Setor de seguros aguarda STJ decidir critério de atualização de indenização
Sylvie Boëchat é advogada coordenadora na área cível estratégica do escritório Rayes & Fagundes Advogados Associados.
Está nas mãos da Corte Especial do STJ (Superior Tribunal de Justiça) decidir, muito em breve, uma demanda que poderá impactar em grande mudança de paradigma nos critérios de correção monetária e aplicação de juros de mora sobre as dívidas privadas, especialmente quando relacionadas a reparações de danos contratuais e extracontratuais.
O ponto em questão surgiu em demanda de cunho indenizatório, promovida em 2014, na qual a vítima de um atropelamento por um ônibus pleiteia a reparação civil pertinente, por danos morais e lucros cessantes.
Na sentença de parcial procedência, houve reconhecimento dos danos morais (valor histórico de R$ 20 mil), com fixação de correção monetária conforme os índices da tabela prática do tribunal de justiça paulista, desde a sentença, e juros de mora de 1% ao mês, a contar da citação. Na apelação, a empresa condenada defendeu a aplicação da taxa referencial do Selic, sem cumulação com outro índice de correção, a partir da sentença.
Com o não provimento do recurso, a empresa de viação interpôs Recurso Especial (nº 1.795.298/SP), o qual foi contrarrazoado e aguarda seu desfecho, desde 2018, tendo sido afetado, em outubro de 2021 para decisão da Corte Especial do STJ, pois seu resultado poderia ir de encontro ao entendimento que ela deu no julgamento do EREsp nº 727.842/SP (em 2008), no qual prevaleceu a aplicação isolada da taxa referencial do Selic, como o índice de juros moratórios a que se refere o artigo 406 do Código Civil.
De lá para cá, associações, federações, entidades de classe, sindicatos, e até o Banco Central, intervieram no feito, solicitando sua participação como amicus curiae, no intuito de contribuir com o debate que se instaurou sobre o tema, do ponto de vista do impacto jurídico, econômico e social das teses em discussão, e naturalmente, com isso, defender os seus interesses, amparados em pareceres dos mais renomados economistas e juristas do país, visando diminuir o valor das indenizações para empresas do setor que representam, como incorporadoras imobiliárias, empresas de telefonia e bancos; ou, ao contrário, na defesa de trabalhadores e consumidores, que esperam o recebimento de valores maiores, a esse título.
A CNSeg [1] também integra a lista de intervenientes no processo, para contribuir com seus pontos de vista sobre a temática e o setor de seguros acompanha ansiosamente o resultado do julgamento, pois eventual alteração em tais critérios lhe impactará significativamente, uma vez que sua atividade fim é relacionada diretamente ao pagamento de indenizações em razão de sinistros diversos.
Nessa linha, amparada por outros julgados do próprio STJ, inclusive de sua Corte Especial, e com base em julgamento de recursos repetitivos, a CNSeg defende a tese da prevalência da aplicação isolada da taxa referencial do Selic, como melhor interpretação jurídica do artigo 406 do Código Civil, combinado com o artigo 161, §1º, do Código Tributário Nacional.
Isso porque, em breves linhas, aponta que o legislador civilista facultou às partes a convenção sobre os critérios de fixação dos juros moratórios, determinando, entretanto, que na ausência de estipulação, será aplicada a taxa de juros vigente para o pagamento de impostos à Fazenda Nacional. Assim, seguia-se a previsão do CTN de 1967, no sentido de que os juros de mora fossem calculados em um por cento ao mês. Posteriormente, no entanto, com a entrada em vigor da Lei nº 8.981/1995, que criou o Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic) e com base na previsão do artigo 13 da Lei nº 9,065/1995, a taxa de indexação das dívidas fazendárias passou a ser a denominada “Selic”. Portanto, pela disposição da lei civil, como consequência, a taxa referencial do Selic deveria ser aplicada, também, para as dívidas de natureza privada.
Mas, tal discussão não se estabeleceu naqueles autos apenas quanto aos aspectos jurídicos dessa análise, mas também, às consequências de impacto econômico sobre o setor.
Para se ter uma ideia, no ano de 2022, cerca de R$ 219,4 bilhões foram pagos, a título de indenizações, benefícios, resgates e sorteios (com exceção de DPVAT e Saúde Suplementar), representando um volume 15,5% superior a 2021. Só no estado de São Paulo, houve pagamento de R$ 44 bilhões em indenizações. Com o crescimento cada vez maior do setor (esperado em cerca de 10% para 2023), os números das indenizações tendem a aumentar [2].
Ocorre que, dentro da provisão de sinistros a liquidar das seguradoras, uma fatia expressiva de seu valor se refere aos juros moratórios, aumentando, significativamente o seu passivo. A título de exemplo, aponta a CNSeg que, no ano de 2020, dessa provisão, no valor de R$ 7 bilhões, R$ 1,57 bilhão (22%) se referiam a juros moratórios e, considerando a aplicação de juros de mora à razão de 1% ao mês, a previsão de aumento anual giraria em torno de R$ 97,5 milhões ao mês. O problema é que não há uma contrapartida no tocante à forma de remuneração das receitas das seguradoras, as expondo, assim, à possibilidade de não conseguirem se proteger, e com isso, aumentar desarrazoadamente o montante de pagamento das indenizações.
Por outro lado, ao se fazer as análises econômico-financeiras a respeito do valor das indenizações em relação aos beneficiários, com base no critério da fixação dos juros moratórios à taxa de um por cento ao mês, verifica-se que, ao final, eles têm “lucrado com a mora”, ou seja, acabam recebendo muito mais do que a reposição ao status quo ante, o que ofende a previsão do artigo 944 do Código Civil, pelo qual a indenização deve se medir pela extensão do dano, nem para mais, nem para menos.
O impacto social do precedente que se aguarda é, portanto, de extrema relevância, pois seus efeitos podem alterar significativamente a vida de milhões de pessoas, empresas de seguros e de inúmeros outros setores, afetando todo mercado econômico. Por conta disso, a expectativa é que impacte cerca de 6 milhões de processos no país.
Mas não é só. Representará, também, uma possível necessidade de reavaliação das provisões e contingências das empresas, em relação a seus passivos judiciais, para que, eventualmente, a depender do resultado do julgamento, tenham que promover eventual mudança nos critérios de atualização monetária, a fim de que as reservas financeiras a esse título, não fiquem nem abaixo ou acima do necessário, impactando, com isso, os interesses dos acionistas.
Por isso, o alcance da decisão que se espera vai muito além da causa em que se originou, e convém ser acompanhado de perto.
O início do julgamento, ocorrido na sessão realizada em 1º de março último, com a sustentação oral de diversos advogados pelas instituições atuantes como amicus curiae, foi interrompido pelo pedido de vista dos autos feito pelo ministro Raul Araújo, que indicou ter voto divergente do relator, Luis Felipe Salomão, o qual entende pelo não provimento do recurso, afirmando que se houver prevalência da taxa Selic, poderá representar, no caso de origem da discussão, uma redução de 37% da indenização fixada.
[1] Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida e Saúde Suplementar e Capitalização.
[2] Fonte: https://cnseg.org.br/
Sylvie Boëchat é advogada coordenadora na área cível estratégica do escritório Rayes & Fagundes Advogados Associados.
Advogada coordenadora na área cível estratégica do escritório Rayes & Fagundes Advogados Associados.