Quem se enquadra na alíquota zero no Perse

Leonardo Mazzillo

A Lei nº 14.148/2021, publicada em 3 de maio de 2021, instituiu o Perse (Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos), prevendo benefícios destinados a grupo de empresas diretamente afetado pelas medidas de combate à pandemia da Covid 19.

O programa prevê, basicamente, três benesses fiscais às empesas alcançadas, sendo a que nos interessa agora a redução a zero, por sessenta meses, das alíquotas do IRPJ, da CSLL, do PIS e da Cofins.

O regramento parece simples, mas diversos pontos da lei levam os contribuintes a interpretar de maneira incorreta o programa e sua abrangência, começando pelo seu próprio nome de batismo, que dá a falsa noção de o programa aplicar-se apenas ao setor de eventos.

A ideia aqui não é destrinchar a lei em todos os seus pontos controvertidos, mas analisar quem efetivamente está abrangido no benefício da alíquota zero do Perse, especialmente em face da recente edição da IN/RFB 2.114/2022. Para isso, vamos analisar a técnica de enquadramento escolhida pela lei e, assim, identificar qual a correta interpretação que se pode extrair da recém editada IN.

Histórico legislativo
O PL nº 5.683, apresentado em 22 de dezembro de 2020, referia-se inicialmente apenas ao “setor de eventos” como destinatário da norma. Depois de intensos debates e dezenas de propostas de emendas, o PL enviado para sanção presidencial contemplava como integrantes do “setor de eventos” e, portanto, como beneficiárias do Perse as empresas que exercem, direta ou indiretamente, as seguintes atividades econômicas (conforme texto da Lei 14.148/2021, sancionada pela Presidência da República):

“Artigo 2º (…)
§1º Para os efeitos desta Lei, consideram-se pertencentes ao setor de eventos as pessoas jurídicas, inclusive entidades sem fins lucrativos, que exercem as seguintes atividades econômicas, direta ou indiretamente:
I – realização ou comercialização de congressos, feiras, eventos esportivos, sociais, promocionais ou culturais, feiras de negócios, shows, festas, festivais, simpósios ou espetáculos em geral, casas de eventos, buffets sociais e infantis, casas noturnas e casas de espetáculos;
II – hotelaria em geral;
III – administração de salas de exibição cinematográfica; e
IV – prestação de serviços turísticos, conforme o artigo 21 da Lei nº 11,771, de 17 de setembro de 2008.”

A lei previu, ainda, que o Ministério da Economia seria responsável por listar e publicar os códigos da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (Cnae) que estariam enquadrados no conceito de “setor de eventos”:

“Artigo 2º (…) §2º Ato do Ministério da Economia publicará os códigos da Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) que se enquadram na definição de setor de eventos referida no §1º deste artigo.”

Vale destacar que, à época de sua publicação, a lei sofreu vetos importantes pelo presidente da República acerca de parte dos benefícios previstos, como é o caso da redução a zero das alíquotas do IRPJ, da CSLL, do PIS e da Cofins (PIS/Cofins). O veto a esse benefício, contudo, foi derrubado pelo Congresso em 17 de março de 2022 [1].

Dos setores beneficiados pela alíquota zero
Como visto, a Lei 14.148/2022 atribuiu ao Ministério da Economia a tarefa de estabelecer quais empresas estariam enquadradas no conceito de “setor eventos”, fixando, por meio de uma relação de Cnaes, quais seriam as pessoas jurídicas que exercem atividades econômicas, direta ou indiretamente relacionadas ao “setor de eventos”. Editou-se, assim, a Portaria ME nº 7.163, de 21 de junho de 2021, com indicação dos códigos CNAE enquadrados no programa:

“Portaria ME nº 7.163/2021
O MINISTRO DE ESTADO DA ECONOMIA, (…) tendo em vista o disposto no §2° do artigo 2° da Lei n° 14.148, de 3 de maio de 2021, resolve:
Artigo 1° Definir os códigos da Classificação Nacional de Atividades Econômicas — Cnae que se consideram setor de eventos nos termos do disposto no §1° do artigo 2° da Lei n° 14.148, de 3 de maio de 2021, na forma dos Anexos I e II.”

A portaria diz, claramente (sic), “que se consideram setor de eventos”, isto é, que realizam atividades relacionadas direta ou indiretamente às atividades descritas no artigo 2º da Lei 14.148/2021, aquelas relativas às Cnaes elencadas nos anexos da Portaria.

Sensível aos perniciosos efeitos econômicos da pandemia da Covid-19, o Ministério da Economia conferiu a amplitude pretendida pela Lei 14.148/2021 nos anexos da portaria, que iniciam a lista de beneficiados com a Cnae 1813-0/01 — Impressão de Material para Uso Publicitário, seguidas de outras Cnaes indiretamente relacionadas ao “setor de eventos”, como a 7490-1/01 — Serviços de Tradução, Interpretação e Similares e 7810-8/00 — Seleção e Agenciamento de Mão de Obra.

O legislador poderia adotarpelo menos duas técnicas diferentes para estabelecer o enquadramento das empresas no regime tributário diferenciado. A primeira seria a do enquadramento objetivo, isto é, vinculado ao objeto, cabendo ao contribuinte declarar e à fiscalização confirmar nos casos concretos se, e em que medida, a atividade do contribuinte teria relação direta ou indireta com o “setor de eventos”.

A segunda seria a do enquadramento subjetivo, isto é, ligado ao sujeito, valendo-se de instrumento de categorização como a Cnae para, formalmente, estabelecer quem está e quem não está na lista de agraciados do benefício. Essa segunda, evidentemente, foi a escolha do legislador, seguindo diversos outros exemplos de mecanismos desde há muito positivados na área tributária, como a definição do grau de risco da atividade desempenhada pelo contribuinte para fins da contribuição para o SAT/RAT e a inclusão no regime de desoneração da folha de salários instituído pela Lei 12.546/2011.

Se, de um lado, a categorização nem sempre é perfeita quando aplicada a todos os casos concretos, fato é que, de outro lado, proporciona segurança jurídica por fornecer regra previamente conhecida a todos os contribuintes, sem dar margem ao arbítrio da autoridade fiscal, o que contrariaria o próprio conceito de tributo [2].

Portanto, não resta qualquer dúvida de que, estando as empresas enquadradas nessas Cnaes, tem elas o direito de, em relação às respectivas atividades, beneficiar-se da alíquota zero em relação aos quatro tributos em relevo pelo prazo de sessenta meses. Isso não quer dizer, obviamente, que a pessoa jurídica enquadrada em diversos códigos da Cnae, sendo alguns abrangidos e outros não pelo Perse, terão o benefício da alíquota zero em relação a todas as suas receitas e resultados. Apenas as receitas e resultados auferidos em relação aos códigos listados na Portaria ME 7.163/2021 serão alcançados pelo benefício.

Da Instrução Normativa RFB Nº 2.114
A clareza com que o legislador e o Ministro da Economia disciplinaram o enquadramento dos contribuintes a partir da sua Cnae, no entanto, acabou sendo obscurecida pelo texto ambíguo utilizado pelo Secretário da Receita Federal quando da edição da IN/RFB 2.114/2022. Vejamos o que dispõe o artigo 2º dessa IN:

“Artigo 2º O benefício fiscal a que se refere o artigo 1º consiste na aplicação da alíquota de 0% sobre as receitas e os resultados das atividades econômicas de que tratam os Anexos I e II da Portaria ME nº 7.163, de 21 de junho de 2021, desde que eles estejam relacionados à:
I – realização ou comercialização de congressos (… reprodução da Lei 14.148/2021 …)
Parágrafo único. O benefício fiscal não se aplica às receitas e aos resultados oriundos de atividades econômicas não relacionadas no caput ou que sejam classificadas como receitas financeiras ou receitas e resultados não operacionais.”

A infelicidade do aposto “desde que estejam relacionadas à” é clara, porque dá azo à interpretação arrevesada de que, além de o contribuinte dever estar enquadrado na Cnae, deve ainda comprovar um segundo requisito não previsto em lei: de que a receita auferida sob o manto daquela Cnae está necessariamente relacionada a algum “evento”.

Retomemos a linha de raciocínio: a lei 1) cria benefício ao “setor de eventos” e estabelece que 2) o “setor de eventos” engloba não apenas os eventos, mas também hotelaria, salas de exibição de cinemas e turismo; 3) toda a cadeia produtiva relacionada ao conceito de “setor de eventos” estaria abrangida pelo programa; e 4) a definição das atividades direta ou indiretamente ligadas ao “setor de eventos” seria realizada por meio de Cnaes listadas pelo Ministério da Economia. Finalmente, 5) o Ministro da Economia baixa portaria definindo os códigos da Cnae “que se consideram setor de eventos”.

Ora, a circunstância de uma atividade estar ou não relacionada ao setor de eventos já é pressuposta na lei e na portaria, quando a opção do legislador foi pelo enquadramento formal via instrumento de categorização (Cnae). Raciocínio em sentido contrário, além de contrariar duas normas de hierarquia superior (a Lei 14.148/2021 e a Portaria ME 7.163/2021), cria um vicioso e infinito raciocínio circular. Realmente, o conceito de “setor de eventos” é textualmente definido por meio de Cnaes. Se a interpretação da IN for a de que além de estar na Cnae a receita auferida sob o manto daquela Cnae deve estar relacionada ao “setor de eventos”, isso obriga o intérprete a buscar na lei a definição do conceito de “setor de eventos”, que o remete novamente às Cnaes, num círculo infinito.

A interpretação de que a IN estabeleceu um segundo requisito não previsto em lei ainda esbarra em entraves de ordem prática e no próprio princípio da segurança jurídica. Tomemos como exemplo a primeira Cnae relacionada na Portaria, a 1813-0/01 — Impressão de Material Para Uso Publicitário. Se o enquadramento fosse de natureza objetiva, isto é, de que a receita auferida sob o manto da Cnae listada tenha relação com um evento específico, não bastaria à fiscalização verificar cada uma das notas fiscais para identificar se o contratante do serviço seria do “setor de eventos”. Isso porque o material impresso poderia ter sido adquirido por um grupo econômico que possui atividades dentro e fora do Perse. Ainda, uma empresa de outro segmento poderia contratar tais serviços para a realização de eventos, como uma feira da qual essa entidade participaria. A fiscalização deveria analisar, portanto, o próprio material impresso fornecido ao contratante, que provavelmente não existirá mais no momento da fiscalização.

Imaginemos, ainda, uma empresa especializada em “Seleção e Agenciamento de Mão de Obra” (Cnae 7810-8/00). Independentemente de o contratante ser ou não ser integrante do “setor de eventos”, como garantir que as seleções não estão acontecendo exatamente para pessoas que trabalhem em convenções ou simpósios promovidos pela contratante? Por isso, como dissemos, cabe à fiscalização verificar apenas se o faturamento está efetivamente relacionado à Cnae listada no Anexo da Portaria 7.163/2021, já que isso é o pressuposto suficiente e necessário para enquadrar o contribuinte no conceito legal de “setor de eventos” e a respectiva receita no benefício da alíquota zero do Perse.

Não cabe à fiscalização, portanto, verificar se esta ou aquela receita adveio de algum evento específico, já que isso contraria o critério subjetivo e formal de enquadramento estabelecido pela Lei nº 14.148/2021 e confirmado pela Portaria ME 7.163/2021, além de submeter o contribuinte a verdadeiro arbítrio dos agentes fiscais, em evidente ofensa ao princípio da segurança jurídica e ao próprio conceito de tributo.

Qual seria o propósito desse artigo 2º, em interpretação harmônica com as demais normas atinentes ao tema. A resposta está claramente relacionada ao parágrafo único. Quando a IN exclui do Perse as receitas de atividades não relacionadas ao caput, quis a Receita dizer que apenas as receitas de atividades oriundas do denominado “setor de eventos” (definido por meio de Cnaes) estão abrangidas pelo Perse, de modo que se o contribuinte exercer outras atividades, enquadradas em outras Cnaes, estas estarão fora do benefício e deverão ser normalmente tributadas.

Esse entendimento é o único juridicamente possível, conciliando a redação ambígua e infeliz da IN com normas de hierarquia superior, afastando hermenêutica defeituosa de raciocínio circular, deixando de atribuir tarefa impossível ou arbitrária à fiscalização e respeitando a segurança jurídica, bem como o próprio conceito de tributo.

Conclusão
A Lei nº 14.148/2021, ao instituir o Perse, elasteceu o conceito de “setor de eventos” para abranger também hotelaria, salas de exibição de cinema e turismo, assim como abraçou toda a cadeia produtiva ligada direta ou indiretamente a esses setores. Para tanto, elegeu técnica de enquadramento subjetivo e formal, atribuindo ao Ministério da Economia a tarefa de relacionar os códigos da Cnae para definir quem seria agraciado pelo benefício fiscal. O Ministério da Economia, por sua vez, cumpriu a ordem legal ao editar a Portaria ME nº 7.163/2021, relacionando os códigos da Cnae que se enquadrariam no denominado “setor de eventos”.

A IN/RFB 2.114/2022 foi editada com redação ambígua, mas não criou novo requisito para enquadramento no Perse. A fiscalização deverá verificar apenas se a receita beneficiada com a alíquota zero está relacionada a Cnae listada nos anexos da Portaria ME 7.163/2021, não lhe cabendo, no entanto, verificar se cada receita auferida está relacionada a algum “evento” específico.

Caso contrário, para saber se cada fatura está ligada a um “evento”, a Fiscalização teria de buscar na lei o conceito de “setor de eventos”, que a remeteria novamente à Cnae, em um raciocínio circular infinito. Além disso, sob o aspecto prático, essa verificação é impossível em boa parte dos casos, submetendo o contribuinte ao arbítrio da fiscalização, em ofensa ao princípio da segurança jurídica e ao próprio conceito de tributo.

[1] O artigo 4º passou a vigorar com a seguinte redação:

“Artigo 4º. Ficam reduzidas a 0% pelo prazo de 60 meses, contado do início da produção de efeitos desta Lei, as alíquotas dos seguintes tributos incidentes sobre o resultado auferido pelas pessoas jurídicas de que trata o artigo 2º desta Lei:

I – Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Contribuição PIS/Pasep);

II – Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins);

III – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL); e

IV – Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas”.

[2] CTN, Artigo 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada.

Leonardo Mazzillo

Advogado em São Paulo, sócio do escritório WFaria Advocacia, pós-Graduado em Direito Tributário e pós-Graduando em Direito do Trabalho.

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