Prejuízo fiscal na transição: porque está melhor negociar com a Receita
Jussandra Hickmann Andraschko
A Lei nº 13.988/20, conhecida como a Lei da Transação Tributária, alterada em junho deste ano, por meio da Lei 14.375/22, trouxe importante avanço para a formação do plano de regularização, não apenas no tocante à majoração do percentual de desconto e dilação do prazo, mas pelo fato de prever a utilização de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da CSLL até o limite de 70% do saldo remanescente após a incidência dos descontos.
A legislação inclusive permitiu o uso de créditos de prejuízo fiscal de titularidade do responsável tributário ou corresponsável pelo débito, de pessoa jurídica controladora ou controlada, de forma direta ou indireta, ou de sociedades que sejam controladas direta ou indiretamente por uma mesma pessoa jurídica, apurados e declarados à Secretaria Especial da Receita Federal, independentemente do ramo de atividade, no período previsto pela legislação tributária.
No entanto, restou evidenciada, com a limitação do emprego do prejuízo fiscal a 70% do saldo remanescente, que o legislador deseja que o contribuinte tenha algum desembolso financeiro, não permitindo a liquidação do passivo apenas com os benefícios concedidos.
Importante lembrar que a administração tributária federal sempre reconheceu a possibilidade do prejuízo fiscal e da base de cálculo negativa isentar o pagamento do IRPJ/CSLL, reduzir o IRPJ/CSLL a ser pago em períodos subsequentes onde haja existência de lucro tributável e constituir direito de crédito quanto aos adiantamentos em caráter de estimativa que tiverem sido realizados pela empresa. E, por diversas oportunidades, a União admitiu a utilização de tais créditos como forma de abatimento de débitos federais em programas especiais de parcelamento, como no Refis da Crise (Lei 11.941/09), Prorelit (Lei 13.202/15), Pert (Lei 13.496/17), entre outros.
Por isso, acertada a alteração da Lei da Transação para viabilizar o emprego deste meio de pagamento historicamente reconhecido pela política tributária como apto a equalizar o passivo tributário.
O legislador, ao inserir o §1º-A no artigo 11 na Lei 13.988/20, deixou a critério exclusivo da Receita e da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) adotar o uso dos créditos de prejuízo fiscal em casos excepcionais para a melhor e efetiva composição do plano de regularização.
A Receita regulamentou a matéria por meio das Portarias 208/22 e 247/22, permitindo o uso dos créditos de prejuízo fiscal e da base de cálculo negativa da CSLL para todas as modalidades de transação, seja por proposta da Receita, de forma individual ou por adesão, ou por iniciativa do devedor, sem quaisquer limitações de prazo para a sua utilização [1].
Além disso, a Receita autorizou que todos os contribuintes com débitos no contencioso administrativo utilizem este importante ativo de suas empesas, independentemente do grau de recuperabilidade deste crédito. Ou seja, mesmo os créditos com alta ou média perspectiva de recuperação poderão fazer uso de prejuízo fiscal ou base de cálculo negativa.
Já a PGFN, ao regulamentar as disposições da Lei 14.375/22 por meio da Portaria PGFN/ME 6.757/22, previu tratamento diverso e muito mais restritivo para a utilização do benefício.
Ao contrário da Receita, a PGFN permitirá o aproveitamento apenas nas transações de créditos considerados irrecuperáveis ou de difícil recuperação, e de forma subsidiária, isto é, se inexistentes ou esgotados outros créditos líquidos e certos em desfavor da União.
A Portaria 6.757/22 também vedou o uso do prejuízo fiscal nas transações por adesão e na individual simplificada, violando, a meu ver, o princípio da isonomia, já que excluiu diversos contribuintes em situação idêntica, que necessitam aproveitar do mesmo benefício para equalização do seu passivo fiscal.
Tal vedação foi provisoriamente mitigada, pelo exíguo prazo de 60 dias, pela Portaria PGFN 8.798/22, que instituiu o Programa de Quitação Antecipada de Transações e Inscrições da Dívida Ativa da União (QuitaPGFN). Ela permite a utilização do benefício para algumas modalidades de transação [2], desde que para amortização de créditos classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação e a adesão ocorra até 30/12/22. Entretanto, impõe condição extremamente onerosa, a saber: a quitação em espécie de, no mínimo, 30% do saldo transacionado, em até seis parcelas.
Percebe-se que a regulamentação da matéria pela Receita está muito mais alinhada à autorização legal dada aos agentes públicos, do que a estipulada pela PGFN, que expressamente atribui caráter excepcional e condiciona o aceite à demonstração de imprescindibilidade do prejuízo fiscal para a composição do plano de regularização ou à quitação à vista de parte do saldo transacionado. Referida regulamentação tem gerado preocupação: será que outros critérios, além das restrições já impostas na regulamentação da PGFN, poderão ser usados para impedir ou dificultar a utilização deste meio de extinção do crédito no campo da transação tributária?
O simples fato de o contribuinte ter prejuízo fiscal acumulado, somado à classificação do crédito como de difícil recuperação ou irrecuperável, parecem, por si só, serem elementos suficientes para demonstrar as dificuldades financeiras do devedor, tornando imprescindível a sua utilização para equalização do passivo fiscal, mantendo o plano de pagamento no prazo máximo concedido.
Priorizar a venda de bens da empresa, por exemplo, antes da utilização dos créditos de prejuízo fiscal, mostra-se desarrazoado e desproporcional e viola o princípio da menor onerosidade da execução (artigo 805 do CPC [3]). Este princípio representa a aplicação da proporcionalidade no processo de execução, na medida em que busca garantir a efetividade da execução e a preservação do patrimônio do devedor.
Ora, se no âmbito do contencioso judicial o julgador deve observar que a excussão dos bens se faça de maneira menos gravosa ao devedor; no âmbito da transação, à luz dos princípios da consensualidade e da resolutividade, a PGFN deve observá-lo com ainda mais rigor. Espera-se equilíbrio entre a garantia da efetividade da cobrança e a preservação do patrimônio do executado, permitindo a utilização de todos os benefícios autorizados pelo legislador, inclusive do prejuízo fiscal, por ser uma forma há muito permitida pela política tributária para amortização dos respectivos créditos.
Não nos esqueçamos que a transação é um meio de resolução de litígios tributários que traz consigo, muito além do viés arrecadatório, o correto tratamento dos contribuintes, sejam aqueles que já não possuem capacidade de pagamento, sejam aqueles que foram autuados, não raro, pela complexidade da legislação que permitia interpretação razoável em sentido contrário àquele reputado como adequado pelo fisco, justificando, por isso, a aceitação do prejuízo fiscal para compor a negociação.
Assim, interpretar de maneira diversa, limitando a cumulação de benefícios previstos no artigo 11 da Lei 13.988/20, ou restringindo a utilização de prejuízo fiscal/base de cálculo negativa de CSLL, é ir de encontro aos princípios e objetivos do instituto da transação, bem referenciados nos artigos 2º e 3º da Portaria PGFN/ME 6.757/22.
[1] A transação por adesão é a modalidade que o devedor apenas aceita as condições fixadas no edital. A efetiva negociação com o Fisco ocorre apenas na transação por proposta individual — que abarca débitos superiores a R$ 10 milhões — e na individual simplificada — que abrange débitos de R$ 1 milhão a R$ 10 milhões. O artigo 40 da Portaria 208/22 também dispõe de outras hipóteses de transação individual.
[2] O artigo 5º, incisos I a V da Portaria PGFN 8.798/22 dispõe que transações celebradas por adesão conforme Editais nº 01/19 e 02/21; as firmadas na modalidade excepcional; as do PERSE e as individuais poderão aderir ao QuitaPGFN.
[3] “Artigo 805. Quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado”.
Jussandra Hickmann Andraschko
advogada tributarista, vice-Presidente da Comissão Especial de Direito Tributário da OAB Seccional do RS, membro efetivo e Assessora Jurídica da Fundação Escola Superior de Direito Tributário – FESDT, coordenadora do Café Diálogos Tributários promovido pela FESDT e professora convidada do curso de pós graduação em Direito e Processo Tributário na Prática da UNISC/CEISC.