Princípio da legalidade da tributação como limite constitucional das ações do Beps
Roberto Duque Estrada
Em 26 de junho de 1963, cinco meses antes do atentado de Dallas, o então presidente norte-americano, John F. Kennedy, discursava na Berlim ocidental manifestando sua solidariedade aos cidadãos daquela cidade que foram isolados, presos e cercados por um muro erguido em 1961 pelos soviéticos — o famoso muro de Berlim — para evitar que alemães orientais fugissem para o ocidente. Traçando um paralelo com a célebre civis Romanus sum, Kennedy louvava a liberdade: todo homem livre é um cidadão de Berlim e, como homem livre, me orgulho com as palavras Ich bin ein Berliner.
Berlim ainda é uma cidade marcada pela divisão leste/oeste. O muro deixou sua cicatriz, a maior parte traçada no solo em paralelepípedos vermelhos. Outras partes restam de pé, como galerias de arte a céu aberto; outras se erguem em áreas em que as marcas de um passado sombrio são indeléveis, como aquela próxima ao museu Topografia do Terror, que expõe as entranhas da SS e da Gestapo, forças da repressão nazifascista nos seus 12 anos de poder (1933-1945). Aliás, a Alemanha unificada não esconde esse período negro cuja história é sempre exposta em museus gratuitos. Ninguém pode se escusar de conhecer o passado argumentando não ter condições econômicas para tanto.
Andando por Berlim é impossível não sentir a pulsação da história dos últimos cem anos; é impossível não pensar na Segunda Guerra Mundial; é impossível não se perguntar de que lado do muro estaria agora e é igualmente impossível não se apaixonar pela cidade. Os espaços vazios que a separação deixou vão sendo preenchidos com uma arquitetura moderna, surpreendente e elegante; os prédios históricos malconservados pelo regime comunista hoje abrigam museus extraordinários; a sala de espetáculos da Filarmônica por si só é um espetáculo e lá assistir um concerto regido por Sir Simon Rattle foi uma inesquecível experiência sensorial; tudo isso e muito, mas muito, muito mais fazem de Berlim hoje uma das cidades mais interessantes do mundo.
Chegamos a Berlim vindo de Viena. Passamos por Salzburg e Munique, seguimos a rota dos imigrantes sírios. E no caminho não podíamos deixar de pensar no discurso de José Manuel Durão Barroso, ex-presidente da Comissão Europeia, proferido na abertura do Congresso anual da International Bar Association (IBA), realizado em Viena no começo do mês de outubro. Durão Barroso falou da responsabilidade ética, do dever moral de acolhimento dos refugiados sírios na Europa, mas também não deixou de ressaltar as causas do problema e criticar a incapacidade e desinteresse de cessar o conflito, o silêncio de muitos dos países islâmicos da região e a postura da Rússia, mais importante aliado do regime de Bashar al-Assad.
Nesse mesmo Congresso da IBA em Viena, foi organizada, pelo comitê tributário, uma mesa de debates sobre os recentes desenvolvimentos do Plano de Ação Beps, acrônimo para Base Erosion and Profit Shifting, terminologia em inglês que significa a erosão da base tributária e o deslocamento de lucros, que acarretam uma redução da arrecadação de imposto de renda das pessoas jurídicas pelos países que se consideram legítimos titulares dessas receitas, por entenderem neles serem exercidas as atividades econômicas.
Nessa mesa, representando a OCDE, participou nada mais nada menos do que o professor Raffaele Russo[1], atualmente o head do projeto Beps. O momento da sua intervenção foi extremamente oportuno porque pouquíssimos dias antes a OCDE divulgara os relatórios finais das 15 ações em que o projeto Beps se desdobra. Só mesmo com uma liderança com a energia e vitalidade de Raffaele Russo a equipe da OCDE poderia concluir um trabalho tão ambicioso em tão curto espaço de tempo, trabalho esse que pretende ser a mais substancial renovação das práticas de tributação internacional nos últimos cem anos[2].
O caráter revolucionário das medidas não esconde, porém, seu maior propósito: saciar a grande sede de arrecadação dos Fiscos dos países-membros da OCDE, secundados pelos dos países em desenvolvimento, após a última grande crise econômica mundial. Trata-se de medidas que, em última análise, visam limitar direitos previstos ou em leis ou em tratados internacionais com o objetivo de combater planejamentos tributários de empresas multinacionais que importem em redução da carga tributária e que, precisamente por esse conteúdo limitativo ou restritivo de direitos, devem ser analisadas com extrema cautela na sua transposição para os direitos internos.
Em primeiro lugar, as recomendações da OCDE não são leis. Sugestões de um relatório produzido por representantes das administrações fiscais, encomendado pelos ministros da Fazenda dos países do G-20, não podem suplantar nem modificar ou substituir medidas legais, emanadas pelos parlamentos dos países, as únicas fontes de Direito em matéria tributária, subordinada ao principio da legalidade da tributação (nullum tributum sine praevia lege).
Em segundo lugar, as recomendações não são passíveis de aplicação indiscriminada em todas as jurisdições, uma vez que as constituições dos diversos países em presença contêm regras que podem permitir ou recusar a adoção de certas medidas sugeridas. As administrações fiscais não podem adotar livremente as recomendações do plano Beps, seja por seus órgãos de lançamento, seja por seus órgãos de julgamento, sem antes testarem sua adequação à ordem constitucional vigente.
Em terceiro lugar, certas medidas são inter-relacionadas e não podem ser adotadas isoladamente, apenas por se revelarem convenientes para as administrações fiscais, afastando-se a aplicação de outras que equilibrariam os pratos das balanças, como sucede com as regras de atribuição de lucros a estabelecimentos permanentes e as regras de preços de transferência. Essa implementação, segundo um modelo cherry pick, já estaria sucedendo na China e tem sido amplamente discutida[3].
Em quarto lugar, há que ter cuidado com as distorções e excessos na forma de implementação das recomendações. Um exemplo de atropelo de direitos e garantias individuais foi a Medida Provisória 685/2015, que institui a obrigação de informação à Receita Federal operações e atos ou negócios jurídicos que acarretem suspensão ou redução de tributos e que tinha, nos dizeres da sua exposição de motivos, suporte no Plano de Ação Beps, quando, na verdade, não passa de um inconstitucional instrumento para permitir autuações fiscais por analogia, agravadas com acusações de simulação e fraude[4].
Aliás, a pretensão de tributação por analogia, em detrimento da estrita legalidade e da tipicidade cerrada, historicamente sempre se apoiou em nobres princípios de Justiça fiscal, de igualdade e de capacidade contributiva, mas também historicamente tem suas raízes nas ditaduras que floresceram na Europa a partir do fim da primeira grande guerra.
É o que ensina Alberto Xavier[5]:
“A teoria da interpretação econômica da lei e dos fatos, bem como a legitimidade do recurso à analogia em caso do chamado ‘abuso de formas’, nasceram na Alemanha com a lei tributária (Abgabenordnung) de 1919, inspirada pelo jurista e ideólogo Enno Becker.
Essa lei foi proclamada no início da República de Weimar (aliás, sob fortíssima, lúcida, mas derrotada oposição parlamentar), num ambiente político pouco propenso à serenidade de um Estado de Direito Democrático, como hoje o entendemos, e em que nas ruínas do Império Alemão causadas pela derrota militar de 1918 coexistiam correntes autoritárias de extrema direita e de extrema esquerda, desde militares nacionalistas a ‘spartakistas’ sovietófilos, todos frutos da humilhação do Tratado de Versailles, da inflação e do desemprego[6].
Não admiram, pois, que o regime nacional-socialista, que abominava a liberdade individual e glorificava os poderes de um Estado baseado no sangue e na raça tenha acolhido com júbilo as aludidas restrições ao princípio da legalidade na Steuranpassungsgesetz (lei de adaptação fiscal) de 1934, tido como empecilho liberal e pequeno burguês à expansão do Führerprinzip no terreno dos tributos”.
O mesmo autor também ensina que medidas semelhantes foram adotadas pelos governos de Mussolini, na Itália fascista, do ditador caudilho Franco, na Espanha, e do marechal Pétain, na França colaboracionista[7], confirmando que agressões ao princípio da legalidade são práticas recorrentes em regimes antidemocráticos.
Alberto Xavier encerra sua crítica às agressões ao princípio da legalidade com uma frase lapidar: “Só a avidez arrecadatória pode justificar esta cômoda, mas inaceitável amnésia”[8].
Apenas conhecendo o passado — como impecavelmente o faz a Alemanha unificada — se pode ter uma compreensão crítica do presente e se partir, com sensatez e equilíbrio, para a construção do que se quer para o futuro.
Por isso, é fundamental que se tenha uma compreensão crítica e isenta do alcance e da relevância das medidas propostas no Plano de Ação Beps. Não se pode importar e adotar açodadamente todas as medidas do relatório como se fossem a revelação de uma mensagem divina. É certo que o hercúleo trabalho desenvolvido pela OCDE é digno de aplauso, mas também é certo que as pessoas dele podem e devem discordar, e que os parlamentos dos respectivos países são os únicos foros com legitimidade constitucional para adotar de forma coordenada e coerente a generalidade das ações sugeridas.
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É essa compreensão crítica, aberta, livre de dogmatismos e, por isso, construtiva, que temos presenciado nos seminários realizados semanalmente pela Uerj e pela Vale, em parceria, na cidade do Rio de Janeiro, sob a liderança do professor Marcus Lívio Gomes, e coordenação de cátedra dos professores Ricardo Lodi Ribeiro (Uerj) e Octávio Bulcão, Ana Carolina Coelho e Renata Ribeiro (Vale). É uma imensa satisfação fazer parte desse time e poder participar de iniciativa tão significativa. Parabéns a todos os envolvidos.
Também é digno de nota o evento que será realizado pela IBA no dia 13 de novembro, na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), em comemoração aos 800 anos da Carta Magna e ao princípio da legalidade (rule of law)[9], evento que contará com a presença de diversos palestrantes, dos quais podemos destacar o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, o presidente da Suprema Corte de Justiça do Uruguai, Jorge Chediak, o presidente do Conselho Federal da OAB, Marcus Vinicius Furtado Coelho, o presidente da IBA, David Rivkin, o diretor da Faculdade de Direito da USP, José Rogério Cruz e Tucci, e o secretário-geral da IBA, Horacio Bernardes Neto. Igualmente parabéns aos envolvidos e o desejo de muito sucesso na importantíssima iniciativa que visa manter viva na memória uma das maiores conquistas da cidadania.
[1] Que coincidentemente está no Brasil nesta semana participando de eventos na Receita Federal, na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado e na Fiesp.
[2] Cfr. OECD/G20 Base Erosion and Profit Shifting / Explanatory Statement, p. 5 (item 8), www.oecd.org.
[3] China Will Cherry Pick BEPS Actions for Implementation, in Bloomberg BNA, 15/10/ 2015.
[4] http://www.conjur.com.br/2015-set-02/consultor-tributario-mp-6852015-tentativa-inconstitucional-tributacao-analogia; e http://www.conjur.com.br/2015-ago-05/consultor-tributario-mp-685-mostra-crise-confianca-administracao-tributaria.
[5] Cfr. Tipicidade da Tributação, Simulação e Norma Antielisiva, p. 46, São Paulo, 2002, Ed. Dialética.
[6] “A Abgabenordnung de 1919 (ano em que — é bom não esquecê-lo — foi fundado por Hitler o Deutscher Arbeit Partei, ao qual sucederia, logo um ano após, o Nationalsozialistiche Deutsche Arbeit-ParteiI) estabelecia, no que concerne à interpretação da lei, regra segundo a qual esta deveria considerar a “concepção popular, a finalidade e o significado econômico da lei tributária e a evolução das circunstâncias”. Por outro lado, estabelecia que o mesmo princípio se aplica à apreciação do Tatbestand, entendido como o fato gerador em concreto (Sachverhalt). A lei de adaptação de 1934 (Steuranpassungsgesetz) — já promulgada por Hitler — reproduziu os referidos preceitos e determinou a inclusão de um novo, segundo o qual as leis tributárias deveriam ser interpretadas de harmonia com a concepção do mundo nacional socialista (Führerprinzip). Cfr. sobre a história destes diplomas PASQUALE PISTONE, Abuso del diritto ed elusione fiscale, Milão, 1995, 67 ss.”
[7] Cfr. op. cit., p. 46-47.
[8] Cfr. op. cit., p. 49.
[9] http://www.ibanet.org/Article/Detail.aspx?ArticleUid=ca1565ad-3668-4217-a0ff-e45a812b340a.
Revista Consultor Jurídico
Roberto Duque Estrada
Advogado no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Sócio do escritório Xavier, Duque Estrada, Emery, Denardi Advogados.