Recurso Voluntário no CARF: Só para os Grandes Contribuintes?
Marcelo Magalhães Peixoto; Abel Escórcio Filho
Entre as disposições enunciadas pela Medida Provisória (MP) 1.160/2023, chama-nos a atenção a contida em seu art. 4º[3], que altera a redação do art. 27-B da Lei 13.988/2020, majorando a alçada de julgamento dos processos no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) de 60 (sessenta) para mil salários-mínimos.
A Medida Provisória, em sua justificativa, descreve um cenário alheio à realidade do contencioso administrativo tributário brasileiro, aduzindo que o modelo atual seria “único” no mundo, e que tal modelo serviria apenas para promover a litigiosidade, ao conferir uma garantia supostamente não prevista na Constituição, retratada pelo acesso do contribuinte ao CARF para processos cujo montante em discussão fossem superiores a 60 salários-mínimos[4].
Com a implementação dessa medida, haveria: (a) redução de mais de 70% dos processos que entram no CARF, mas que representam menos de 2% do valor total; (b) drástica redução do tempo para solução dos litígios.
O argumento não convence.
Inicialmente, cumpre apontar que manobra semelhante já foi realizada em 2020 (Medida Provisória 899/2019), quando o Governo buscou regulamentar e restringir o acesso do contribuinte ao CARF, para o limite de 60 salários-mínimos. Na época, a mesma justificativa veiculada na Medida Provisória 1.160/2023 fora enunciada. Entretanto, é curioso notar que o efeito foi justamente o inverso. Houve aumento do contencioso administrativo tributário.
Do ponto de vista jurídico, a alteração da alçada para acesso ao CARF para o limite de mil salários-mínimos vai na contramão da Constituição e de decisões do Supremo Tribunal Federal (STF), especialmente no que tange ao princípio/norma do duplo grau de jurisdição.
O princípio do duplo grau de jurisdição, nas palavras de Canotilho, reflete a possibilidade de o jurisdicionado “obter o reexame de uma decisão jurisdicional superior (‘instância de segundo grau’)”[5]. Na Constituição, essa norma/princípio hodiernamente representa uma garantia constitucional, mesmo não havendo sua expressa menção no texto. Entretanto, é bem verdade que o Supremo Tribunal Federal passou a conferir esse status de garantia constitucional à norma do duplo grau de jurisdição, na história mais recente[6]. Até meados de 2005, havia discussões no STF acerca do tratamento constitucional desse dispositivo.
Entretanto, no julgamento da ADIn 1.976/DF, em março de 2007, em que se discutia a constitucionalidade de norma que prescrevia a necessidade de depósito prévio para interposição de recurso administrativo, o STF reformou sua posição. O então Ministro Relator, Joaquim Barbosa, em seu voto destacou que a criação de obstáculos que impeçam ou dificultem o acesso do cidadão a instâncias recursais fere o princípio da legalidade, uma vez que impede a própria administração de cumprir com seus deveres democráticos no que concerne à revisão dos seus atos.
Ademais, destacou o Ministro em seu voto que a norma do duplo grau de jurisdição estaria situada no âmbito dos direitos fundamentais, especificamente nos dispositivos prescritos no art. 5º, XXXIV (direito de petição independentemente do pagamento de taxas) e LV (contraditório), em juízo, como em seus procedimentos internos.
A construção da democracia e de um Estado democrático de Direito exige por parte da administração pública, antes de mais nada, o respeito ao princípio da legalidade, quer em juízo, quer em seus procedimentos internos. A impossibilidade ou inviabilidade de se recorrer administrativamente equivale a impedir que a própria Administração Pública revise um ato administrativo porventura ilícito. […] Entendo, pois, que tornar o procedimento administrativo impossível ou inviável, por meios indiretos, constitui ofensa ao princípio da legalidade. E inúmeras vezes, a infração ao princípio da legalidade, e mais especificamente, à legalidade em matéria de procedimento, leva à violação de direitos fundamentais. Da necessidade de se proporcionar um procedimento administrativo adequado surge o imperativo de se consagrar a possibilidade de se recorrer dentro do próprio procedimento. O direito ao recurso em procedimento administrativo é tanto um princípio geral de direito como um direito fundamental (STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.976-7/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 28.03.2007).
Veja-se que a Constituição de 1988 consagrou o direito de petição juntamente com o direito ao contraditório por uma razão simples: o contraditório só se efetiva de maneira ampla quando há garantia de acesso do cidadão ao Judiciário e aos processos administrativos internos, até o limite das matérias e das instâncias que são legalmente competentes. E o direito de petição é norma que instrumentaliza a aplicação do contraditório, uma vez que é por meio dos instrumentos processuais que as matérias em discussão são apreciadas e conhecidas.
Em outras palavras, é dizer que o cidadão que recorre administrativamente exerce, antes de tudo, um direito de petição e contraditório perante a autoridade legal. Não por outro motivo, no art. 5º, LV, da Constituição afirma-se que “[…] aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
Note-se que, por esse raciocínio, e com base na própria decisão do STF, sequer poderíamos falar na existência de um limite de alçada para que o contribuinte viesse a provocar o CARF, seja por meio de alçadas menores, de 60 salários-mínimos, seja com a imposição de mil salários.
E a própria Medida Provisória 1.160/2023 aponta de forma cristalina essa tentativa de solapar os direitos dos contribuintes, quando adota como justificativa o dado de que em média 170 mil processos – 70% da demanda do contencioso no CARF –, representariam menos de 3 bilhões de dívidas. Essa premissa demonstra que o objetivo da medida é apenas reduzir o estoque de discussões, pouco importando a matéria ou o direito que estariam ali sendo discutidos. É um critério estritamente econômico, do ponto de vista orçamentário.
Ademais, e sobre esse ponto, observe-se que a própria terminologia empregada pelo Governo Federal para classificar o grau de complexidade dos processos que tramitam na esfera administrativa se apresenta equivocada. É que o art. 4º da MP 1.160/2023 se vale de um critério estritamente econômico para classificar o processo como complexo ou não.
O vocábulo “complexo” remete à ideia daquilo “que encerra ou abrange muitos elementos ou partes, que pode ser observado sob vários pontos de vista, um conjunto de muitas coisas, circunstâncias ou atos, que entre si têm qualquer ligação”[7]. Trata-se de uma medida que em muito promove a transformação desse importante órgão revisor dos lançamentos tributários em um tribunal censitário.
Tal critério também provoca questionamento acerca da violação do princípio da isonomia em matéria tributária, na medida em que tal preceito estaria criando um tratamento desproporcional para contribuintes, com base apenas no seu porte econômico. Em outras palavras, os grandes contribuintes, que estão mais propensos a sofrer autuações em valores maiores – compatíveis com sua capacidade econômica – seriam beneficiados pelo Estado, uma vez que teriam à sua disposição o direito de ter suas matérias debatidas por um colegiado, e com maior profundidade técnica.
Outra inconstitucionalidade presente, e que decorre do princípio da isonomia, é que a adoção desse critério econômico vai de encontro à determinação constitucional de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, insculpido no art. 146, III, “d”, e no art. 179 da CRFB/1988. Isso porque a limitação imposta tolhe o direito de apreciação dos processos dessas categorias pelo CARF, promovendo um tratamento discriminatório à revelia da própria Constituição.
Sem dúvidas, esse critério adotado não irá produzir os efeitos esperados, seja na diminuição dos processos em âmbito administrativo, seja na facilitação da arrecadação de tributos. Muito pelo contrário. Essas medidas levarão a um aumento da judicialização, pelo simples fato de que os contribuintes irão se socorrer ao Judiciário para a discussão de suas matérias, com a profundidade e a seriedade que se esperam do órgãos jurisdicionais.
Nesse ponto, não podemos esquecer que a principal razão de ser do processo administrativo tributário é o poder-dever de revisão dos atos praticados pelo agente fiscal, a fim de que a segurança jurídica e a legalidade sejam garantidas. Daí por que um órgão técnico revisor desses atos se faz indispensável.
Vale lembrar que a cobrança de tributos de forma contrária à lei traz inúmeros prejuízos ao contribuinte e à própria economia, na medida em que a cobrança de tributos em patamares maiores ou menores está conectada à própria capacidade contributiva do sujeito passivo. Isso não significa dizer que as maiores discussões tributárias – em seu nível de complexidade – estejam concentradas naqueles sujeitos que possuem maior capacidade econômica/contributiva.
Em suma, se é verdade que um dos objetivos fundamentais do Direito é a estabilidade das relações, com a pacificação dos conflitos por meio das decisões dos órgãos competentes, retirar do contribuinte o pleno exercício de seu direito ao contraditório e de seu direito de petição é medida que vai na contramão desse objetivo.
[1] Presidente-fundador da APET (Associação Paulista de Estudos Tributários). Mestre e Doutorando em Direito pela PUC/SP. Advogado.
[2] Especialista e mestre em Direito Tributário pelo IBET. Pesquisador da APET. Advogado.
[3] “Art. 4º A Lei n. 13.988, de 14 de abril de 2020, passa a vigorar com as seguintes alterações: ‘Art. 27-B. Aplica-se o disposto no art. 23 ao contencioso administrativo fiscal de baixa complexidade, assim compreendido aquele cujo lançamento fiscal ou controvérsia não supere mil salários mínimos.’”
[4] De acordo com o sumário executivo da Medida Provisória: “Com isso, o julgamento desses processos de baixa complexidade será realizado em última instância por órgão colegiado da Delegacia da Receita Federal do Brasil de Julgamento (DRJ) da RFB, não mais pelo CARF. Além disso, será possível a adoção de métodos alternativos de solução de litígio, inclusive transação. A Exposição de Motivos indica que o parâmetro de mil salários-mínimos foi adotado com base no valor estabelecido no inciso I do § 3º do art. 496 da Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil (CPC), que dispõe sobre o limite de alçada da remessa necessária, no caso de sentença proferida contra a União ou que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução fiscal. Ademais, os dados gerenciais do contencioso administrativo fiscal revelam que ‘a ampliação do limite de alçada poderá reduzir em cerca de 70% (setenta por cento) a quantidade de processos encaminhados ao CARF, o que poderá reduzir o tempo médio para o órgão entrar no fluxo para 2,27 anos’”.
[5] GOMES CANOTILHO, José Joaquim. Direito constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1998. p. 583.
[6] Por exemplo, a ideia do duplo grau de jurisdição, como garantia constitucional, já foi afastada quando do julgamento do Ag. Reg. em AI 210.048-0/SP (Rel. Min. Marco Aurélio, DJ 04.12.1998). No mesmo sentido, o acórdão da ADI 1.049 (Rel. Min. Carlos Velloso) e o RE 210.246 (Rel. p/ o acórdão Min. Nelson Jobim).
[7] FIGUEIREDO, António Cândido de. Novo diccionário da língua portuguesa. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1913.
Marcelo Magalhães Peixoto; Abel Escórcio Filho
Marcelo Magalhães Peixoto; Presidente-fundador da APET (Associação Paulista de Estudos Tributários). Mestre e Doutorando em Direito pela PUC/SP. Advogado.
Abel Escórcio Filho; Especialista e mestre em Direito Tributário pelo IBET. Pesquisador da APET. Advogado.