Pró labore versus lucro – Cota patronal – Contribuição previdenciária
Jeferson Roberto Nonato
Fato gerador antecipado
Não é de hoje a preocupação do legislador infraconstitucional de dotar as administrações tributárias, de todos os níveis de governo, de instrumentos jurídicos capazes de facilitar a arrecadação tributária e combater a evasão fiscal. Nota-se tal desiderato já na promulgação do Código Tributário Nacional de 1.966, que em seu artigo 58, já revogado, autorizava o legislador ordinário disciplinar, em lei formal, a técnica da substituição tributária progressiva, mediante a concepção de fato gerador presumido.
CTN: Art. 58. Revogado pelo Decreto-lei nº 406, de 31.12.1968:
Contribuinte do imposto é o comerciante, industrial ou produtor que promova a saída da mercadoria.
§ 1º (…)
§ 2º A lei pode atribuir a condição de responsável:
I – ao comerciante ou industrial, quanto ao imposto devido por produtor pela saída de mercadoria a eles destinada;
II – ao industrial ou comerciante atacadista, quanto ao imposto devido por comerciante varejista, mediante acréscimo: (Redação dada pelo Ato Complementar nº 34, de 30.1.1967)
a) da margem de lucro atribuída ao revendedor, no caso de mercadoria com preço máximo de venda no varejo marcado pelo fabricante ou fixado pela autoridade competente;
b) de percentagem de 30% (trinta por cento) calculada sobre o preço total cobrado pelo vendedor, neste incluído, se incidente na operação, o imposto a que se refere o art. 46, nos demais casos.
III – à cooperativa de produtores, quanto ao imposto relativo às mercadorias a ela entregues por seus associados.
Ressurge, então, a figura do fato gerador presumido nas disposições da Emenda Constitucional nº 3 de 17 de Março de 1.993, verbis:
EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 3, DE 17 DE MARÇO DE 1993
As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do § 3º do art. 60 da Constituição Federal, promulgam a seguinte emenda ao texto constitucional:
Art. 1º Os dispositivos da Constituição Federal abaixo enumerados passam a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 150. (…)
§ 7º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.
Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
XII – cabe à lei complementar:
a) (…)
b) dispor sobre substituição tributária;
Têm-se na espécie que a expressão fato gerador presumido vem posta na Lei Maior como sendo aquele fato gerador de obrigação tributária que deverá ocorrer posteriormente, ou seja, ocorrer em tempo futuro com elevado grau de certeza de sua ocorrência. Talvez a melhor designação não seja fato gerador presumido, mas sim fato gerador antecipado por lei.
O fato gerador antecipado não é marcado pelo caráter de provisoriedade; pelo contrário; ele é definitivo. Sua ocorrência material enseja o nascimento da obrigação de pagar o tributo, devidamente calculado sobre sua dimensão econômica estimada. Em outras palavras: o fato gerador antecipado não comporta ajuste em sua base de cálculo em razão da apuração de menor valor de base de cálculo quando da ocorrência real do fato gerador. Neste sentido ficou assente no Supremo Tribunal Federal:
"STF ADI 1851 AL: O fato gerador presumido, por isso mesmo, não é provisório, mas definitivo, não dando ensejo a restituição ou complementação do imposto pago, senão, no primeiro caso, na hipótese de sua não realização final."
Importa anotar no tema que nosso ordenamento constitucional comporta a figura do Fato Gerador Antecipado, desde que o legislador ordinário observe à correlação lógica entre a construção legal e a vida real, assegurando ainda a imediata devolução do valor pago quando a situação jurídica antecipada não acontecer.
No entanto, esta formulação se insere no universo de regras especiais, postas com claro objetivo de maximizar a eficiência da Administração em seu mister de prover as fazendas públicas de recursos financeiros, ao menor custo possível. Por isso mesmo não se pode extrair do permissivo constitucional que o legislador ordinário possa introduzir, no ordenamento tributário, norma que obrigue alguém a pagar primeiro para depois pedir restituição de qualquer tributo.
Colhe-se do Direito Internacional a expressão "solve et repete" que entre nós significa pagar antes para pedir depois. Este princípio já foi afastado de nosso ordenamento constitucional desde a Carta Magna de 1.967. Aliomar Baleeiro quando então Ministro do Supremo Tribunal Federal, sob a presidência de Evandro Lins e Silva, teve a oportunidade se manifestar sobre tal princípio quando exarou seu Voto Vencedor no Recurso Extraordinário nº 63.042-SP, que tinha como Recorrente a União Federal. Discutia-se, naquele ano de 1.968, a compatibilidade do conteúdo normativo posto no Decreto Lei nº 5 de 1.937 que tinha por desiderato impedir que os contribuintes devedores da Fazenda Nacional pudessem transacionar com as Repartições Públicas, como, por exemplo, comprar estampilhas para selar seus produtos de venda. O Ilustre jurista, atribuindo ao tema status de matéria constitucional, encerrou seu Voto afirmando:
"Conheço do Recurso pela letra "d", mas nego-lhe provimento, porque entendo que a aludida legislação do período ditatorial introduziu, no Brasil, o princípio solve et repete. Parece-me isso incompatível com o art. 141, § 4º, da Constituição de 1.946, reproduzido na atual."
Reserva legal
Somente a Lei, em sentido formal, pode estabelecer o fato gerador antecipado. Descabe assim toda e qualquer edição de ato normativo, ou regulamentar, que de forma direta ou indireta pretenda extrair, do sistema tributário, obrigação de pagar imposto ou contribuição sobre ocorrência material que possa vir a se subsumir à hipótese de incidência em data futura. Ademais, afasta-se, no ponto, a cobrança de tributo, ou contribuição, por analogia.
Pró labore versus lucro
Consta do Regulamento da Previdência Social (Decreto nº 3.048 de 1.999):
Art. 201. A contribuição a cargo da empresa, destinada à seguridade social, é de:
II – vinte por cento sobre o total das remunerações ou retribuições pagas ou creditadas no decorrer do mês ao segurado contribuinte individual; (Redação dada pelo Decreto nº 3.265, de 1999)
§ 1º São consideradas remuneração as importâncias auferidas em uma ou mais empresas, assim entendida a totalidade dos rendimentos pagos, devidos ou creditados a qualquer título, durante o mês, destinados a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, inclusive os ganhos habituais sob a forma de utilidades, ressalvado o disposto no § 9º do art. 214 e excetuado o lucro distribuído ao segurado empresário, observados os termos do inciso II do § 5º.
§ 5º No caso de sociedade civil de prestação de serviços profissionais relativos ao exercício de profissões legalmente regulamentadas, a contribuição da empresa referente aos segurados a que se referem as alíneas "g" a "i" do inciso V do art. 9º, observado o disposto no art. 225 e legislação específica, será de vinte por cento sobre: (Redação dada pelo Decreto nº 3.265, de 1999)
I – a remuneração paga ou creditada aos sócios em decorrência de seu trabalho, de acordo com a escrituração contábil da empresa; ou
II – os valores totais pagos ou creditados aos sócios, ainda que a título de antecipação de lucro da pessoa jurídica, quando não houver discriminação entre a remuneração decorrente do trabalho e a proveniente do capital social ou tratar-se de adiantamento de resultado ainda não apurado por meio de demonstração de resultado do exercício. (Redação dada pelo Decreto nº 4.729, de 2003)
Destacamos, agora, o que de perto nos interessa que é a incidência referida no inciso II do § 5º do art. 201 do Regulamento da Previdência.
Nota-se de plano que tal regra surge no mundo jurídico pela via de um Decreto e não por Lei Ordinária. Sobressalta, assim, a inconstitucionalidade formal da regra que já foi, inclusive, questionada pela OAB – Ordem dos Advogados do Brasil- Secção de São Paulo- em ação patrocinada pela ilustre advogada Maria Rita Ferragut no processo nº 0025123-09.2003.4.03.6100 (TRF 3). A referida ação não ensejou a apreciação do mérito eis que o processo foi encerrado por ilegitimidade ativa da parte.
O que expresso no inciso II está vinculado com exclusividade às sociedades empresariais de profissão regulamentada. Ora, já houve tempo em que tais sociedades, para efeitos tributários, tiveram seus rendimentos tributados como se de pessoas físicas fossem; tudo isto está mudado. Hoje as sociedades de profissão regulamentadas são tributadas como todas as pessoas jurídicas. Portanto tal distingue não faz mais sentido.
Solução de consulta nº 133, de 3 de julho de 2012 SRRF 9ª Região Fiscal
Consta da ementa desta Solução de Consulta:
ASSUNTO: CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS PREVIDENCIÁRIAS
SOCIEDADE SIMPLES. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PROFISSIONAIS RELATIVOS AO EXERCÍCIO DE PROFISSÕES LEGALMENTE REGULAMENTADAS- CONTRIBUINTE INDIVIDUAL (SÓCIO). PRÓ-LABORE.
Atualmente não há dispositivo legal que determine a obrigatoriedade de remuneração de sócios de sociedade simples mediante
pró-labore.
De acordo com o art. 201, § 5º, II, 1a parte, do Decreto n. 3.048/99, se estiver estipulado previamente, em contrato social, que a sociedade não pagará pró-labore (isto é, os sócios serão remunerados só em função da lucratividade do capital – distribuição de lucros), há discriminação entre essas formas de pagamento, o que leva ao não recolhimento da contribuição previdenciária por inocorrência do fato imponível tributário (fato gerador).
O prévio acerto intersócios de que a sociedade não os remunerará pelo trabalho (pró-labore), mas tão somente em função do resultado (distribuição de lucros), serve de discriminação para afastar a incidência tributária relativa a esta hipótese de incidência.
Pelo teor do art. 201, § 5º, II, parte final, do Decreto n.3.048/99, o adiantamento de resultado, ainda não apurado por meio
de demonstração de resultado do exercício, configura hipótese de incidência tributária. Ou seja, se houver pagamento ou creditamento a sócio(s) no curso do exercício, ainda que previamente esteja estabelecido (em contrato social) que a sociedade não pagará pró labore, há incidência de contribuição previdenciária. Se ainda não há como se saber que os valores pagos referem-se à remuneração do capital investido (lucro), é possível inferir que seja pró-labore, pois sem haver a demonstração do resultado do exercício, se este for negativo (= prejuízo), o pagamento (ou crédito) a sócio(s) terá natureza de pró-labore. Se, ao fim do exercício, houver resultado positivo (lucro) e houver previa estipulação de não pagamento de pró labore é possível a repetição do indébito.
Facilmente o leitor poderá perceber que tal ato interpretativo da Receita Federal do Brasil louva-se, exclusivamente, em dispositivo de Regulamento, ou seja, não há uma citação legal sequer.
O debate envolvendo este dispositivo do Decreto nº 4.729/2.003 já foi abordado por outros estudiosos (Kiyoshi Harada in Jus Navigandi 12/2003, Carina Abud in Fiscosoft 2.004); portanto o tema não é novo.
A pretensão da autoridade reguladora teria sido de fazer incidir a exação – Contribuição previdenciária – Cota patronal – sobre os valores entregues aos sócios, antes do encerramento do exercício social, a título de lucros distribuídos frente à inexistência de lucros acumulados. Em outras palavras; quando os atos societários não permitirem a distinção entre o que seja remuneração do capital ou do trabalho, e na situação de inexistência de lucros juridicamente consagrados, na data do pagamento, considerar-se-ia o valor entregue como remuneração pelo trabalho.
Ora o dispositivo regulamentar encerra em si uma verdadeira hipótese de incidência material não prevista em Lei.
A novidade agora está nesta Solução de Consulta quando qualifica o que disposto no inciso II do § 5º do art. 201 do Regulamento da Previdência como sendo a matriz legal de um fato gerador antecipado. Assim se deduz porque a interpretação posta assenta que o contribuinte poderá repetir o indébito caso se confirme no final do exercício a apuração de lucro contábil em valor igual ou superior aquele foi entregue a titulo de adiantamento de lucros, mas que teria sido tributado como se remuneração do trabalho fosse.
Conclusão
Queremos crer que tal interpretação não pode prosperar seja porque não se cuida, na espécie, de fato gerador antecipado por Lei, seja porque a incidência material instituída por ato regulamentar afronta o princípio constitucional da reserva legal. Além do mais a própria Receita Federal do Brasil quando da edição do Parecer Normativo CST nª 48 de 1.972 já delineara o que se deve entender como remuneração de sócios. Neste Parecer ficou assentado:
4.3 A remuneração deverá corresponder a uma prestação de serviços efetiva, ser mensal e fixa, vale dizer, predeterminada, e debitada em despesas gerais ou contas subsidiárias (art. 243, letra a, do RIR).
Finalizando lembramos ainda que para atender o que disposto na Solução de Consulta todas as sociedades de profissão regulamentada estariam obrigadas a manter escrituração completa ainda que sujeitas ao regime de tributação pelo Lucro Presumido.
Jeferson Roberto Nonato
Graduado pela EASP/FGV. Auditor Fiscal da Receita Federal do Brasil aposentado com especialidade no sistema financeiro. Instrutor da ESAF. Consultor tributário com especialidade no IRPJ.