São Paulo cobra ICMS nas operações interestaduais sem ter competência

Fernando Facury Scaff

A tese é simples e pode ser exposta em poucas linhas, sem a necessidade de grandes elucubrações teóricas, tal como devem ser as boas teses — compreendidas a plenos olhos.

A Constituição brasileira atribui aos estados a competência para tributar as operações de circulação de mercadorias e alguns serviços, como se pode ver no artigo 155, II. Até aqui, nenhuma novidade, pois se trata de uma competência vertical, isto é, estabelecida entre os entes federados, no âmbito do federalismo fiscal, sendo que a União possui competência para criar e cobrar alguns impostos, os municípios possuem tal competência para a cobrança de outros, os estados também, e assim segue.

Ocorre que, nas operações interestaduais, isto é, horizontalmente entre os estados, essa competência é dividida, cabendo uma parte do ICMS ao estado em que se origina a operação de circulação de mercadorias, e outra parte do referido imposto ao estado para o qual aquela mercadoria é destinada. Observe-se que não estou tratando de fundos, rateios, repartições do que foi arrecadado — nada disso. Afirmo, com base na Constituição, que os estados nos quais se origina a operação de circulação de mercadorias têm competência tributária para cobrar uma parcela do ICMS e os que se encontram no destino tem competência tributária para cobrar outra parcela desse imposto.

Logo, em razão da competência tributária no âmbito horizontal, há divisão normativa entre os estados de origem e de destino da operação de circulação de mercadorias, cabendo uma parte da arrecadação a uns e a outros.

Isso está inscrito na Constituição, no artigo artigo 155, parágrafo 2º, inciso IV, que estabelece a competência do Senado para definir as alíquotas interestaduais, o qual, para o específico assunto aqui tratado, estabeleceu em 1989 a Resolução 22, que determinou como padrão a alíquota de 12%. Foi criada uma exceção, quando tal operação for realizada entre estados em situação socioeconômica desigual, a alíquota será de 7%, isto é, entre os estados do Sul e Sudeste para o resto do país (incluindo o Espírito Santo). Isso demonstra uma regra de divisão de competência tributária, e não do produto arrecadado.

Esse entendimento é reforçado pelo inciso VII do artigo 155, parágrafo 2º, o qual determina que nas operações que destinem bens a consumidor final, contribuinte ou não do imposto, localizado em outro estado, será adotada a alíquota interestadual e caberá ao estado de localização do destinatário o imposto correspondente à diferença entre a alíquota interna do estado destinatário e a alíquota interestadual; ou seja, há uma competência tributária horizontal entre os estados, cabendo ao de destino apenas o diferencial de alíquota (que, no jargão, é conhecido por “Difal”).

Pois bem, suponhamos que uma operação interestadual se origine em um estado, por exemplo, o de Goiás, e tenha por destino uma empresa comercial em São Paulo. Como rotina, o Fisco estadual paulista, sem nenhuma base legal, pressupõe ter ocorrido irregular concessão de benefícios fiscais pelo estado de origem e cobra alíquota cheia naquela operação, conforme o artigo 426-C, do Regulamento do ICMS paulista, quando, na realidade, só poderia cobrar o diferencial de alíquota.

Eis o ponto. Pode o estado de São Paulo cobrar alíquota cheia nessa operação interestadual? A resposta é um vigoroso não, por ausência de base constitucional e legal. São Paulo, nessa hipótese, cobra sobre o que não pode cobrar. Trata-se de um abuso de autoridade, pois não pode haver o elastecimento da competência tributária, como é de todos sabido, por violar preceito constitucional.

Vários aspectos poderiam ser alegados, mas, por brevidade, me cingirei apenas a um ponto: o estado de São Paulo não tem competência tributária para cobrar nada além do diferencial de alíquota de ICMS (alíquota parcial) sendo inconstitucional a cobrança de qualquer centavo além desse percentual (isto é, alíquota cheia).

O argumento, como se vê, é linear. Uma parte do ICMS cabe ao estado de origem da operação, e outra cabe ao estado onde a operação se encerra. E quanto cabe a cada qual, nessa divisão horizontalizada de competências, é estabelecido pela Constituição e pela Resolução 22/89 do Senado Federal. Assim, quando o estado de São Paulo cobra algo além do que as normas permitem, excede a competência que normativamente lhe foi atribuída. A alíquota padrão nas operações interestaduais é de 12%, que cabe ao estado de origem, sendo que o estado de destino só pode cobrar 7%.

Mesmo que tenha havido alguma redução irregular de ICMS pelo estado de origem dessa operação, sem autorização do Confaz, esse estado estará renunciando receita própria, e não renunciando receita do estado de destino, pois este só poderá cobrar o que as normas acima mencionadas permitem, e não a integralidade do imposto sobre a operação mercantil interestadual. Qual a base legal que ampara essa cobrança excessiva? Nenhuma. Esse assunto foi bem exposto na dissertação de mestrado de Evandro Azevedo Neto, defendida na Faculdade de Direito da USP em 2015.

Observe-se que essa compreensão se insere no que foi julgado pelo STF na ADI 2.377-MC, na qual foi proferida a conhecida frase do ministro relator Sepúlveda Pertence, de que inconstitucionalidades não se compensam. No caso, o estado de Minas Gerais discutia a legalidade de uma norma exarada pela Secretaria de Fazenda de São Paulo, que concedia vantagens fiscais às empresas nele instaladas.

Anteriormente buscava-se garantir o direito ao crédito, o que, na prática, era impedido pelo Comunicado CAT 36/04 da Secretaria de Fazenda paulista. O que ora se expõe é a inconstitucionalidade do artigo 426-C, do Regulamento do ICMS paulista, que prevê a possibilidade de cobrança do ICMS pelo estado de São Paulo, caso ocorra a suspeita de ter havido desoneração irregular do pagamento do ICMS no estado de origem. Ocorre que esse imposto não é de competência tributária paulista, mas do estado de origem… Logo, o procedimento é inconstitucional. Havendo ou não redução irregular de ICMS na origem, o estado de destino não pode cobrar o ICMS além do que as normas permitem, por lhe faltar competência tributária para tanto, no âmbito das operações interestaduais de circulação de mercadorias. Cobrar tributo além do que é normativamente permitido é, além de tudo, crime de excesso de exação, o que se pode configurar nessas situações.

É verdade que o artigo 426-C do RICMS permite o uso do crédito, mas se trata de um montante majorado, o que impacta fortemente o caixa das empresas. Afinal, estas pagam para o estado de origem e depois pagam novamente, e de maneira superposta, ao estado de destino. Se pagam ou não de forma integral no estado de origem, é um problema a ser resolvido pelo Fisco desse estado. Não será elastecendo de forma inconstitucional a competência tributária do estado de destino que esse assunto será resolvido.

É uma pena que esses abusos se mantenham, a despeito de tanta tinta já gasta demonstrando a irregularidade do procedimento fiscal. É hora de o STF dar um basta nisso. Não será criando muros fiscais entre os estados que se conseguirá desenvolver esta federação. Devem ser construídas pontes, e não muros.

Fernando Facury Scaff

Advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; professor da USP e livre docente em Direito pela mesma universidade.

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