Reforma e o paradoxo do contencioso fragmentado

Edmundo Emerson Medeiros

A Emenda Constitucional (EC) nº 132/23 instituiu um novo modelo de tributação do consumo, com a criação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), de competência federal, e do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), gerido por Estados, municípios e Distrito Federal. Promoveu-se racionalização relevante: unificou-se a base econômica, padronizou-se a regra-matriz de incidência e institucionalizou-se mecanismo de cogestão federativa. Trata-se de uma inflexão funcional no pacto federativo, com centralização normativa sem eliminação das autonomias políticas.

Nesse contexto, merece destaque um aprimoramento procedimental introduzido pela Lei Complementar (LC) nº 214/25 – o “Lançamento por Declaração Assistida”. O mecanismo permite a constituição do crédito a partir da aceitação, expressa ou tácita, de proposta de apuração elaborada pelo Fisco, o que estimula a conformidade e dialoga com experiências internacionais como o ‘taxpayer-assisted assessment’ ou o ‘guided self-assessment’, comuns em modelos de compliance cooperativo. A despeito da unificação material e da convergência legislativa, permanece no Projeto de Lei Complementar (PLP) n° 108/24 e na LC nº 214/25 um paradoxo estrutural: a fragmentação dos processos decisórios da CBS e do IBS.

Enquanto a CBS continuará submetida à estrutura tradicional da Receita Federal e do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), o IBS será processado em um contencioso federativo inédito, sob responsabilidade exclusiva do Comitê Gestor do IBS (CG-IBS). Essa dissociação vai além do plano institucional – é também procedimental e interpretativa. Os sistemas terão ritos distintos e instâncias autônomas, sem articulação vinculante entre os precedentes formados.

Tal arquitetura decisória paralela tende a reproduzir assimetrias na aplicação da norma, mesmo sobre fatos tributários idênticos. O problema se agrava na esfera judicial: enquanto a CBS será discutida na Justiça Federal, o IBS caberá à Justiça Estadual ou do Distrito Federal. Como não há regra de conexão entre essas jurisdições, nem sobrestamento cruzado, abre-se espaço para decisões contraditórias – e eventual uniformização no Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou Supremo Tribunal Federal (STF), quando houver, será tardia e limitada, fragilizando a segurança jurídica.

O relatório do STJ sobre os impactos da reforma no Judiciário (2024) alertou para essa disfunção ao destacar que “a autonomia das autoridades administrativas foi preservada”, permitindo que “diferentes interpretações do direito e dos fatos” possam levar a que um dos tributos não seja lançado, a despeito do lançamento do outro. A advertência vale também para o Judiciário: sem articulação entre os sistemas decisórios, cada jurisdição tende a julgar isoladamente, comprometendo a previsibilidade do novo modelo federativo.

A literatura econômica há muito identificou esse tipo de risco. Richard Musgrave (1959) sustentava que a eficácia do federalismo fiscal depende do equilíbrio entre as funções alocativa, redistributiva e estabilizadora – o que pressupõe instituições integradas nessas dimensões. Wallace Oates (1999) reforçava que os benefícios da descentralização – como maior aderência às preferências locais – só se realizam com coordenação normativa e institucional. Charles McLure (2000) advertia que a fragmentação decisória compromete a legitimidade da tributação e sua funcionalidade distributiva. Esses autores convergem em um ponto: descentralização sem integração institucional gera ineficiência sistêmica e perda de racionalidade federativa.

É exatamente esse o paradoxo que se desenha: a base normativa foi unificada, mas os sistemas de julgamento seguem trilhas paralelas. O resultado é um duplo contencioso aplicado sobre a mesma materialidade, mas sem instância comum de convergência hermenêutica. A complexidade do modelo anterior não desaparece – apenas se redistribui, agora sob nova forma, com riscos ampliados de contradições jurisprudenciais e dispersão procedimental. A promessa de simplificação pode, na prática, converter-se em novo ciclo de insegurança jurídica, decorrente da ausência de mecanismos de coordenação entre os polos decisórios.

Alguns caminhos de superação são possíveis: no plano administrativo, o próprio PLP nº 108/24 poderia prever uma instância de uniformização vinculante entre o Carf e o CG-IBS, com competência para editar provimentos obrigatórios sobre temas comuns. No plano judicial, é viável estabelecer instrumentos de coordenação entre tribunais estaduais e federais, tais como incidentes de uniformização cruzada. A médio prazo, poderia ser criada uma câmara jurisdicional mista – com magistrados federais e estaduais – encarregada de consolidar jurisprudência em matéria de tributação do consumo, ainda que isso dependa de uma EC.

A EC nº 132/23 foi um passo importante em direção à simplificação e à racionalidade na tributação do consumo, mas sua efetividade dependerá da integração entre os ciclos normativo, arrecadatório e contencioso. Sem mecanismos de articulação entre os regimes decisórios da CBS e do IBS, o sistema corre o risco de reiterar – com maior sofisticação e sob nova arquitetura – os mesmos vícios históricos de dispersão e insegurança jurídica que marcaram o contencioso tributário. A unificação material não basta: é na convergência procedimental – e na construção de soluções institucionais integradas – que efetivamente se realiza o federalismo cooperativo prometido pela reforma.

Edmundo Emerson Medeiros

coordenador de pós-graduação e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e sócio de SA Law Advogados

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