Redirecionamento da execução fiscal: não basta o mero inadimplemento
Luis Claudio Ferreira Cantanhêde
No nosso último artigo publicado nesta coluna [1], exploramos a legitimidade passiva na execução fiscal estabelecendo um necessário diálogo entre o Código Tributário Nacional (CTN) e a Lei de Execuções Fiscais (LEF) a fim de demonstrar que o responsável tributário pode figurar como devedor da execução desde o seu ajuizamento, encontrando, portanto, no inciso I do artigo 4º da LEF, a regra que lhe atribui legitimidade passiva, mas também pode figurar na qualidade de terceiro a quem a execução é redirecionada em virtude da incidência de alguma das hipóteses previstas nos artigos 134 e 135 [2] do CTN, situação na qual a sua legitimação encontrará fundamento no inciso V do artigo 4º da lei das execuções fiscais.
Essa recordação é fundamental para que possamos retomar o raciocínio ali desenvolvido, pois neste artigo pretendemos iniciar a exploração do tema do redirecionamento da execução fiscal em face de terceiros. Nesses casos, por ser terceiro nos aspectos material e processual, o responsável não figura no polo passivo da obrigação tributária, tampouco na qualidade de devedor na certidão de dívida ativa e na petição inicial da execução fiscal.
Todavia, no curso do processo executivo, porque surgem provas de um fato jurídico que, enquadrado em uma das hipóteses previstas nos artigos 134 e 135 do CTN e aliado à permanência da situação de inadimplência do crédito, viabiliza-se o redirecionamento da cobrança executiva em face de um terceiro, o qual, após pedido expresso da exequente baseado no arcabouço probatório deduzido e deferimento por parte do juiz, passa a compor o polo passivo da execução fiscal para ter seu patrimônio submetido à expropriação forçada.
Ora, essa situação converte aquele terceiro em parte da demanda, dando azo a um litisconsórcio passivo ulterior, submetendo o seu patrimônio à atividade expropriatória. Convém destacar que o exemplo mais comum de fato jurídico que, aliado à inadimplência da obrigação tributária, justifica o redirecionamento da execução fiscal é o propalado caso da dissolução irregular da empresa, que na realidade consiste na paralisação das atividades empresariais sem o devido procedimento de liquidação.
Essa específica hipótese submete-se ao disposto no inciso III do artigo 135 do CTN que prevê a responsabilidade de diretores, gerentes e representantes de pessoas jurídicas de direito privado pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração à lei, ao contrato social ou ao estatuto e se tornou tão comum que deu ensejo à edição, pela 1ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, da súmula 435, com o seguinte teor: “Presume-se dissolvida irregularmente a empresa que deixar de funcionar no seu domicílio fiscal, sem comunicação aos órgãos competentes, legitimando o redirecionamento da execução fiscal para o sócio-gerente”.
Como se nota, a responsabilização patrimonial de terceiros no âmbito da execução fiscal depende da satisfação de alguns requisitos, dentre os quais assoma a necessidade de que a sua atuação mostre-se ilícita, seja porque desbordante dos limites dos poderes que pode exercer no âmbito da empresa, seja porque gere a impossibilidade de adimplemento da obrigação por parte do sujeito passivo originário. A primeira hipótese está prevista no artigo 135, enquanto a segunda, no 134, ambos do Código Tributário Nacional.
Constatar que há requisitos específicos a serem cumpridos para que se possa cogitar, legitimamente, redirecionar uma execução fiscal em face de um terceiro permite que se reflita sobre o teor de um outro enunciado sumular do Superior Tribunal de Justiça, qual seja, o de nº 430, que prevê: “O inadimplemento da obrigação tributária pela sociedade não gera, por si só, a responsabilidade solidária do sócio-gerente”.
A reflexão proposta gira em torno da antiga e conhecida distinção entre débito (shuld) e responsabilidade (haftung), divisão que os civilistas anteviam dentro do mesmo vínculo obrigacional [3], mas que preferimos dividir em dois vínculos normativos distintos, o débito surge com o lançamento e vincula o sujeito passivo ao Estado que detém um direito subjetivo à prestação, enquanto que a responsabilidade somente se faz presente com o inadimplemento (descumprimento da prestação) e por meio dela, em síntese, o Estado passa a ver-se encarnado do poder de, valendo-se do devido processo legal, expropriar o patrimônio do devedor inadimplente.
Como parece claro, a responsabilidade do sujeito passivo da obrigação tributária (shuld) contenta-se com o simples e puro inadimplemento do crédito. Nada mais é necessário para que o titular do direito subjetivo inadimplido tome as providências necessárias ao ajuizamento da execução fiscal e logre, por intermédio da atividade jurisdicional substitutiva, expropriar o seu patrimônio.
De outro lado, e aqui destaca-se a importância do enunciado da Súmula 430 do Superior Tribunal de Justiça, a responsabilidade patrimonial de terceiros a quem se pretenda redirecionar uma execução fiscal exige a concomitância do inadimplemento com um dos fundamentos previstos nos já mencionados artigos 134 e 135 do CTN.
Isso se justifica porque ele, o terceiro, não é devedor originário, não figura no polo passivo da relação jurídica tributária fruto da aplicação da regra matriz, jamais, portanto, foi titular do dever jurídico de pagar. Se ele não era devedor, não se lhe pode infligir a sanção consistente na expropriação forçada em decorrência de um fato jurídico ilícito cuja prática não se lhe pode imputar.
Assim, porque descabe sancionar alguém sem que se lhe atribua uma atuação descumpridora de uma regra jurídica, de um dever, para tanto o terceiro deve praticar conduta que, aliada ao inadimplemento da obrigação por parte do sujeito passivo, legitime a submissão do seu patrimônio à expropriação forçada para o pagamento de débito alheio, dando ensejo à sua responsabilidade (haftung).
E é na definição dessas condutas que os artigos 134 e 135 do Código Tributário Nacional sobressaem em importância, quando a questão é a atribuição da condição de devedor ao responsável tributário.
[1] https://www.conjur.com.br/2022-out-09/processo-tributario-legitimidade-passiva-contribuinte-responsavel-art-lef
[2] Art. 134. Nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte, respondem solidariamente com este nos atos em que intervierem ou pelas omissões de que forem responsáveis:
I – os pais, pelos tributos devidos por seus filhos menores;
II – os tutores e curadores, pelos tributos devidos por seus tutelados ou curatelados;
III – os administradores de bens de terceiros, pelos tributos devidos por estes;
IV – o inventariante, pelos tributos devidos pelo espólio;
V – o síndico e o comissário, pelos tributos devidos pela massa falida ou pelo concordatário;
VI – os tabeliães, escrivães e demais serventuários de ofício, pelos tributos devidos sobre os atos praticados por eles, ou perante eles, em razão do seu ofício;
VII – os sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas.
Parágrafo único. O disposto neste artigo só se aplica, em matéria de penalidades, às de caráter moratório.
Art. 135. São pessoalmente responsáveis pelos créditos correspondentes a obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos:
I – as pessoas referidas no artigo anterior;
II – os mandatários, prepostos e empregados;
III – os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.
[3] “O vínculo jurídico que ligava o devedor ao credor nos primórdios de Roma, como já exposto, tinha caráter estritamente pessoal, notando-se um direito do credor sobre a pessoa do devedor, como num estágio tendente à escravidão deste último. Posteriormente, o vínculo atenua-se paulatinamente, torna-se mais humano, mais conforme aos princípios da liberdade e autonomia da vontade. Modernamente, podemos dizer que o vínculo tem caráter pessoal, porém diverso da rudeza antiga, porque se tem em mira um dever do devedor em relação ao credor. Esse caráter legitima uma expectativa do credor de que o devedor pratique uma conduta esperada pelo primeiro. Como vimos, nesse caráter obrigacional há uma executividade eminentemente patrimonial, tendo em vista os meios que o ordenamento coloca à disposição do credor para a satisfação de seu crédito.
Nessas noções preliminares e introdutórias até aqui vistas, já acenamos que, normalmente, na obrigação existe um elemento pessoal e um elemento patrimonial. O primeiro é relativo à decantada atividade do devedor, ou mais exatamente a um comportamento deste, já que a obrigação pode ser negativa; comportamento esse que se liga à vontade do credor. O segundo elemento, o patrimonial, é passivo com relação ao devedor, pois se refere à disposição de seu patrimônio para a satisfação do credor. O devedor deve suportar a situação de servir seu patrimônio de adimplemento da obrigação.
Nitidamente, pois, divisam-se os dois elementos da obrigação: o débito (debitum, Shuld, em alemão) e a responsabilidade (obligatio,Haftung).” VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos, 3ª edição. São Paulo: Atlas, 2003. v.2. p. 42-43.
Luis Claudio Ferreira Cantanhêde
Procurador do estado de São Paulo, doutor e mestre em Direito pela PUC-SP, especialista em Direito Tributário pela PUC-SP e em Direito do Estado pela Espge-SP, professor no curso de pós-graduação de Direito Tributário e de Extensão do Processo Tributário Analítico no Ibet, professor de Direito Tributário na Espge-SP e pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.