Prescrição intercorrente e infrações aduaneiras: o tempo é o senhor da razão
Fernando Pieri, Pedro Mineiro
O julgamento do Tema Repetitivo 1.293 do STJ, no dia 12/3/2025, reacendeu (e espera-se que tenha encerrado) a discussão relativa à aplicabilidade da prescrição intercorrente prevista no artigo 1º, §1º, da Lei 9.873/1999 às infrações de natureza aduaneira.
Certamente, o instituto da prescrição intercorrente não traz um conceito unívoco. É possível buscar um núcleo comum de sentido, a partir da sua causa jurídica, qual seja, a falta de impulso do processo e a inércia da parte promovente. Todavia, a sua consequência é bastante distinta, a depender do caso: enquanto nas execuções fiscais, por exemplo, a prescrição serve para descrever a perda da pretensão executória por parte da Fazenda Pública e a extinção do crédito tributário (vide artigo 40, §4º, da Lei nº 6.830/1980), nos processos administrativos, possui como efeitos a perda da pretensão punitiva, antes da constituição definitiva do crédito tributário. Por essa razão, o ministro Mauro Campbell Marques afirma que se trata de uma “decadência intercorrente” [1].
A importância desse instituto reside no fato de assegurar que determinadas situações que geram incertezas, sob o ponto de vista jurídico, não se prolonguem indefinidamente no tempo, como é o caso do crédito tributário já constituído (de forma definitiva ou não) e objeto de litígio (na via administrativa ou judicial). Segundo Humberto Ávila, “a própria fixação de prazos opera em favor da estabilidade das situações jurídicas e da eliminação das incertezas. O que se prestigia, em outras palavras, é o princípio da segurança jurídica” [2].
Dessa forma, também na esfera administrativa, o legislador houve por bem criar a prescrição intercorrente para processos, ou procedimentos, paralisados por mais de três anos, pendente de julgamento, ou despacho, conforme o disposto no artigo 1º, §1º, da Lei nº 9.893/1999 [3]. Todavia, no art. 5º da mesma lei [4], excepcionou da aplicação do instituto os processos e procedimentos de natureza tributária, como é o caso do processo administrativo fiscal (para exigência de créditos tributários da União) previsto pelo Decreto nº 70.235/1972, o que levou o Carf à edição da Súmula 11 [5].
No caso das infrações aduaneiras, a exemplo da multa substitutiva da pena de perdimento, o Carf vem aplicando a Súmula 11 [6], sem fazer distinção (distinguishing) em relação ao crédito tributário. É importante destacar que os precedentes que formaram a Súmula 11 em nada tinham relação com as infrações aduaneiras, de modo que a sua aplicabilidade era controversa [7] antes mesmo da decisão do Superior Tribunal de Justiça.
Jurisprudência do STJ – Tema 1.293
Certo é que a jurisprudência das duas turmas que compõem a 1º Seção do STJ já caminhava no sentido de reconhecer a aplicação da prescrição intercorrente às infrações aduaneiras [8]. No REsp 1.999.532/RJ, relatora ministra Regina Helena Costa, a infração impugnada referia-se ao registro intempestivo, no Siscomex, de dados relativos ao embarque de mercadorias transportadas para o exterior, culminando na imposição de multas por violação ao artigo 107, IV, “e”, do Decreto-Lei nº 37/1966. No REsp 1.942.072/RS, relator ministro Mauro Campbell Marques, a infração imputada decorria de multa isolada imposta em razão de importação irregular de cigarros [9]. Todavia, a afetação e o julgamento do Tema Repetitivo 1.293 foram de extrema relevância para a resolução definitiva do tema, sobretudo na esfera administrativa, viabilizando o afastamento da Súmula 11 do Carf, quando a discussão versar sobre multas aduaneiras. Na oportunidade, o STJ fixou as seguintes teses:
1. Incide a prescrição intercorrente prevista no art. 1º, §1º, da Lei 9.873/1999 quando paralisado o processo administrativo de apuração de infrações aduaneiras, de natureza não tributária, por mais de 3 anos.
2. A natureza jurídica do crédito correspondente à sanção pela infração à legislação aduaneira é de direito administrativo (não tributário) se a norma infringida visa primordialmente ao controle do trânsito internacional de mercadorias ou à regularidade do serviço aduaneiro, ainda que, reflexamente, possa colaborar para a fiscalização do recolhimento dos tributos incidentes sobre a operação.
3. Não incidirá o artigo 1º, §1º, da Lei 9.873/99 apenas se a obrigação descumprida, conquanto inserida em ambiente aduaneiro, destinava-se direta e imediatamente à arrecadação ou à fiscalização dos tributos incidentes sobre o negócio jurídico realizado.
Naturalmente, é de se festejar tal decisão, pelo simples fato de ter reconhecido que as infrações aduaneiras (bem como o processo administrativo relativo à sua cobrança) não possuem natureza tributária. Todavia, é uma pena que o Superior Tribunal de Justiça tenha reconhecido que a natureza de tais infrações é de Direito Administrativo e não de Direito Aduaneiro, quando a norma infringida visa primordialmente ao controle do trânsito internacional de mercadorias ou à regularidade do serviço aduaneiro (controle aduaneiro). Não obstante em vários votos dos precedentes que levaram à fixação das teses, os Ministros tenham reconhecido que a discussão em tela se referia à distinção entre uma multa decorrente da infração de uma norma cuja natureza jurídica era aduaneira e não tributária [10].
Uma possível razão para esse entendimento do STJ (diga-se, equivocado, com a devida vênia) talvez seja a dificuldade encontrada por parcela da doutrina em identificar os princípios próprios deste ramo jurídico, que lhe conferem a tão almejada (embora relativa) autonomia científica. A nosso ver, o Direito Aduaneiro é um subsistema jurídico que possui objeto de estudo, conceitos, institutos e princípios próprios, sendo esses últimos, o princípio do interesse nacional e o princípio da integração global [11].
O princípio do interesse nacional encontra-se positivado no artigo 237 da Constituição de 1988, segundo o qual a fiscalização e o controle sobre o comércio exterior são essenciais aos interesses (fazendários) nacionais [12]. Por sua vez, a integração global (que é um princípio contraposto e limitativo do interesse nacional) é diretamente extraída dos tratados multilaterais firmados pelo Brasil, com o intuito de promover a liberalização do comércio e alcançar o desenvolvimento e a paz mundial [13].
Esses princípios orientam o exercício das funções da Aduana, quais sejam: o controle e a tributação aduaneira. No âmbito do controle aduaneiro, residem as normas jurídicas específicas do Direito Aduaneiro, que estabelecem deveres aos intervenientes do comércio exterior, cujo descumprimento dá origem às infrações aduaneiras, atraindo as sanções aduaneiras. É o caso, por exemplo, da multa substitutiva ao perdimento, no caso de interposição fraudulenta (artigo 23, §3º, do DL nº 1.455/1976), que possui natureza exclusivamente aduaneira (não tributária) e está sujeita à prescrição intercorrente, nos termos do artigo 1º, §1º, da Lei nº 9.873/1999.
Natureza jurídica da norma sancionatória
Para se reconhecer a natureza jurídica da norma sancionatória e, portanto, aplicar, ou não, a prescrição intercorrente, é preciso analisar a norma jurídica primária, aquela cuja observância foi desejada pelo legislador. A norma sancionatória, como norma jurídica secundária, já traz em sua hipótese o descumprimento da norma primária e, no seu consequente, a sanção. Não é na norma punitiva que o intérprete deverá centrar suas atenções para definir se está, ou não, diante de uma infração aduaneira, ou tributária, e sim na obrigação que ela visa que seja observada [14].
O Tema Repetitivo 1.293 destaca, novamente, a importância concreta do estudo especializado do Direito Aduaneiro, permitindo formação de profissionais que possam contribuir, cada vez mais, com essa consolidação que vem acontecendo, passo a passo, em destino inexorável de reconhecimento de sua autonomia, ainda que relativa [15].
É importante destacar que essa conclusão, que também alcançou o STJ na primeira tese firmada no Tema Repetitivo 1.293, independe do rito previsto para a sua cobrança, seja o do Decreto nº 70.235/1972 (Processo Administrativo Fiscal, com julgamento pela DRJ e/ou pelo Carf, também aplicável à cobrança dos créditos tributários da União) ou da Portaria Normativa MF nº 1.005/2023 – com julgamento pelo Centro de Julgamento de Penalidades Aduaneiras (Cejul).
Todavia, no tocante à tributação sobre o comércio exterior, as normas jurídicas possuem uma dúplice natureza (inclusive aquelas sancionatórias), situando-se no campo de interseção entre o Direito Aduaneiro e o Direito Tributário. Por essa razão, os processos administrativos que discutem apenas a falta de recolhimento de tributos aduaneiros, por exemplo, não estão sujeitos à prescrição intercorrente, aplicando-se a exceção do artigo 5º da Lei nº 9.873/1999, como destacado na terceira tese firmada pelo STJ no Tema Repetitivo 1.293.
Conclusões e expectativas
É uma importante vitória de todos porque as relações jurídicas devem sofrer o efeito do tempo. Kronos, deus da mitologia grega, devorava seus filhos por medo de que eles o depusessem do poder. Aqui também, o tempo devora a esperança e a certeza de quem tem acusações e cobranças pendentes contra si ad aeternum. Em muito boa hora, o Judiciário, exercendo seu papel constitucional, apazigua questão tormentosa e, nesse caso, de forma muito justa e consentânea com os primados do Direito.
Oxalá a pacificação da controvérsia preconize diretrizes que promovam: (1) maior estudo e especialização na matéria aduaneira, reconhecendo-lhe o que é de fato, um ramo com autonomia, com princípios e conceitos próprios que não se confundem com os de outros ramos, como o tributário; e (2) celeridade na solução dos litígios, não permitindo que os intervenientes se sujeitem à insegurança jurídica prolongada decorrente de um processo administrativo que visa lhe impor penalidades e que se eterniza.
O tempo continua sendo elemento essencial e cabe aos que detém direitos, exercê-los enquanto é tempo. Não o fazendo, a inércia, enquanto falta de exercício do direito, deve operar reconhecendo-se a prescrição intercorrente e extinguindo-se o processo de cobrança das multas aduaneiras.
[1] REsp 1.942.072/RS, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 15/08/2024, DJe de 22/10/2024.
[2] ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 347.
[3] Art. 1º, § 1º Incide a prescrição no procedimento administrativo paralisado por mais de três anos, pendente de julgamento ou despacho, cujos autos serão arquivados de ofício ou mediante requerimento da parte interessada, sem prejuízo da apuração da responsabilidade funcional decorrente da paralisação, se for o caso.
[4] Art. 5º O disposto nesta Lei não se aplica às infrações de natureza funcional e aos processos e procedimentos de natureza tributária.
[5] Súmula CARF nº 11: Não se aplica a prescrição intercorrente no processo administrativo fiscal.
[6] Por exemplo, o Acórdão nº 3302-014.041, julgado em 31/01/2024, Relator designado Aniello Miranda Aufiero Junior.
[7] No sentido favorável à aplicação da prescrição intercorrente, os artigos publicados por Carlos Augusto Daniel Neto, Leonardo Branco e Vera Lúcia Feil: https://www.conjur.com.br/2021-fev-17/direto-carf-hora-refletir-sumula-11-carf/; https://www.conjur.com.br/2022-nov-01/territorio-aduaneiro-prescricao-intercorrente-administrativa-multas-aduaneiras/; https://www.conjur.com.br/2023-fev-15/direto-carf-prescricao-intercorrente-resp-1115078-carf-eppur-si-muove/.
No sentido contrário, a trilogia publicada nesta coluna por Rosaldo Trevisan: https://www.conjur.com.br/2023-fev-28/artx-territorio-aduaneiro-prescricao-intercorrente-aduana-back-to-the-future-parte/; https://www.conjur.com.br/2023-abr-04/territorio-aduaneiro-prescricao-intercorrente-aduana-back-to-the-future-parte-2/; https://www.conjur.com.br/2023-mai-09/territorio-aduaneiro-prescricao-intercorrente-aduana-back-to-the-future-parte/
[8] REsp 1.999.532/RJ, Relatora Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, julgado em 9/5/2023, DJe de 15/05/2023; REsp 1.942.072/RS, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 15/08/2024, DJe de 22/10/2024.
[9] Interessante observar que a prescrição intercorrente, nesse caso, foi alegada após o ajuizamento da execução fiscal para cobrança da multa, como matéria de exceção de pré-executividade, apta a retirar a liquidez e certeza do crédito tributário, e que deve atender a dois requisitos: seja suscetível de conhecimento de ofício pelo juiz; e que sua decisão não dependa de dilação probatória. No caso, a sentença havia acolhido a exceção para extinguir a cobrança, o TRF da 4ª Região reformou-a, e no Recurso Especial convalidou-se o entendimento do juiz singular, portanto, reconhecendo-se ser a prescrição intercorrente ocorrida no processo administrativo que levou à constituição definitiva do crédito objeto da execução fiscal, matéria passível de exceção de pré-executividade. (REsp 1.942.072/RS, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 15/08/2024, DJe de 22/10/2024).
[10] “…como as normas relativas ao despacho aduaneiro impõem aos exportadores e transportadores a observância de obrigações distintas, o exame do perfil da penalidade decorrente do descumprimento do prazo para registro das mercadorias embarcadas no SISCOMEX – objeto da presente insurgência – pressupõe breve incursão a respeito da relação entre as normas de Direito Aduaneiro e de Direito Tributário.” (REsp 1.999.532/RJ, Relatora Ministra Regina Helena Costa, Primeira Turma, julgado em 9/5/2023, DJe de 15/05/2023).
[11] MINEIRO, Pedro Henrique Alves. Direito aduaneiro tributário. Belo Horizonte: Arraes, 2024, p. 61.
[12] MINEIRO, Pedro Henrique Alves. Direito aduaneiro tributário. Belo Horizonte: Arraes, 2024, p. 101.
[13] MINEIRO, Pedro Henrique Alves. Direito aduaneiro tributário. Belo Horizonte: Arraes, 2024, p. 104.
[14] LEONARDO, Fernando Pieri. Direito Aduaneiro Sancionador à luz do AFC/OMC, da CQR/OMA e do ATEC, in PEREIRA, Cláudio Augusto Gonçalves e REIS, Raquel Segalla, coord. Ensaios de Direito Aduaneiro II. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2023, p. 164-186.
[15] TREVISAN, Rosaldo: El Despertar del Derecho Aduanero en Brasil. Disponível em: link , acesso em 23/03/25. LEONARDO, Fernando Pieri: Hora e a Vez da Especialização Aduaneira. Disponível em: link. Acesso em: 23/03/2025.
Fernando Pieri, Pedro Mineiro
Fernando Pieri
é sócio fundador da HLL & Pieri Advogados, mestre em Direito pela UFMG, pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa, professor de Direito Aduaneiro e Tributário, Membro da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB, presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG, multiplicador do Programa OEA da Receita Federal, membro de nº 51 da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.
Pedro Mineiro
é advogado da área aduaneira da HLL & Pieri Advogados, doutorando em Direito Tributário pela USP, mestre em Direito pela UFMG, especialista em Direito Tributário pelo Ibet, contador e professor dos cursos de pós-graduação em direito da PUC Minas.