Segurança jurídica como princípio da atividade financeira do Estado
Sergio André Rocha
Um dos princípios que mais frequentam os debates sobre tributação é o princípio da segurança jurídica. Mesmo sem uma pesquisa empírica, arriscaria dizer que nenhum outro é tão mencionado no contexto de diálogos tributários quanto ele.
De fato, a noção de que qualquer ordenamento jurídico num Estado Democrático de Direito deve ter como fim se alicerçar sobre textos normativos, o mais inteligíveis quanto possível, que possibilitem uma previsibilidade suficiente do futuro e uma razoável estabilidade do passado, não pode ser questionada nessa quadra histórica.
Contudo, há tempos que notamos um equívoco nas discussões sobre segurança jurídica em âmbito tributário que, segundo vemos, apequena o princípio e gera uma incapacidade em alguns atores de acompanhar a sua aplicação concreta, notadamente pelo Poder Judiciário. Refiro-me à visão de que o princípio da segurança jurídica apenas se aplica em benefício do sujeito passivo de deveres tributários, e não dos interesses da sociedade que se corporificam no Estado.
Essa visão, parcial e incompleta, do princípio da segurança jurídica, sugere que apenas o sujeito passivo tributário pode argumentar com base nele para defender suas pretensões, enquanto a instabilidade e a imprevisibilidade poderiam perfeitamente estar presentes nas situações em que interesses públicos estivessem em questão.
Em texto anterior publicado nesta coluna, tratamos brevemente das origens do Direito Tributário Brasileiro e de como o seu desenvolvimento dogmático na época da ditadura militar pode ter influenciado esse tipo de postura e nos legado essa visão do Direito Tributário como o estatuto de defesa do sujeito passivo contra o Estado.
Ora, nenhum estudo jurídico pode ser feito desconsiderando o contexto histórico em que textos normativos foram editados e as teorias, desenvolvidas. Portanto, não nos parece que posturas teóricas desenvolvidas no contexto de um Estado de Exceção possam ser simplesmente transplantadas para o âmbito dos debates em um Estado Democrático de Direito.
Consequentemente, cremos ser evidente que o princípio da segurança jurídica não pode ter o mesmo perfil pré e pós-1988.
Pois bem. Da mesma maneira que a Constituição Federal claramente alçou a segurança jurídica a um dos pilares do Sistema Tributário Nacional, prevendo regras de competência com materialidades mais ou menos delimitadas para diversos tributos e veiculando regras como a legalidade, a anterioridade e a irretroatividade, o Texto Constitucional incluiu diversos dispositivos que estabelecem como fim uma segurança financeira pautada pelos mesmos requisitos de previsibilidade e estabilidade que vimos acima.
A Constituição Orçamentária está alicerçada em três pilares, refletidos em nível infraconstitucional no artigo 1º, § 1º da Lei de Responsabilidade Fiscal — a transparência, o planejamento e o equilíbrio orçamentário. Toda a lógica estabelecida pelo artigo 165 da Constituição para o Direito Orçamentário parte da premissa de que a lei vai veicular o planejamento financeiro do Estado de longo, médio e curto prazo, de modo que haja previsibilidade e estabilidade da arrecadação e do gasto públicos.
Tenho a vantagem de ser professor de Direito Financeiro e de Direito Tributário na Faculdade de Direito da Uerj. Essa junção das duas cadeiras é imprescindível para que se tenha uma visão global da atividade financeira do Estado e dos princípios que a regem. A artificial cisão entre o Direito Tributário e o Direito Financeiro faz do primeiro uma “bala perdida”, uma vez que o despe do que lhe dá razão de ser e sentido: o gasto e as políticas públicas.
A esta altura, é inegável que o princípio do equilíbrio orçamentário é uma das pedras angulares da Constituição Financeira. Não desconhecemos as muitas polêmicas que existem sobre as demandas por equilíbrio fiscal e austeridade, nem que muitos autores e autoras importantes defendem que países soberanos monetariamente não precisam pautar o gasto público pela arrecadação de tributos.
Nada obstante, é só vermos a pauta dos governos, independentemente do matiz ideológico, para notarmos que a lógica que se impôs é a do equilíbrio orçamentário. Todas as grandes iniciativas do atual governo, todas as grandes pautas congressuais apresentadas foram diretamente relacionadas ao equilíbrio das contas públicas.
É interessante observar que esta não é, necessariamente, uma pauta inata do governo de turno. Pelo contrário, o equilíbrio orçamentário e as metas de austeridade são demandadas e às vezes praticamente impostas por essa entidade abstrata que chamamos de “mercado”. Tanto assim que uma mera notícia de avanço do “arcabouço fiscal” normalmente faz a Bolsa subir e anima as empresas de rating na revisão da nota atribuída ao Brasil.
Cremos ser absolutamente inquestionável, portanto, que a segurança orçamentária é um princípio constitucional irmão do princípio da segurança jurídica tributária. Da conjugação de ambos temos o princípio da segurança da atividade financeira do Estado.
A incapacidade de compreensão de que a segurança jurídica não é um princípio de polaridade única deixa muitos operadores e operadoras do Direito Tributário míopes quanto ao direcionamento das instituições que atuam neste campo, notadamente no que se refere às decisões dos tribunais superiores.
Com efeito, uma parcela de nossa teoria tributária, firme na premissa de que tributos, por natureza, restringem o direito de propriedade dos sujeitos passivos, vê, nas regras que materializam a segurança jurídica tributária, mandamentos de aplicação incontestável e absoluta que não podem ser ponderadas com outros interesses socialmente relevantes.
Essa será a verdade na maioria das situações. Porém, em alguns casos difíceis, essa visão unidimensional da segurança jurídica não conduz à melhor interpretação da Constituição Federal.
Um exemplo nos ajudará a compreender melhor o que estamos defendendo.
Sabemos que, desde 2004, o artigo 27, § 2º, da Lei nº 10.865 estabelece uma delegação legislativa para que o Poder Executivo reduza e restabeleça a alíquota do PIS e da Cofins não cumulativos incidentes sobre receitas financeiras. Após mais de uma década reduzidas a zero, em 2015 tais alíquotas foram previstas em 0,65% e 4%, respectivamente, pelo Decreto nº 8.426.
O restabelecimento dessas alíquotas gerou grande controvérsia, o que não é o foco de nossa discussão aqui. O ponto a que queria chegar refere-se à edição do Decreto nº 11.322, de 30 de dezembro de 2022, que reduziu a alíquota do PIS de 0,65% para 0,33% e a da Cofins de 4% para 2%. Logo no dia 1 de janeiro de 2023, este ato foi revogado pelo Decreto nº 11.374, que repristinou expressamente as alíquotas previstas no Decreto nº 8.426/2015.
Este é o que podemos chamar de um caso difícil de aplicação da regra da anterioridade e do princípio da segurança jurídica. A eficácia do Decreto nº 11.374/2023 estaria pautada pela anterioridade nonagesimal que rege as contribuições de financiamento da seguridade social?
Um defensor ou defensora da segurança jurídica unidimensional, escudo do contribuinte, provavelmente diria que sim. Há um ato emitido pela autoridade formalmente competente para a sua emissão, o então presidente da República em exercício. Este ato foi revogado e uma nova tributação instituída já em janeiro de 2023. Consequentemente, não haveria dúvidas quanto à necessidade de proteção da expectativa criada nos contribuintes com a edição do Decreto nº 11.322/2022.
Nada obstante, não nos parece que a resposta seja tão simples.
Com efeito, a partir do momento em que entendemos a segurança jurídica como um princípio da atividade financeira do Estado, que também protege a expectativa de arrecadação, percebemos que situações como esta não podem ser examinadas de uma perspectiva essencial e exclusivamente formal.
De fato, considerando a situação das contas públicas, a decisão do então presidente da República, num governo que estava em seu penúltimo dia, pela redução de uma fonte de arrecadação relevante tem que ser considerada de um ponto de partida substantivo, o de suas motivações e justificativas, e não de uma perspectiva apenas formal de existência ou não de competência para a edição do ato administrativo.
Nessa toada, um ato claramente atentatório à segurança orçamentária, editado sem qualquer motivação ou justificativa legítima, parece, em si, um não-ato, um decreto praticado, ao que tudo indica, com a finalidade última de criar embaraços financeiros para o governo que se iniciaria em janeiro e, consequentemente, para toda a sociedade.
Só por isso já seria justificável repensarmos se este seria, de fato, um caso de aplicação da regra da anterioridade nonagesimal. Mas não é só. Também a própria anterioridade deve ser interpretada considerando o princípio da segurança jurídica da atividade financeira do Estado.
Em verdade, como vimos, o princípio da segurança jurídica tem como uma de suas vertentes a previsibilidade dos deveres tributários aos quais estão submetidos os sujeitos passivos. Portanto, uma regra como esta da anterioridade tem como fim evitar a surpresa decorrente da instituição ou majoração de tributos.
A todas as luzes, surpresa quanto à incidência não foi o que se passou nesse caso. Se houve alguma surpresa, foi com o decreto editado no ocaso do governo passado pelo hoje senador da República Hamilton Mourão, em 30 de dezembro de 2022, quando as pessoas compravam pão para a rabanada e combinavam com familiares as celebrações do dia 31.
Assim sendo, uma interpretação teleológica da própria regra da anterioridade põe em xeque a pretensão de se transformar um Decreto maculado de claro desvio de finalidade em ato gerador de expectativas legítimas.
A compreensão do princípio da segurança jurídica desta perspectiva bidimensional normalmente gera reações enérgicas e inconformadas, como se estivéssemos, de alguma maneira, ressuscitando as teorias de prevalência do interesse público sobre o privado. Certamente não é isso que estamos defendendo.
É importantíssimo deixar bem claro que não estamos propondo que a segurança orçamentária tenha prevalência ou precedência sobre a segurança jurídica dos sujeitos passivos de deveres tributários. Não é isso que estamos dizendo!
O que estamos sustentando é que a segurança jurídica não é um princípio unidimensional e que, em alguns casos, a segurança jurídica orçamentária entrará em colisão com a segurança jurídica tributária. Nesses casos difíceis, que são a exceção, as condições de precedência serão definidas de modo casuístico.
É comum que este tipo de visão, como a que estamos sustentando, seja tido como antagônico aos interesses dos sujeitos passivos. Não nos parece que assim o seja.
Há muitos anos vimos denunciando os malefícios das posições binárias absolutas que pautam a doutrina tributária. Uma das suas principais desvantagens é a incapacidade de criar pautas para a solução dos problemas concretos que desafiam a inteligência dos órgãos de aplicação do Direito nos dias de hoje.
Isso fica bem claro se olharmos o caso das modulações de efeitos em casos tributários, que não raro se inserem no tema deste breve texto, vez que justificadas pela proteção da segurança orçamentária do Estado.
A posição da doutrina tributária muitas vezes é no sentido de que “modulações de efeitos” em decisões que reconhecem a inconstitucionalidade de tributos não deveriam ser autorizadas jamais, uma vez que violariam o princípio da segurança jurídica e seriam um estímulo à “inconstitucionalidade útil”. Sendo assim, fincam sua posição e não debatem o mais importante: quais seriam as circunstâncias e a condições para uma modulação de efeitos de decisão que declare a inconstitucionalidade de um tributo?
Nesse contexto, quando o Poder Judiciário rejeita essa visão absoluta de vedação da modulação, e começa a modular suas decisões, não encontra uma teoria sobre os limites da modulação legítima, e passa a ter um mar azul para decidir sem balizas doutrinárias.
É nesse sentido que temos sustentado quão contraproducentes são essas posições binárias absolutas em um mundo marcado pela hipercomplexidade e pela ambivalência.
O princípio da segurança jurídica é um princípio da atividade financeira do Estado? Sem dúvida. Isso significa que ele tem um viés bidimensional que protege a segurança jurídica orçamentária, além da segurança jurídica do sujeito passivo de deveres tributários? Certamente. Então, a segurança jurídica pode ser transformada em um argumento vencedor para que sempre prevaleçam as posições da Fazenda Pública em casos tributários? Jamais! Como pontuamos anteriormente, a derrotabilidade de regras de segurança jurídica tributária deve ser a exceção, não a regra.
Dessa forma, repensar o princípio da segurança jurídica não é, segundo vemos, pretender restringir direitos dos contribuintes. Muito pelo contrário! É essa releitura do princípio, a partir da Constituição Federal de 1988, que nos permite compreender muitas das decisões que estão sendo proferidas pelos tribunais superiores nos últimos anos, e concluir que, como doutrina, é nosso papel construir os limites para a ponderação das duas vertentes da segurança jurídica diante de casos concretos. Do contrário, muitos e muitas seguirão na sina de se surpreenderem e se indignarem com decisões judiciais, sem perceber que por vezes acabam contribuindo para que os julgadores não tenham balizas claras para decidir.
Sergio André Rocha
professor de Direito Financeiro e Tributário da Uerj, livre-docente em Direito Tributário pela USP, diretor vice-presidente da ABDF (Associação Brasileira de Direito Financeiro), advogado e parecerista.