Prescrição intercorrente e aduana: uma réplica crítica e grata

Carlos Augusto Daniel Neto

Em nosso último artigo sobre prescrição intercorrente para multas aduaneiras, nos queixávamos sobre o “letárgico desinteresse para o debate” daqueles contrários à aplicação da Lei nº 9.873/99. Nesse contexto, foi com entusiasmo que lemos o artigo publicado por Rosaldo Trevisan, na coluna Território Aduaneiro, no dia 28/2/23, no qual aduz suas razões contrárias àquelas que temos defendido.

Há no texto um legítimo esforço dialético, típico da atividade que se pretende científica, até então carente no tema. Imbuídos desse mesmo espírito de debate, aproveitamos o ensejo para desenvolver um diálogo acadêmico e, sobretudo, entre amigos, trazendo algumas considerações que reputamos importantes aos pontos aduzidos no artigo em questão.

Karl Popper, em seu clássico Lógica da Pesquisa Científica, propõe ser a marca de uma teoria científica empírica a sua falseabilidade [1], isto é, a impossibilidade de sua verificação conclusiva somada à potencialidade de sua refutação futura. Sobre isso, Souto Maior Borges, no ensaio Apologia do Erro, afirma que as teorias buscam refúgio contra o erro numa espécie de idolatria, na exaltação do imobilismo intelectual, e afirma que “esse processo de imunização contra os riscos do erro atua como um antídoto contra a investigação profunda” que, em última análise, converge à negação da própria cientificidade [2].

Invertendo a ordem, essa breve consideração é endereçada à última provocação do artigo em questão: “Que evento misterioso de 2020 teria dado azo a eventual mudança de posicionamento[?]”, que lograra “comover alguns julgadores e ex-julgadores do Carf que já haviam adotado posicionamento diverso, ainda que não tenha havido alteração legislativa”?

A resposta é simples: reflexão científica sobre do tema.

Pascal já dissera: “não me envergonho de mudar de opinião, porque não me envergonho de pensar”. O imobilismo mental talvez seja um privilégio exclusivo dos supremos gênios e dos inabaláveis mentecaptos – felizmente não nos enquadramos em nenhum desses tipos infaustos.

As novas ideias não surgem no vácuo, mas são produto do homem e sua circunstância, parafraseando Ortega e Gasset.

Antes de provocarmos a reflexão ora criticada (aqui), havíamos tratado sobre o alcance direto e por remissão do Decreto nº 70.235/72, oportunidade esclarecemos que alguns processos administrativos aduaneiros, relativos à aplicação de multas dessa natureza, somente estavam sujeitos a esse rito por força de regras remissivas, como o artigo 23, §3º, do Decreto-lei nº 1.455/76 (aqui). Por outro lado, deparamo-nos com o contraste entre precedentes dos TRFs, declarando a prescrição intercorrente da Lei nº 9.873/99 às multas aduaneiras, ao passo que o Carf sequer analisava a aplicação dela aos créditos não tributários, por força de uma aplicação mecânica da Súmula nº 11, cujos precedentes envolviam apenas créditos tributários. A diferença desses regimes jurídicos, per si, justifica o distinguishing na aplicação da súmula, proposto à época, para que se avançasse sobre a discussão técnica sobre a aplicabilidade da Lei nº 9.873/99 para créditos não tributários analisados pelo Carf.

Como se vê, não foi preciso um DeLorean, um ciborgue de outro tempo ou qualquer deus ex machina para que o problema fosse evidenciado. Bastou a disposição e a postura de abertura mental a novas reflexões científicas, a partir de ponderações pretéritas ou paralelas.

Aliás, tampouco é necessária alteração legislativa para se que se possa refletir sobre os sentidos atribuídos aos textos legais. O Direito é rico em casos nos quais o dispositivo seguia idêntico, mas alterou-se a norma construída a partir dele. A distinção entre texto e norma é tão cediça que dispensa elaborações adicionais.

Mas vamos ao ponto central do artigo. O autor afirma que a MP nº 1.859-17/99 alterou o artigo 5º, para afastar a aplicação da Lei nº 9.873/99 aos “processos e procedimentos de natureza tributária”. E concluiu que tal restrição seria em função da “natureza do processo ou procedimento”, e que o “rito processual previsto no Decreto 70.235/1972, no entanto, é ‘de natureza tributária’, envolvendo inclusive institutos previstos na legislação tributária”. Em suma, no seu entender, qualquer matéria submetida ao rito do Decreto nº 70.235/72 se tornaria “processo tributário”.

Há nessa conclusão três evidentes problemas a serem endereçados, sucessivamente.

O seu principal argumento parece ser quanto à restrição incluída no artigo 5º da lei ser decorrente da “natureza do processo ou procedimento”. Com respeitosa vênia, trata-se de uma afirmação equivocada, e que ignora ou omite os fundamentos expressos que acompanharam a citada alteração.

Atendendo ao alvissareiro conselho do autor pela identificação da “origem das normas para buscar sua contextualização e sua compreensão teleológica/finalística ou sistêmica”, verificamos a Mensagem nº 1.002 de 1999 [3], do ministro Pedro Malan. Nela se afirmou que a mudança se deu em razão da “ocorrência de determinações judiciais pelo arquivamento definitivo de processos de natureza tributária” por entenderem pela aplicabilidade da MP nº 1.859-16/99 a essa matéria.

Aduziu a exposição de motivos que “contudo, a matéria tributária, por determinação constitucional, deve ser tratada em sede de lei complementar, não podendo ser atingida por disposições de lei ordinária”, pugnando pelo estabelecimento da exceção a esse respeito. Ou seja, a redação do artigo 5º da Lei nº 9.873/99 decorreu do fato de a prescrição e decadência tributárias serem matérias privativas de lei complementar, tratadas no CTN, o que não se dá com as multas aduaneiras, o que foi ratificado no REsp nº 1.115.078/RS.

A exceção do artigo 5º absolutamente nada tem a ver com o processo ou procedimento em si, mas com o regime do direito material que está sendo discutido. E não poderia ser de outro jeito, pois tanto a prescrição intercorrente, como a prescrição e a decadência, são aspectos do direito material vindicado no processo, e não do rito processual ou procedimental (não é à toa que processualmente são questões preliminares de mérito — artigo 487, II do CPC —, com aptidão de gerar coisa julgada material).

Se hipoteticamente o Decreto nº 70.235/72 fosse revogado, e o PAF passasse a ser regido pela Lei nº 9.784/99, de caráter geral, duas conclusões são absolutamente pacíficas:

1) a aplicação da Lei nº 9.873/99 seguiria vedada aos créditos tributários, por não depender do procedimento, mas natureza da matéria analisada, sujeita a lei complementar; e

2) os demais processos de outras matérias, sujeitas ao mesmo rito da Lei nº 9.874/99, não se tornariam automaticamente “processos tributários”, afastando-lhes eventual aplicabilidade da Lei nº 9.873/99.

Novamente, com a devida vênia e sob a lição de Scarpinella Bueno, a distinção entre diversos tipos de “processos” decorre dos distintos direitos materiais a serem aplicados por cada um, podendo haver desde uma diferenciação total de procedimentos (e.g. processo civil e penal), passando por uma coincidência parcial (e.g. processo civil e trabalhista), até uma coincidência total (e.g. processo civil e do consumidor) [4]. Aliás, desafio a demonstrarem uma situação na qual o regime jurídico do direito material vindicado seja determinado pelo seu rito processual, e não o contrário: o caráter unidirecional dessa influência decorre da própria noção de instrumentalidade do processo.

Ultima ratio, a posição do autor imporia a aplicação do CTN para qualquer matéria sujeita ao Decreto nº 70.235/72, já que, em seu entender, o rito procedimental supostamente determinaria o regime material (conflitando, e.g., com a Súmula Carf nº 184).

O Decreto nº 70.235/72 certamente regula diretamente processos de natureza tributária, conforme estabelece o seu artigo 1º. Disso não é possível se depreender que qualquer matéria sujeita ao rito desse Decreto passe a ter natureza de “processo tributário”, o que implicaria reconhecer que a adoção do rito teria o condão de alterar o regime jurídico material do direito vindicado, o que não faz qualquer sentido lógico.

O Decreto-lei nº 1.455/76, no seu artigo 23, §3º, assim como as diversas regras de remissão legislativa existentes nessa matéria [5], estabelece que se observem “o rito e as competências estabelecidos no Decreto no 70.235”. Em momento algum ele equipara a multa que estabelece a um crédito tributário, mas simplesmente determina que se siga o conjunto procedimental lá estabelecido, para a condução do processo dessa matéria aduaneira.

Ademais, o próprio Carf, na Portaria ME nº 260/2020, em seu artigo 3º, II, “c” [6] reconhecia a existência de outras “espécies de processos de competência do Carf”, que não os tributários descritos no artigo 1º do Decreto nº 70.235/72.

Tampouco se pode concordar com o terceiro ponto, de que o Decreto nº 70.235/72 envolveria institutos da legislação tributária como a suspensão da exigibilidade do crédito, o caráter privativo do AFRFB para lançamento, e o julgamento em duplo grau.

Em relação ao primeiro item, esclareça-se que só há que se cogitar de prescrição intercorrente no PAF em razão da suspensão de exigibilidade da pretensão estatal, caso contrário estaria correndo o prazo prescricional. Em segundo lugar, a Lei nº 9.873/99, no seu artigo 1º-A, prescreve que o direito da administração de executar créditos não tributários só nasce com o encerramento do processo administrativo, do que se depreende a suspensão da sua exigibilidade no seu curso. É o que se dá em relação a diversas outras exigências decorrentes do poder de polícia da União e seus órgãos, como Aneel [7], Anatel [8], Anvisa [9], ANP[10] e Ibama.

Quanto ao caráter privativo da AFRFB para lançamento, verifica-se que a competência para multas aduaneiras e créditos tributários é comum à Receita Federal, mas que distinção entre as matérias é reconhecida estruturalmente no próprio artigo 1º da Lei nº 11.457/07, que estabelece que esse órgão “tem por finalidade a administração tributária e aduaneira da União”, o que atrai a competência para lançamento de créditos dessas duas naturezas, por força do artigo 53 da Lei nº 4.320/64.

E, por fim, o duplo grau de jurisdição no PAF foi amplamente reconhecido pelo STF no precedente representativo da Súmula Vinculante nº 21 do STF (ADI 1.976 relator: ministro Joaquim Barbosa, P, j. 28/3/2007).

Qual seria a “incompatibilidade” desses institutos com a cobrança de multas aduaneiras? Não há.

O autor aduz também que o funcionamento do Conselho de Contribuintes denotaria uma “ausência de preocupação em relação à prevenção de eventual ‘prescrição intercorrente'”, e que em 1999 supostamente não haveria clareza na distinção entre processos tributários e aduaneiros, invocando a exposição de motivos do Decreto-lei nº 2.472/1988.

Sob renovadas vênias, isso não justificaria a inobservância pretérita da distinção entre créditos tributários e não tributários, traçada desde a Lei nº 4.320/64 (não obstante concordemos com o autor quanto a existência de hipóteses que possam ensejar controvérsia sobre a natureza da sanção), considerando que ninguém pode se escusar de cumprir a lei, alegando não a conhecer (artigo 3º da Lindb). Muito menos serviria esse argumento à deconsideração presente e futura da distinção, considerando a clareza e notoriedade que ostenta há algum tempo.

Em seguida, o autor traz um apanhado de precedentes do Carf que teriam supostamente rejeitado a aplicação da prescrição intercorrente da Lei nº 9.873/99 a diversas multas aduaneiras (acórdãos nº 3403-001.655, 3802-001.731, 3403-002.746, 3102-002.348 etc.).

Mais uma vez, peço vênia para discordar diametralmente da leitura do autor dos referidos precedentes. Em todos os precedentes citados houve a aplicação direta e inconteste da súmula nº 11 do Carf, cujo emprego mecânico e acrítico a casos não contemplados pelos seus acórdãos paradigmas foi exatamente a razão da nossa crítica inicial.

Em nenhum dos casos de multas aduaneiras foi afastada a súmula nº 11, para que se discutisse a tipicidade entre elas e as hipóteses da Lei nº 9.873/99 (ainda que para rejeitá-la, eventualmente), razão pela qual não se pode dizer que a referida lei foi “rejeitada” materialmente pelo Carf, já que sequer chegou a ter a sua aplicação analisada.

Aliás, mesmo após as provocações feitas e toda a discussão sobre o tema, a questão segue sendo um tabu no âmbito do Carf, com um amplo e ostensivo desestímulo à sua discussão, apesar das diversas razões apresentadas para que ela seja repensada. Não obstante, não tenho dúvidas de que a percepção geral é de que a complexidade da discussão é muito maior do que se imaginava originalmente, não se esgotando na aplicação automática da súmula.

A pergunta que sempre nos fizemos foi: de onde vem tamanho receio de discutir com seriedade a aplicação da Lei nº 9.873/99 ao processo administrativo?

Em postura oposta a essa, Rosaldo Trevisan demonstra abertura à discussão científica, prometendo uma trilogia de artigos a respeito do tema, os quais aguardamos, ansiosos pela leitura.

Não obstante nossa absoluta divergência com os argumentos apresentados, pelas razões que foram analítica e respeitosamente postas acima, temos que louvar a iniciativa de debater o tema no campo da autoridade dos argumentos, e não dos argumentos de autoridade, com a tecnicidade e seriedade que ele merece.

Citando novamente o saudoso mestre Souto Maior Borges, “a arte de evitar erros (…) deve ser substituída pela arte, muito mais elevada, que consiste em assumir-lhes a responsabilidade, aprender com eles e tentar evitá-los no futuro” [11]. Os erros não devem ser bolas de ferro atadas que nos fazem prisioneiros, mas molas que impulsionam a novas ideias, potencialmente falíveis.

Afinal, é pelos erros que respira a ciência.

[1] POPPER, Karl. Lógica da Pesquisa Científica. São Paulo: Cultrix, P. 42-44.

[2] BORGES, José Souto Maior. Ciência Feliz, 3ªed. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p.26.

[3] Disponível no link https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/14427?sequencia=259, com acesso em 28/2/2023.

[4] Curso Sistematizado de Direito Processual Civil, v. 1, 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2020, p.66 ess.

[5] Para uma listagem exaustiva, v. DANIEL NETO, C.A.; RIBEIRO, D. D. A Aplicabilidade da Prescrição Intercorrente da Lei n. 9.873/99 às Multas Aduaneiras – Análise Crítica dos Argumentos do Debate. RDTA 50. São Paulo: IBDT, 2022, p.91.

[6] “c) das demais espécies de processos de competência do CARF, ressalvada aquela prevista no § 1º do art. 2º.”

[7] Resolução Normativa Aneel nº 26/2004, art. 26.

[8] Resolução Anatel nº 612/2013: Art. 81.

[9] Lei nº 6.437/77: Art. 32.

[10] Decreto nº 2953/99, Art. 24.

[11] Ob.cit., p. 28.

Carlos Augusto Daniel Neto

Sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, em estágio pós-doutoral em Direito Tributário na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, pesquisador do NEF/FGV e do Nupem/IBDT e professor permanente do mestrado profissional do Cedes e de diversos cursos de pós-graduação.

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