Propostas no Senado promovem mudanças preocupantes no Carf
Gustavo Brigagão
Tramitam no Senado Federal dois projetos de lei (os PLs 543/15 e 544/15), que, se aprovados, representarão enorme retrocesso no que diz respeito à proteção mínima com que o contribuinte deve contar nas relações que mantém com o Fisco, no âmbito do contencioso administrativo tributário federal.
Esses projetos foram apresentados pela senadora Vanessa Grazziotin, na CPI do Carf, com a alegada finalidade de eliminar o ambiente que propicia a prática dos crimes que estão sendo investigados pela operação zelotes.
Essa finalidade é absolutamente louvável e, obviamente, todos concordamos que tudo deva ser feito no sentido de atingi-la. De fato, como disse na minha coluna anterior, em que examinei outro projeto do Senado sobre propostas de alteração do Carf (PEC 112/15), é fundamental que os crimes apurados na operação zelotes sejam profundamente investigados e que os envolvidos sejam exemplarmente punidos.
Mas não se pode, sob o pretexto de eliminar essas irregularidades, simplesmente esvaziar o órgão a ponto de ele não mais servir às suas finalidades. Isso, como acentuei naquela oportunidade, equivaleria a matar por sufocamento o paciente cancerígeno, em vez de retirar-lhe o tumor maligno.
O que gera preocupação nos projetos em exame é o fato de que as regras neles contidas ou retiram do Carf as características que lhe propiciam julgar de forma imparcial os lançamentos que lhe são trazidos para exame, ou criam a possibilidade de o contribuinte vir a ser onerado no decorrer do processo administrativo a ponto de lhe ser cerceado o direito de defesa.
Vejamos o que propõe cada um desses projetos.
O primeiro deles (PL 543/15) “insere o art. 100-A no Código Tributário Nacional (Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966), para dispor sobre a observância dos atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas, em todas as instâncias, independentemente de vinculação do órgão àquele que os editou”.
Com a alteração proposta, seria acrescido ao CTN o seguinte dispositivo:
“Art. 100-A Os atos previstos no inciso I do art. 100 desta Lei são de observância obrigatória em qualquer instância administrativa, independentemente de vinculação do órgão àquele que editou a norma.”
Mas, o que se pretende com essa norma?
Segundo a “justificação” do projeto, ter-se-ia constatado na CPI do Carf que um dos grandes entraves ao bom funcionamento do órgão era o fato de que as normas expedidas pela Secretaria da Receita Federal do Brasil não eram observadas pelo Carf porque ele estaria vinculado ao Ministério da Fazenda e não à RFB. Isso, segundo a “justificação”, teria propiciado o engendramento de esquemas criminosos de venda de decisões no âmbito do Conselho, pois, “se o julgador não está vinculado aos normativos da Receita, fica-lhe muito mais fácil decidir como bem lhe aprouver, o que afrouxa os mecanismos de controle da legalidade e da transparência das suas decisões”. Daí a regra cuja finalidade seria, portanto, a de fazer com que toda a administração pública federal, inclusive o Carf, que não tem vinculação com a RFB, tivesse que observar as normas por esta última emitidas.
Como dito, excelente a motivação (inviabilizar a implementação de esquemas criminosos), mas equivocado, a meu ver, o instrumento escolhido para satisfazê-la.
Explico. O relevante papel que o Carf exerce é justamente o de julgar administrativamente, em segunda instância, como órgão técnico, paritário e, portanto, imparcial, os conflitos e disputas entre o contribuinte e a RFB sobre os lançamentos por esta última realizados.
Nessa contenda, é muito comum que o contribuinte traga como linha de argumentação justamente a disparidade entre o que determina a lei e os atos normativos expedidos pela outra parte no processo, a RFB.
Isso porque, nas relações que se estabelecem entre o Fisco e o contribuinte, devem imperar os ditames da lei, exclusivamente. É o que determina a Constituição Federal, quando impõe a observância do princípio da legalidade, no que diz respeito a todos os elementos daquela relação: definição do fato gerador, base de cálculo, alíquotas, contribuintes, responsáveis, lançamento etc.
Os atos normativos expedidos pelas autoridades administrativas que compõem a RFB, referidos no artigo 100 do CTN, têm, portanto, a sua abrangência absolutamente limitada ao que determina a lei. Eles simplesmente refletem mera interpretação daquelas autoridades sobre as normas que regem as suas relações com os contribuintes.
Assim, como lembra o meu sócio e amigo Carlos Alberto A. de Ulhôa Canto, o Carf só deixa de seguir a orientação constante de um ato normativo quando entende que ele contraria a lei ou versa sobre temas a ela reservados, pelo que a alteração proposta pelo projeto (inclusão do artigo 100-A no CTN) seria, no mínimo, desnecessária, pois, quando a interpretação dada pela RFB fosse consonante com os mandamentos legais, seria ela — a própria lei — que estaria sendo observada pelo Carf, e, quando dissonante, haveria incontestável ofensa ao princípio da legalidade.
Tem-se que ter em mente que a RFB é parte no processo! Não é razoável imaginar que a interpretação das normas legais que regem a sua relação com o contribuinte deva prevalecer no julgamento realizado por um tribunal administrativo cuja principal característica é (e tem que ser) a imparcialidade. A criação dessa regra geraria a inversão da hierarquia das normas, em que prevaleceria o disposto nos atos normativos expedidos pelas autoridades fiscais, em detrimento do que determina a lei, única efetivamente relevante para a definição de como devem ser regidas as relações tributárias.
O segundo projeto (PL 544/15) altera o Decreto 70.235, para excluir o efeito suspensivo dos recursos voluntários contra decisões de primeira instância, no âmbito do processo administrativo fiscal da União.
Com essa alteração, caso o projeto seja aprovado, o artigo 33 do referido decreto passará a vigorar com a seguinte redação: “Da decisão caberá recurso voluntário, total ou parcial, sem efeito suspensivo, dentro dos trinta dias seguintes à ciência da decisão”.
Na “justificação” desse projeto, argumenta-se que as decisões de primeira instância do processo administrativo fiscal (DRJs) são, em regra, bem fundamentadas e mantidas pelo Carf, em grau de recurso, segundo levantamento feito pela Associação Brasileira de Jurimetria; que o recurso a esse órgão, com efeito suspensivo, não só posterga o ajuizamento da ação de execução fiscal, como estimula a litigância administrativa de má-fé; e que a Lei do Processo Administrativo Federal (Lei 9.584, de 27 de janeiro de 1999) se encaminha para definir como regra geral que os recursos administrativos não tenham efeito suspensivo.
Primeiramente, como também salientou Carlos Alberto Ulhôa Canto, parece equivocada a premissa em que se baseia a justificação acima referida, de que a maioria das decisões das DRJs seria mantida pelo Carf, em grau de recurso. De fato, o levantamento feito pela referida associação indica que cerca de metade das decisões de primeira instância são reformadas pelo Carf[1].
Em segundo lugar, é importante notar que esse projeto propõe regra diametralmente oposta àquela contida na PEC 112/15 (examinada na minha coluna anterior), pela qual as decisões proferidas pelo Carf seriam passíveis de “pedidos de revisão formulados pela parte vencida no âmbito administrativo fiscal federal” aos tribunais regionais federais, com suspensão da exigibilidade do crédito tributário. Ou seja, admite-se, corretamente a meu ver, que mesmo o recurso ao Poder Judiciário seja interposto com a referida suspensão. No Projeto 544/15, propõe-se, de forma inédita, que essa suspensão não exista nem mesmo na interposição de recurso contra a decisão de primeira instância.
Quanto ao mérito dessa vedação, gera perplexidade a pretensão de que seja executável débito que não preencha os requisitos de liquidez e certeza, necessários ao início do respectivo processo de execução.
Na medida em que, com a mera decisão administrativa de primeira instância, não há definição do entendimento do próprio Ministério da Fazenda (credor da dívida) sobre a validade do crédito tributário que se pretende cobrar, não vejo como se possa pretender dar início ao respectivo processo de execução.
Note-se que há, nesse contexto, nítida distinção do que ocorre nas relações privadas, em que o credor pode iniciar o processo de execução provisória nas hipóteses em que o devedor interpõe recursos desprovidos de efeito suspensivo. De fato, nas relações tributárias, enquanto não houver decisão final administrativa, o próprio credor da obrigação ainda não terá formado a sua convicção sobre a validade do crédito tributário. Nas relações privadas, essa convicção do credor existe e é respaldada por uma decisão judicial que, apesar de não ser final, oferece uma diretriz de que o caso será solucionado em seu favor. Essa diretriz, ou probabilidade, não existe no que concerne às decisões das DRJs, como demonstrado.
Outro aspecto, ainda quanto ao mérito da regra, é o de que ela fere frontalmente o disposto no artigo 151 do CTN, abaixo transcrito:
“Art. 151. Suspendem a exigibilidade do crédito tributário:
…
III – as reclamações e os recursos, nos termos das leis reguladoras do processo tributário administrativo;”
Ora, esse dispositivo deixa claro, cristalino e incontestável que as reclamações e recursos previstos nas normas reguladoras do processo tributário administrativo suspendem a exigibilidade do crédito tributário. Pouco importa que a Lei do Processo Administrativo Federal se encaminhe para definir como regra geral que os recursos administrativos não tenham efeito suspensivo, como alegado “justificação” do projeto. As regras tributárias são especiais e, consequentemente, se sobrepõe às gerais.
E essa também é opinião da melhor doutrina.
De fato, Hugo de Brito Machado (in Curso de Direito Tributário. 35ª ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 201) afirma que:
“Nem podem as leis negar efeito suspensivo às reclamações e aos recursos. Seja diretamente, seja por via oblíqua, mudando o nome da reclamação ou do recurso.
(…)
Em outras palavras, o art. 151, III, do CTN assegura que o crédito tributário não será exigível enquanto restar pendência entre os sujeitos da obrigação tributária a ser solucionada na via administrativa. Por isto é que as reclamações e os recursos suspendem a exigibilidade, ou mais exatamente, impedem a exigibilidade do crédito tributário.
Com efeito, melhor seria dizer que as reclamações e os recursos impedem que o crédito se torne exigível, pois na verdade exigível ainda não é ele no momento da interposição, quer da reclamação, quer do recurso, pois só com a constituição definitiva o crédito se torna exigível”.
Misabel Abreu Machado Derzi (In Comentários ao Código Tributário Nacional: Lei nº 5.172, de 25.10.1966. Rio de Janeiro: Forense, 1997. p. 409/411) leciona no mesmo sentido:
“Enquanto a União e os Estados, em regra, contêm legislação própria, que, em linhas gerais, atende as exigências do CTN, a maioria dos Municípios brasileiros aplica o princípio solve et repete, incompatível com a ordem jurídica nacional, somente atribuindo efeito suspensivo à impugnação acompanhada de prévio depósito. Tal praxis é ofensiva à regra do CTN, que concede, independentemente do depósito, efeito suspensivo às impugnações e estabelece limitada faculdade ao ente estatal para regular prazo e condições em que ele se dá. As leis federais, estaduais ou municipais não podem negar efeito suspensivo às impugnações e recursos administrativos. Aliás, o CTN só faz consagrar norma e raiz constitucional, portanto inafastável mesmo por meio de lei complementar.
(…)
Por meio da impugnação, assegura-se ao contribuinte oportunidade para interferir na formação do título executivo. Ela enseja, no curso do procedimento administrativo, controlar a regularidade e a correção do ato administrativo atenuando-lhe os efeitos de unilateralidade e conferindo-lhe razoável grau de certeza e liquidez. Resulta desse fato o caráter de inafastabilidade do efeito suspensivo atribuído às impugnações e recursos administrativos pelo art. 151 do CTN”.
Note-se que, segundo a professora Misabel, essa regra de suspensão da exigibilidade, por estar fundamentada em raízes constitucionais, não pode ser alterada nem mesmo por lei complementar.
Ainda sobre o aspecto da constitucionalidade da regra proposta, como tive a oportunidade de demonstrar na minha última coluna, o contencioso administrativo, do qual o Carf é a principal personagem no âmbito federal, é o meio pelo qual o contribuinte pode discutir débitos contra ele lançados, que, por vezes, ultrapassam o seu próprio patrimônio, sem ter que depositar ou oferecer garantias sobre o respectivo valor. Ou seja, discute-se a validade do lançamento, no âmbito de um órgão técnico, paritário e imparcial, cuja exigibilidade é suspensa pelo simples fato de esse julgamento estar sendo realizado no âmbito administrativo.
Nas situações em que o contribuinte não dispõe de patrimônio suficiente para garantir o débito, ou mesmo naquelas em que esse ônus lhe é extremamente custoso, a esfera administrativa é a única opção para discutir-se tecnicamente a procedência do lançamento.
Não fora essa alternativa, o contribuinte teria o seu direito de defesa cerceado nas situações em que não dispusesse de meios para garantir o débito.
Por outro lado, retirar a suspensão da exigibilidade do crédito tributário implica na possibilidade de a Fazenda executar o contribuinte, exigindo-lhe garantias, ou penhorando-lhe bens e/ou recursos, o que geraria a mesma situação acima referida, com idêntica consequência: cerceamento do direito de defesa dos contribuintes.
O quadro é bastante semelhante àquele regulado pela Súmula Vinculante 21, segundo a qual “é inconstitucional a exigência de depósito ou arrolamento prévio de dinheiro ou bens para admissibilidade de recurso administrativo”.
Dos precedentes que deram origem a essa súmula (leading case, RE 389.383, 28.03.2007, Tribunal Pleno, do qual foi relator o ministro Marco Aurélio), destaco o seguinte trecho do voto do ministro Cezar Peluso, no sentido de que é inconstitucional qualquer limitação que, na prática, torne inócuo o exercício do direito subjetivo de interpor recursos administrativos:
“Uma vez franqueada ao contribuinte, pela legislação subalterna, via de acesso a instância recursal administrativa, não faz sentido impor-lhe exigências desproporcionais que terminem por inviabilizar o manejo do próprio remédio recursal. Institui-se direito subjetivo, e ao mesmo tempo frusta-se-lhe, na prática, o exercício! Nisso, a efetividade da norma constitucional que prevê o direito de petição é aviltada pela exigência do depósito recursal prévio”.
Seria esse exatamente o resultado que se obteria com a extinção da regra de suspensão da exigibilidade do crédito tributário, o que tornaria a sua constitucionalidade, por mais esse motivo, duvidosa.
Além dos entraves jurídicos acima referidos, a extinção acima referida propiciaria inegável e indesejável sobrecarga do Poder Judiciário, que teria parte da sua capacidade comprometida com o exame de disputas ainda não definitivamente julgadas pelo tribunal administrativo.
Em suma, são extremamente válidos e louváveis os propósitos que levaram a senadora Vanessa Grazziotin a apresentar os dois projetos acima comentados. De fato, é mandatório que regras sejam criadas e medidas sejam tomadas no sentido de impedir que esquemas criminosos sejam utilizados no âmbito do Carf, ou de qualquer outro tribunal administrativo. Só se deve ter o cuidado para que, de tais medidas, não decorra o esvaziamento do órgão nem a sua subjugação aos mandos da RFB, que, repito, é parte nos processos nele julgados.
[1] Conforme se verifica no texto constante do site http://jota.info/vies-de-conselheiros-do-carf-e-mito-aponta-pesquisa
*Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico do dia 23 de setembro de 2015.
Gustavo Brigagão
Sócio do escritório Ulhôa Canto, presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF), diretor do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), vice-presidente da Câmara Britânica do Rio de Janeiro e professor em cursos de pós-graduação na Fundação Getulio Vargas.