Responsabilidade exclusiva do mercador de créditos tributários falsos
Igor Mauler Santiago, Marco Antonio Cintra Gouveia
O artigo 137 do Código Tributário Nacional (CTN) [1] atribui responsabilidade tributária pessoal (= exclusiva) ao autor da infração fiscal:
1) dotada de relevância criminal, salvo estrito cumprimento de dever legal ou convencional (inciso I)
2) em cuja definição o dolo específico do agente seja elementar (inciso II); e
3) praticada, não em favor, mas em prejuízo das pessoas representadas pelo agente (inciso III).
Exemplo clássico é o do gerente financeiro que falsifica a guia de pagamento de um tributo e se apropria do respectivo valor, enganando a empresa em cujo benefício deveria atuar. Trata-se, contudo, de dispositivo mais fácil de explicar do que de aplicar, dado o enorme ônus probatório que impõe. Basta notar que pesquisa a seu respeito no STJ resulta em apenas cinco julgados, um anulando o acórdão de segundo grau que não o analisara (AgInt no AREsp. 818.014/SP) e quatro afastando a sua incidência no caso concreto por razões diversas (REsps. 981.511/AL, 976.611/MG, 838.549/SE e 236.902/RN). Hipótese de aplicação, nenhuma.
Eis que enfim nos deparamos com uma situação que se encaixa na regra: uma soi-disant empresa de consultoria, valendo-se de estudo falacioso, intermediou a venda de saldos oriundos do excesso de retenção de 11% contra cedentes de mão-de-obra (Lei 8.212/91, artigo 31), prometendo aos compradores a extinção de contribuições previdenciárias próprias.
Em suma, aduzia que tais saldos não seriam créditos nem teriam natureza fiscal, qualificando-se como “ativos financeiros” que não seriam objeto de compensação (CTN, artigo 156, inciso II), mas de pedido de quitação conducente a uma decisão administrativa irreformável (CTN, artigo 156, inciso IX), ademais automática (!), a dispensar a homologação da Receita Federal. Tudo para escamotear a vedação legal à compensação de créditos tributários de terceiros (Lei 9.430/96, artigo 74, caput e parágrafo 12, inciso II, alínea “a”) e também para permitir a cobrança imediata do preço, que girava em torno de 75% do valor de face dos “saldos” negociados.
Além dos dispositivos já citados, o parecer — raquítico, mas sedutor – invocava artigos da Lei 4.320/64 (normas gerais de Direito Financeiro), do Decreto 3.872/86 (unificação de recursos de caixa do Tesouro Nacional), do Decreto 3.048/99 (Regulamento da Previdência Social) e do Código Civil, sem falar em normas contábeis sobre os mais diversos temas — numa mixórdia capaz de confundir quem não seja calejado nos meandros da tributação. Completava o aliciamento a apresentação de um seguro que deveria ser renovado durante toda a vigência do contrato, mas que logo venceu e foi unilateralmente substituído por garantias evanescentes.
Spacca
O resultado foram autuações contra os compradores, para exigir-lhes o pagamento do tributo pretensamente extinto pelos tais “ativos”, com multa qualificada, juros e representação fiscal para fins penais. Notificado para prestar a assistência prometida, o vendedor rateou. Em paralelo, a Receita e a Polícia Federal deflagraram operação contra este último, com acusações de estelionato (Código Penal, artigo 171: obtenção de vantagem ilícita em prejuízo alheio — da União e dos adquirentes —, mediante a indução destes últimos em erro mediante ardil), e outros crimes.
A comprovação de que os compradores foram vítimas, e não partícipes, do esquema criminoso impõe a sua exclusão do polo passivo da relação obrigacional e o reconhecimento da responsabilidade integral dos agentes fraudadores pelo tributo e seus consectários.
De fato, como definido pelo STF tratando de outro comando (o artigo 135 do CTN, que impõe responsabilidade solidária entre o agente e o contribuinte, por tratar de ilícito que favorece este último), embora o tributo sempre decorra de ato lícito (CTN, artigo 3º, in fine), a responsabilidade tributária pode perfeitamente constituir sanção de conduta irregular:
“(…) 4. A responsabilidade tributária pressupõe duas normas autônomas: a regra matriz de incidência tributária e a regra matriz de responsabilidade tributária, cada uma com seu pressuposto de fato e seus sujeitos próprios. A referência ao responsável enquanto terceiro (dritter Persone, terzo ou tercero) evidencia que não participa da relação contributiva, mas de uma relação específica de responsabilidade tributária, inconfundível com aquela. O ‘terceiro’ só pode ser responsabilizado na hipótese de descumprimento de deveres próprios de colaboração para com a Administração Tributária, estabelecidos, ainda que a contrario sensu, na regra matriz de responsabilidade tributária, e desde que tenha contribuído para a situação de inadimplemento pelo contribuinte. (…)” (Pleno, RE 562.276/PR, Tema 13 da repercussão geral, relatora ministra Ellen Gracie, DJ 10.02.2011)
Incentivo a ilícitos e punição injusta
E nem se alegue que os efeitos do artigo 137, que trata de infração prejudicial ao contribuinte e benéfica somente ao respectivo autor, ficariam limitados a excluir os consectários, deixando o principal a cargo da vítima – interpretação que não encontra o menor respaldo na literalidade do dispositivo. Referenda-o Leandro Paulsen, para quem, “em casos como esses até mesmo o tributo fica a cargo exclusivo do agente, marcando a diferença entre as hipóteses e a abrangência das responsabilidades dos arts. 134 e 135 do CTN (…)” [2]. Na mesma senda vai Luís Eduardo Schoueri, tratando do exemplo sempre citado nos manuais, mas em raciocínio extensível a todos os casos enquadráveis no comando [3]:
“(…) É feliz o Código Tributário Nacional, quando utiliza, no artigo 137, a expressão ‘agente’, enquanto o artigo 135 fala em ‘responsável’. Este ainda atua em nome de terceiro, enquanto o agente tem atos em seu próprio interesse. Assim se um diretor de uma sociedade desvia negócios da empresa para sua conta pessoal, cometendo ilícito contra a sociedade, será ele, o diretor, quem responderá pela integralidade do crédito tributário. Não é caso de responsabilidade, regida pelo artigo 135. É, antes, imputação direta do fato jurídico ao agente, posto que agindo sob a fachada da pessoa jurídica, a qual, no caso, não concorre para o ato. O artigo 137 esclarece ser a responsabilidade pessoal do agente.”
A não aplicação da regra, ou a sua aplicação parcial (para exonerar os adquirentes dos créditos fraudulentos apenas de multa e juros), seria um incentivo à prática de ilícitos semelhantes, ao impor às vítimas — e não ao perpetrador — o ônus do crime. E seria uma injusta punição às primeiras, que já despenderam 75% do valor dos débitos (anote-se en passant que um deságio tão pequeno repele qualquer suspeita de associação ao esquema ilícito) e ainda teriam de pagar ao Fisco o seu valor integral, no caso de interpretação reducionista (impacto final de 175%), ou aquele acrescido de multa qualificada de 100% e juros de mora, em caso de afastamento radical do dispositivo (impacto final de 275% + a Selic).
Importante registrar, por fim, que o artigo 137 do CTN não implica perda arrecadatória para a Fazenda, mas o mero direcionamento da pretensão fiscal contra o autor da fraude, cujo patrimônio ilícito as autoridades têm total condição de localizar, bloquear e expropriar: privilégios, garantias e preferências do crédito tributário instituídos pelos artigos 183 a 200 do CTN, cautelares fiscais e criminais e perda do produto do crime como efeito da condenação (Código Penal, artigo 91, inciso II, alínea “b” e parágrafos 1º e 2º).
[1] “Art. 137. A responsabilidade é pessoal ao agente:
I – quanto às infrações conceituadas por lei como crimes ou contravenções, salvo quando praticadas no exercício regular de administração, mandato, função, cargo ou emprego, ou no cumprimento de ordem expressa emitida por quem de direito;
II – quanto às infrações em cuja definição o dolo específico do agente seja elementar;
III – quanto às infrações que decorram direta e exclusivamente de dolo específico:
a) das pessoas referidas no artigo 134, contra aquelas por quem respondem;
b) dos mandatários, prepostos ou empregados, contra seus mandantes, preponentes ou empregadores;
c) dos diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado, contra estas.”
[2] Curso de Direito Tributário Completo. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 302.
[3] Direito Tributário. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 1.133.
Igor Mauler Santiago, Marco Antonio Cintra Gouveia
Igor Mauler Santiago
é sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais, membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB e presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Processo Tributário (IDPT).
Marco Antonio Cintra Gouveia
é especialista em Direito Tributário pela PUC-SP e sócio de Mauler Advogados.