Questões sobre a incidência de IBS e CSB em operações com bens imateriais
Vinicius Pimenta Seixas, Paula Zugaib Destruti
Diz-se que um gato que tenha sido escaldado cria aversão a qualquer tipo de água, mesmo que esta seja fria e inofensiva. Se os contribuintes brasileiros fossem equiparados aos felinos, não seria nenhum exagero afirmar que eles já foram escaldados nas mais altas temperaturas. É justamente por isso que, por mais que a aprovação da Emenda Aglutinativa do Plenário à PEC. 45/2019 pela Câmara dos Deputados tenha sido um importante avanço para o Sistema Tributário Nacional, há alguns pontos que já têm gerado debates entre os aplicadores do direito, e merecem ser analisados com cautela.
Neste breve artigo, e a fim de contribuir com os possíveis ajustes no texto da reforma, destacamos um ponto que pode gerar algumas inquietudes: uso da terminologia “bens imateriais” na definição do fato gerador do Imposto e da Contribuição sobre Bens e Serviços (IBS e CBS).
Como se sabe, o atual texto da reforma tributária é uma combinação da PEC 45/2019, do deputado Baleia Rossi, e da PEC 110/2019, do senador Davi Alcolumbre. Ambos os projetos previam originalmente que os fatos geradores do(s) novo(s) tributo(s) seriam as “operações com bens e serviços”, assim como as operações com “intangíveis”, a “cessão ou licenciamento de direitos”, as “locações” (incluídas pela PEC 110/2019) e as “importações”.
O texto aprovado em 07.7.2023, contudo, prevê que o IBS e a CBS incidirão “sobre operações com bens materiais ou imateriais, inclusive direitos, ou com serviços”. Dentre as diversas questões que podem surgir dessa previsão, uma bastante pertinente nos parece ser: qual será o alcance da expressão “bens imateriais”?
Este curioso termo surgiu pela primeira vez no Substitutivo apresentado pela Comissão Mista Temporária da Reforma Tributária formada em 19/2/2020. O texto elaborado por membros de ambas as Casas não seguiu para apreciação do Congresso Nacional por extinção do prazo regimental, mas diversos de seus elementos foram incorporados aos substitutivos das PECs originais, inclusive a definição do fato gerador transcrita acima.
Conforme o parecer de Plenário produzido pela Comissão Especial da Câmara dos Deputados, o objetivo da redação adotada seria estabelecer uma “base ampla, alcançando o consumo de todos os bens e serviços que existem ou que venham a existir, independentemente [da sua classificação]”. Em outras palavras, o objetivo seria alcançar uma ampla gama de atos econômicos e, desse modo, mitigar futuros questionamentos sobre a constitucionalidade da cobrança.
Ocorre que, a nosso ver, a expressão “bens imateriais” pode gerar um novo contencioso caso o Senado não venha a esclarecer seus limites quando revisar o texto da reforma tributária. A título de exemplo, levantamos três questões iniciais sobre o futuro conceito de bens imateriais. O objetivo dessas provocações é destacar a importância de uma definição precisa do fato gerador do IBS e da CBS para que fiquem claros os parâmetros de elaboração da legislação complementar.
1) Bens imateriais incluem ou não direitos?
Um primeiro ponto que chama a atenção refere-se à inclusão dos “direitos” na categoria de “bens imateriais”. Em princípio, a regra matriz de incidência do IBS e da CBS alcança operações com “bens materiais e imateriais, inclusive direitos” (artigo 156-A, §1º, inciso I). Essa mesma redação é utilizada nos incisos que tratam da importação (inciso II) e da tomada de crédito (inciso VIII). Entretanto, o inciso que faz referência à manutenção de créditos na exportação não contém a expressão “inclusive direitos” (inciso III). Qual seria a razão para essa omissão?
Uma leitura contextualizada do texto aprovado pela Câmara dos Deputados diria que os “direitos” fazem parte do rol de “bens imateriais”, haja visto o uso da palavra “inclusive” após a vírgula. Isto é, em princípio, não seria necessário repetir a expressão “inclusive direitos” no inciso III para garantir a manutenção dos créditos apurados pelo contribuinte em operações de cessão, licenciamento, transferência ou venda de direitos a contrapartes estrangeiras, pois o inciso III asseguraria esses créditos em operações com “bens imateriais”.
Entretanto, sabemos bem que a análise sistemática nem sempre baliza a aplicação do direito tributário no Brasil, de forma que as autoridades fiscais poderiam alegar que a ausência da palavra “direitos” no inciso III indicaria, na verdade, uma intenção do legislador de impedir que os contribuintes mantenham os créditos apurados nas operações de exportação baseadas na exploração de direitos. Uma mudança simples na redação do texto pelo Senado garantiria mais segurança aos contribuintes.
2) O conceito de bens imateriais poderá incluir ativos monetários e financeiros?
Como dito, a Comissão Mista parece ter substituído o termo “intangíveis”, presente nas versões originais das PECs 45/2019 e 110/2019, pela expressão “bens imateriais”, adotada nas propostas posteriores. Segundo o Pronunciamento Contábil 04 (CPC), os únicos bens incorpóreos não compreendidos no conceito de “ativo intangível” são os “ativos monetários”, como caixa ou aplicações financeiras de curto prazo. Até mesmo os ativos financeiros, que possuem um tratamento contábil próprio, podem ser classificados como intangíveis em muitos casos. Assim, fica a dúvida: teria o Congresso pretendido deixar uma brecha para permitir a tributação de, digamos, “bens financeiros” por meio do IBS e da CBS no futuro?
Dois pontos são relevantes nesse aspecto. Primeiro, lembramos que o texto original da PEC 110/2019 incorporava o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) na CBS. Nesse contexto, a substituição do termo “intangíveis” por “bens imateriais” teria algum sentido, pois poderia afastar controvérsias quanto à incidência da contribuição sobre transações financeiras, como operações de câmbio ou aplicações financeiras de curto prazo. Entretanto, o texto aprovado pela Câmara dos Deputados não alcança o IOF de nenhuma forma, de modo que a substituição pode não ter mais sentido no conjunto do texto que segue agora para o Senado.
Segundo, no projeto de reforma tributária aprovado pela Câmara dos Deputados, os ganhos decorrentes de operações financeiras sujeitos à incidência do IBS e da CBS estão listados no rol taxativo do artigo 10 da Emenda Aglutinativa e deverão ser tributados conforme regime especial a ser estabelecido por lei (futuro artigo 156-A, § 5º, V, “b” da CF/88)[1]. Logo, e considerando especialmente que o artigo 10 classifica essas operações como “serviços financeiros”, não como “bens”, nos parece que a substituição do já conhecido termo “intangíveis” por “bens imateriais” é, digamos… imaterial.
Ainda assim, não se pode descartar a possibilidade de o conceito de “bens imateriais” ser utilizado para alcançar outros ganhos financeiros decorrentes de operações não previstas no artigo 10. Atualmente, vale lembrar, as receitas financeiras estão sujeitas ao regime cumulativo do PIS e da Cofins à alíquota combinada de 4,65%, ou seja, inferior à padrão de 9,25%. Contudo, na hipótese do IBS e da CBS incidirem também sobre ganhos financeiros para além daqueles decorrentes das operações previstas no artigo 10, não haveria fundamento constitucional para respaldar a aplicação de alíquota reduzida como existe hoje. Assim, aguardar a definição da legislação complementar nessa hipótese não parece uma alternativa viável, cabendo ao Senado se posicionar sobre o tema.
3) Qual o papel da definição de bens imateriais que já existe na Constituição brasileira?
Por fim, vale também notar que o termo “bens imateriais” já é empregado pela Constituição de 1988. Conforme o artigo 216 da Carta Maior, o patrimônio cultural brasileiro é formado por bens materiais e imateriais que fazem referência à identidade, à ação ou à memória de grupos nacionais. Segundo o referido artigo, os bens imateriais podem englobar “formas de expressão”, “modos de criar, fazer e viver”, “criações científicas, artísticas e tecnológicas”, dentre outros.
Ora, é no mínimo inquietante que o texto aprovado pela Câmara dos Deputados empregue uma expressão já definida pela própria Constituição e de forma tão ampla. A definição de um conceito específico para fins tributários será fatalmente necessária, especialmente considerando que a acepção de bens imateriais prevista no artigo 216 inclui elementos coletivos e/ou sem valor econômico. E caso esse conceito não venha a ser delimitado pelo Senado, uma nova fronteira de disputa surgirá em torno da legislação complementar.
Em resumo, parece-nos que o uso de uma nova terminologia para definir o fato gerador do IBS e da CBS (bens imateriais ao invés de intangíveis) transfere para a legislação complementar a competência constitucional de definir o campo de incidência desses tributos. Essa delegação pode ensejar um novo conjunto de controvérsias perante o STF, especialmente se a exação vier a invadir outras competências tributárias ou carecer de coerência jurídica interna.
Alguns dirão que ainda é muito cedo para antever se a mudança trará efeitos práticos positivos, no entanto, no atual momento, é fundamental que os termos contidos na proposta sejam depurados e trazidos ao debate, para se evitar a geração de novos contenciosos desnecessários, indo na contramão de um dos principais intuitos da reforma tributária, que é a simplificação do sistema e a consequente redução do contencioso fiscal. Como se diz por aí, gato escaldado tem medo de água fria.
[1] Estão compreendidas pelo artigo 10 as seguintes operações financeiras: (a) operações de crédito, câmbio, seguro, resseguro, consórcio, arrendamento mercantil, faturização, securitização, previdência privada, capitalização, arranjos de pagamento, operações com títulos e valores mobiliários, inclusive negociação e corretagem, e outras que impliquem captação, repasse, intermediação, gestão ou administração de recursos; (b) outros serviços prestados por entidades administradoras de mercados organizados, infraestruturas de mercado e depositárias centrais, e por instituições autorizadas a funcionar pelo Banco Central do Brasil, na forma de lei complementar.
Vinicius Pimenta Seixas, Paula Zugaib Destruti
Vinicius Pimenta Seixas é sócio de Pinheiro Neto Advogados, mestre pela New York University (NYU).
Paula Zugaib Destruti é associada de Pinheiro Neto Advogados, doutora pela Universidade de São Paulo (USP), mestre pela University of Oxford e especialista pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT).