribuições PIS e Cofins não representarão redução da carga tributária incidente sobre as importações, haja vista a determinação da EC nº 132/2023 para que o Senado Federal, ao estabelecer as alíquotas da CBS e do IS, garanta que a receita da União seja equivalente à redução decorrente dos tributos que deixarão de existir [7]. Já o ICMS, deixará de existir a partir de 2033, com a revogação do artigo 155, inciso II, da CF/88.

Saindo de cena IPI, as contribuições PIS e Cofins e o ICMS, as importações passarão a ser oneradas com imposto de importação, a CBS, o IBS e o IS, mantidas ainda as incidências do AFRMM e das taxas aduaneiras, que não foram afetadas pela reforma. A CBS e o IBS terão como fato gerador a importação de bens materiais ou imateriais [8] e o IS, a importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente [9], a definição do que seriam esses bens prejudiciais, por sua vez, será objeto de lei complementar.

Ao tratar do fato gerador dos novos tributos, a EC menciona apenas bens, sem especificar a necessidade de serem esses bens e serviços de origem estrangeira. Ainda não se sabe como a lei complementar irá dispor sobre isso, não se podendo cogitar a incidência dos referidos tributos na importação de bens nacionais, ou nacionalizados, que estejam apenas retornando ao país, após uma saída temporária, ainda que para aperfeiçoamento passivo. Alteração como essa na sistemática vigente traria, por certo, uma série de implicações indesejadas no nosso contexto de comércio internacional, haja vista as normas vigentes relativas à exportação temporária (artigos 431 a 457, RA/09).

Quanto às alíquotas, o IS terá as suas fixadas em lei ordinária, podendo ser específicas, ou ad valorem [10]. Para o IBS, imposto de competência compartilhada entre estados, Distrito Federal e municípios, haverá uma legislação única em todo o território nacional, mas cada ente federativo fixará sua alíquota própria por lei específica — mesma para todas as operações, ressalvadas as exceções constitucionais — e, ao final, o tributo será cobrado pelo somatório das alíquotas do estado e do município de destino da operação. A CBS poderá ter sua alíquota fixada em lei ordinária, aplicando-se a ela, no que couber, as mesmas disposições existentes para o IBS.

A despeito de passar a existir uma alíquota única para os referidos tributos, permanece existindo a necessidade da adequada classificação tarifária dos bens, a uma porque não houve qualquer alteração na sistemática do imposto de importação, que continua tendo suas alíquotas definidas pela TEC; e, a duas, porque o IS pode ter alíquotas diferentes a depender do bem sobre o qual incidirá o tributo. Ainda que, com o fim da cobrança do IPI, a TIPI pudesse, teoricamente, deixar de existir, não faria sentido utilizar outra forma para classificar/identificar os bens importados que se submeterão à tributação do imposto seletivo, que não o seu enquadramento no código tarifário da NCM. Veremos como as respectivas leis complementares e ordinárias disporão a respeito.

O IBS terá como sujeito ativo os estados e municípios de destino da operação, cabendo à lei complementar estabelecer os critérios para essa definição. Considerando o foco da segurança jurídica e da redução de litígios, preocupação já manifestada no artigo de Fernanda Kotzias e Yuri da Cunha [11], a expectativa é de que a lei complementar seja clara e objetiva, especialmente quanto a definição de destino nas operações de importação indireta, já que, nos termos do que prevê a EC, o estado/município destinatário dos referidos tributos poderá ser o local da entrega, da disponibilização ou da localização do bem, do domicílio ou da localização do adquirente ou destinatário do bem, admitidas diferenciações em razão das características da operação [12], ou seja…. não havendo clareza nessa definição, a judicialização do tema será certa.

Outro item de atenção é o trazido pelo artigo 135 do ADCT, incluído pela EC nº 132/2023, que outorga à lei complementar a responsabilidade por disciplinar a forma de utilização dos créditos, inclusive presumidos, do IPI e das contribuições PIS e Cofins, permitindo-se a compensação com outros tributos federais, inclusive com a CBS. Nesse contexto, considerando que a CBS incide sobre a importação e que a Constituição autorizou à lei complementar permitir a compensação de tributos, inclusive com a CBS, impende avaliar a manutenção da atual vedação prevista na Lei nº 9.430, de 1996, art. 74, §3º, inciso II, para a compensação dos débitos relativos a tributos e contribuições devidos no registro da declaração de importação.

Reformas, normalmente, são feitas em edificações ocupadas, demandando um cuidado adicional, para que a própria realização da melhoria não prejudique o fluxo de vida daqueles que serão por ela afetados. Assim, também, espera-se que aconteça com a reforma tributária, para que não haja prejuízos ao fluxo das operações internacionais. Sob o ponto de vista da simplificação e facilitação comercial, os ajustes para que tanto a CBS, quanto o IS e o IBS que incidirão sobre as operações de importação sejam quitados por meio do Siscomex, no momento do registro da declaração de importação, devem ser implementados previamente ao início da sua cobrança.

O ponto mais polêmico sobre a reforma, no que concerne ao comércio exterior, porém, é relacionado aos regimes aduaneiros especiais. Com a ideia de simplificação e transparência, a EC nº 132 incluiu na Constituição norma que veda a concessão de incentivos e benefícios financeiros ou fiscais relativos ao IBS e a CBS ou de regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação, excetuadas as hipóteses previstas na própria Constituição [13]. Como exceção, estabelece que caberá à lei complementar dispor sobre as hipóteses de diferimento e desoneração aplicáveis aos regimes aduaneiros especiais e às zonas de processamento de exportação (ZPE).

Essas disposições, por princípio, podem impactar a própria existência de regimes como o Regime de Tributação Simplificada (RTS), instituído pelo Decreto-Lei nº 1.804, de 3/9/1980, que isenta o pagamento dos demais tributos incidentes sobre a importação, mantendo apenas, para as situações às quais se aplica (remessas internacionais) a cobrança de uma alíquota única de 60% para o imposto de importação; o Regime de Tributação Especial (RTE) que permite o despacho de bens integrantes de bagagem mediante a exigência tão somente do imposto de importação, calculado pela aplicação da alíquota de 50% sobre o valor tributável dos bens, bem como as isenções relacionadas ao limite de valor e quantidade de bens que chegam ao país na bagagem de viajantes; e até mesmo o o Regime de Tributação Unificada (RTU), que permite a importação, por via terrestre, de mercadorias procedentes do Paraguai, mediante o pagamento unificado de impostos e contribuições federais incidentes na importação. Não é sequer imaginável que, nas situações nas quais se aplicam esses regimes, por força dessa vedação constitucional, passemos a tributar todas as importações na sistemática do regime comum de importação, com necessidade de observar classificação tarifária de cada bem e apurar o IS, a CBS e o IBS em relação a eles.

Por último, ficamos na expectativa do que a lei complementar vai regular e, até mesmo, considerar como inserido no conceito de regimes aduaneiros especiais. Eis uma definição que não se encontra no texto constitucional e não possui, de igual modo, limites bem definidos em nossa legislação. Qualquer tentativa de indicação do que será dos regimes aduaneiros especiais, após a reforma tributária, a partir do que temos até o momento, seria mero exercício de suposição. Nada está definido. Uma luz no fim do túnel, ou um alento, foi a notícia da criação de dezenove grupos de trabalho específicos com foco na regulamentação dos novos tributos, sendo tema do GT – 1 importação e regimes aduaneiros especiais. Certamente com foco nesses temas, aumentam as chances de um debate técnico e uma regulamentação mais adequada [14].

Até mesmo nas reformas muito bem projetadas, a execução da obra pode gerar desagradáveis surpresas. Descobre-se, por vezes, ao quebrar uma parede, uma tubulação passando por um local inimaginado, ou alguma viga de sustentação é atingida, demandando uma pausa na implementação do projeto para a realização de um reforço na estrutura. Estamos cobertos de poeira trazida pela reforma tributária e é possível que assim permaneçamos por algum tempo. A expectativa, porém, é de que, ao final do extenso período de transição, possamos, ao menos no que concerne aos seus objetivos principais, sentir que o processo valeu a pena.

[1] O Sistema Tributário Nacional foi emendado dez vezes, desde que entrou em vigor, através das Emendas Constitucionais 3/1993, 29/2000, 33/2001, 37/2002, 39/2002, 42/2003, 75/2013, 87/2015, 103/2019 e 116/2022, sendo a EC 132/2023 a décima primeira alteração.

[2] Dentre as várias inclusões de textos nos artigos já existentes, destaca-se o inciso VIII, no art. 150, o art. 156 – A e o inciso V, no art. 195, respectivamente, responsáveis por criarem o IS, a CBS e o IBS.

[3] Disponível: link . Acesso em 10/01/2024.

[4] Essa coluna já abordou, sob a ótica atenta de Liziane Meira (link) e Fernanda Kotzias (link), a reforma tributária e seus possíveis impactos no comércio exterior. Os referidos artigos foram escritos antes da aprovação e promulgação da EC nº 132/2023, mas já adiantaram possíveis pontos em que a reforma afetaria as importações e exportações brasileiras – destacando-se, especialmente, aqueles relacionados à facilitação comercial e aos regimes aduaneiros especiais.

[5] BASALDÚA, Ricardo Xavier. Tributos al Comercio Exterior. Buenos Aires: AbeledoPerrot, 2011, 1ª ed, p. 68.

[6] Artigos 125 e 126 do ADCT, incluídos pela EC 132/2023.

[7] Artigo 130, inciso I, do ADCT, incluído pela EC 132/2023.

[8] Artigo 156 – A, § 1º, inciso II da CF/88, incluído pela EC 132/2023.

[9] Artigo 153, inciso VIII, da CF/88.

[10] Artigo 153, VIII, §6º, inciso VI, incluídos pela EC 132/2023.

[11] link

[12] Artigo 156-A, § 5º, inciso IV, incluído pela EC 132/2023.

[13] Artigo 156, §1º, inciso VIII, incluído pela EC 132/2023.

[14] Disponível em Valor Econômico: link, acesso em 11/1/2024.

Fernando Pieri, Daniela Lacerda Chaves

Fernando Pieri
é sócio fundador da HLL & Pieri Advogados, mestre em Direito pela UFMG, pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa, professor de Direito Aduaneiro e Tributário, Membro da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB, presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG, multiplicador do Programa OEA da Receita Federal, membro de nº 51 da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.

Daniela Lacerda Chaves
é advogada, sócia da HLL & Pieri Advogados, mestre em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos, pós-graduada em Direito Aduaneiro da União Europeia pela Universidade Valencia na Espanha, professora de Legislação Aduaneira em cursos de pós-graduação, vice-presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG e diretora executiva da Associação Brasileira de Estudos Aduaneiros (Abead).

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