Preços de transferência e os intangíveis
Fábio Messiano Pellegrini
A globalização é um fenômeno que não possui precedentes na história econômica mundial, tendo consequências positivas e negativas, como qualquer outro fenômeno, independentemente das várias manifestações que ocorrem rotineiramente. Com base nesta transformação, os governos nacionais e organizações internacionais vêm gradativamente se adaptando ao estudo das transformações derivadas da globalização, assim como tentam controlar eventuais consequências negativas que por ventura podem colocar em risco todo o sistema.
Importante destacar que uma das consequências da globalização é a movimentação internacional e constante de capitais entre as pessoas jurídicas situadas em várias partes do globo, em especial os grupos privados multinacionais. Sendo que os Estados possuem grande preocupação em controlar a forma como este fluxo de capitais ocorre, tendo em vista evitar manipulação de preços pagos a título de remuneração dos fatores de produção, com o intuito de diminuir ou até mesmo extinguir a sonegação fiscal.
Desta maneira, um dos métodos criados pelos Estados com o objetivo de evitar a sonegação fiscal é o método denominado "Preços de Transferência".
Acerca do termo "Preços de Transferência" a Receita Federal do Brasil (01) se manifestou da seguinte maneira:
"O termo "preço de transferência" tem sido utilizado para identificar os controles a que estão sujeitas as operações comerciais ou financeiras realizadas entre partes relacionadas, sediadas em diferentes jurisdições tributárias, ou quando uma das partes está sediada em paraíso fiscal. Em razão das circunstâncias peculiares existentes nas operações realizadas entre essas pessoas, o preço praticado nessas operações pode ser artificialmente estipulado e, conseqüentemente, divergir do preço de mercado negociado por empresas independentes, em condições análogas – preço com base no princípio arm’s length."
Em relação às definições internacionais, a OCDE (02), Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, também contribuiu na definição acerca do que seriam os Preços de Transferência:
"Transfer prices are the prices at which an enterprise transfers physical goods and intangible property or provides services to associated enterprises."
Ademais, o Professor Alberto Xavier (03), também nos ensina o que consiste a prática de Preços de Transferência:
"A prática denominada de preços de transferência consiste na política de preços que vigora nas relações internas de empresas interdependentes e que, em virtude destas relações especiais, pode conduzir à fixação de preços artificiais, distintos dos preços de mercado."
Mais adiante na mesma obra, o Professor Xavier complementa seu ensinamento com a seguinte explicação:
"Quando as empresas interdependentes se localizam em diversos Estados – como é o caso das empresas multinacionais – a possibilidade de introduzir distorções artificiais nos preços das suas operações pode conduzir à atrofia dos lucros tributáveis num dos Estados em presença e à correlativa hipertrofia dos lucros tributáveis noutro ou noutros, sem que o mesmo fenômeno corresponda à função efetivamente desempenhada pela empresa que o aufere."
Um dos elementos necessários para que o método de Preços de Transferência seja utilizado de forma que possa atingir plenamente seus objetivos é a avaliação dos bens intangíveis. Tal questão será analisada nos parágrafos a seguir.
No Brasil a avaliação do ativo denominado intangível não parece natural, inclusive demandando grande esforço contábil, conforme é possível verificar pela doutrina abaixo citada:
"(…) os ativos intangíveis formam uma das áreas mais complexas da contabilidade, em parte em virtude das dificuldades de definição, mas por causa das incertezas a respeito da mensuração de seus valores e da estimação de suas vidas úteis." (04)
Os autores Paulo Schmidt e José Luiz dos Santos (05) ensinam de forma simples e precisa a origem do termo intangível:
"A palavra ‘intangível’ vem do latim tangere, que significa ‘tocar’. Portanto, os bens intangíveis são aqueles que não podem ser tocados, pois não possuem corpo físico, são incorpóreos."
Muitas vezes nos deparamos com situações em que os contribuintes somente avaliam os ativos intangíveis quando são obrigados por questões legais, sendo estas para fins tributários, de falência ou recuperação judicial, ou ainda regulatórios.
Apenas a título exemplificativo, adotamos a classificação dos ativos intangíveis nas seguintes divisões:
a) Marcas e patentes;
b) Direitos de uso – software;
c) Fundo de comércio (goodwill) adquirido;
d) Direitos sobre recursos naturais;
e) Direitos de exploração de serviços públicos mediante concessão ou permissão do Poder Público, e;
f) Ágio decorrente de expectativa futura, entre outros.
Existem outras classificações, inclusive muito mais complexas, contudo o intuito do presente trabalho é relacionar tais ativos com os preços de transferência, razão pela qual o exemplo de distinção de espécies acima proposto serve apenas como ideia para o leitor, de quais os tipos de ativos estamos tratando.
Em muitas oportunidades os intangíveis podem contribuir financeiramente para a pessoa jurídica, através de sua interação ou ainda incorporação com outros elementos desta. Razão pela qual o primeiro aspecto a ser levado em consideração é ter em mente se tais podem ser separados dos demais elementos que compõem o ativo da pessoa jurídica (não apenas a separação de fato, como também a separação em um contrato de compra e venda).
Ponto que merece destaque, diz respeito à abordagem do custo para a avaliação de ativos intangíveis. A relação entre os custos e o valor relevante (arm´s length) (06) dos bens intangíveis é questionável. A maior dificuldade prática dessa abordagem é a escolha dos custos a serem atribuídos a um determinado bem intangível (07).
Resta complexa a avaliação dos custos envolvidos na formação, e utilização de um ativo intangível, além do mais a forma de mensurá-los, pois em alguns casos o intangível é a própria razão de existência da pessoa jurídica, enquanto que em outros se trata de elemento importante no processo produtivo, ainda que não fundamental. Outra abordagem que pode ser utilizada é a da renda em geral. Tal abordagem leva em consideração a expectativa de fluxo de rendimentos oriundos de bens intangíveis para determinar seu valor atual. Necessário também levar em consideração o lapso temporal necessário para o retorno dos rendimentos esperados, assim como os riscos associados com a realização de tais expectativas.
Em relação aos preços de transferência, uma das principais dificuldades na utilização da abordagem da renda na avaliação de intangíveis, diz respeito à fase em que é feita a avaliação, tal ocorre, normalmente, em fase inicial de exploração deste ativo.
Sobre a dificuldade na utilização desta abordagem, o Prof. Yariv Brauner (08) ensina:
"Tendo em vista que o sucesso pode tornar os intangíveis valiosos de forma muito rápida, fazendo com que a sua (posterior) transferência seja muito onerosa em termos de tributação, os contribuintes normalmente estabelecem uma estrutura para efeitos de planejamento tributário com olhos a cada um desses estágios. O resultado é que a avaliação desses ativos, para efeito de preços de transferência, reflete projeções incertas, com pouca ou nenhuma informação real quanto aos rendimentos gerados por esses ativos."
Contudo, apesar das dificuldades, essa abordagem é vista como uma das mais adequadas para o propósito de avaliação. Por ser a que se aproxima mais do valor deste ativo.
Em relação à sistemática de preços de transferência utilizada no Brasil em relação aos intangíveis, fundamental ter em mente que tais preços somente são controlados quando são menores do que o percentual de 90% (noventa por cento) dos preços de operações semelhantes ocorridas no mercado interno em relação ao mesmo ativo. Atente-se que tal padrão de porcentagem praticamente inviabiliza os controles de preços de transferência para o exterior de bens intangíveis, por pessoas jurídicas, devido à dificuldade em identificar transações internas que podem servir como parâmetros para as transferências ocorridas para o exterior.
Diante deste quadro é possível verificar que no caso de transferências de ativos intangíveis de pessoas residentes no Brasil para aqueles que residem no exterior, ou vice versa, os controles de preço de transferência são em grande parte teóricos, face a pouca, ou ainda inexistente, informação de operações equivalentes ocorridas, o que inviabiliza a comparação de valores em operações similares.
Isso acontece, pois o artigo 21 da Lei nº 9.430/96 determina a documentação que poderá ser utilizada na apuração dos preços médios na importação e exportação, sendo tais opções pouco utilizadas na apuração dos valores de ativos intangíveis, quais sejam:
a) Publicações oficiais do governo do país comprador ou vendedor;
b) Declaração da autoridade fiscal do país comprador ou vendedor, com o qual o Brasil mantenha acordo para evitar bitributação ou para intercâmbio de informações;
c) Pesquisas efetuadas por empresa ou instituição de notório conhecimento técnico ou publicações técnicas, onde estejam especificados:
– o setor;
– o período;
– as empresas pesquisadas (detalhando, por empresa, os dados coletados e trabalhados), e;
– a margem coletada.
Atente-se que todos os relatórios e pesquisas mencionadas acima somente poderão ser utilizados caso tenham sido confeccionados em acordância com métodos de avaliação internacionalmente aceitos e, além disso, se referirem a período contemporâneo ao da apuração da base de cálculo do imposto de renda da pessoa jurídica nacional, ou seja, o período compreendido entre 01 de janeiro a 31 de dezembro do ano de referência.
Cremos que os métodos brasileiros existentes relativos controle dos preços de transferência (09) mostram-se deficitários, por traduzirem de forma insatisfatória as características singulares dos intangíveis que justificariam um tratamento diferenciado. Sem contar o fato de que a obtenção de relatórios internacionais depende muito no nível de organização existente no país aos quais as pessoas jurídicas vinculadas estão mantendo relações comerciais. Ademais, os métodos aceitos internacionalmente feitos por empresas dotadas de notório conhecimento técnico é muito vago, pois a avaliação acaba sendo totalmente subjetiva, sem que restem estabelecidos critérios objetivos de mensuração da confiabilidade do trabalho realizado, e o que pode ser entendido como "notório conhecimento técnico". Último ponto que merece atenção diz respeito ao período para os dados de negociações sejam apurados, 01 de janeiro a 31 de dezembro do ano referência, que é o período de apuração do imposto de renda brasileiro. Tal inviabiliza o controle dos preços de transferência em negociações nas quais a parte vinculada está situada nos Estados Unidos da América, Canadá ou ainda em país que tenha o ano fiscal distinto do adotado no Brasil.
Concluindo todo o raciocínio aqui demonstrado, o Prof. Hermes Marcelo Huck (10) expõe toda a dificuldade encontradas pelos países em desenvolvimento para o controle dos preços de transferência, restando ainda mais evidente a preocupação não apenas com os ativos intangíveis como os demais ativos negociados internacionalmente:
"Uma (…) dificuldade com que se defrontam os países em desenvolvimento diz respeito à carência de informações de que dispõem relativamente aos efetivos preços praticados no mercado internacional para a imensa gama de produtos que circulam pelos canais comerciais do mundo. Finalmente, tanto para ricos como para pobres, se os preços de commodities são facilmente acessíveis, pois os produtos primários, como petróleo, ouro, metais em geral e vários produtos agrícolas, têm suas cotações divulgadas diariamente em todos os órgãos de informação econômica, há, por outro lado, uma nem sempre superável dificuldade para a aferição do justo preço de mercado para produtos ou serviços como marcas, patentes, tecnologia, consultorias especializadas etc., gerando uma barreira de difícil transposição para a constatação e repressão do abuso praticado."
Assim, sendo demonstramos, de forma breve, a complexidade de avaliação dos valores envolvidos nos ativos intangíveis, para fins de aplicação dos métodos de preços de transferência.
Notas
(01) http://www.receita.fazenda.gov.br/pessoajuridica/dipj/2005/pergresp2005/pr672a733.htm
(02) OCDE . Transfer Pricing Guidelines for Multinational Enterprises and Tax Administrations. 2010. Paris: OCDE, p. 19.
(3) XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional no Brasil. Forense: Rio de Janeiro. 7º ed. p. 289.
(04) HENDRIKSEN, Eldon S.; VAN BREDA, Michael F. Teoria da contabilidade. São Paulo: Atlas, 1999.
(05) SCHMIDT, Paulo; SANTOS José Luiz dos. Avaliação de ativos intangíveis. São Paulo: Atlas, 2002.
(06) O princípio arm´s length é o elemento principal e a base do atual regime internacional dos preços de transferência. A idéia básica deste princípio é a de que as negociações realizadas entre pessoas jurídicas interligadas, ou ainda relacionadas, devem ser atribuídos preços que seriam praticados da mesma forma que ocorresse idêntica negociação entre partes independentes, ou seja, preços de mercado.
(07) Vide Weston Anson & Donna Suchy, Intellectual Property Valuation: a Primer for Identifying and Determining Value, 2005. p.33.
(08) BRAUNER, Yariv. O valor segundo o Espectador: a Avaliação de Intangíveis para Fins de Preços de Transferência, In Luis Eduardo Schoueri (org.), Tributos e preços de transferência, 3º vol., São Paulo: 2009. p. 284.
(09) Os métodos de preço de transferência utilizados no Brasil são na importação: PIC (Método de Preços Independentes Comparados), PRL (Método do Preço de Revenda Menos o Lucro) e CPL (Método do Custo de Produção Mais Lucro), e na exportação: PVEx (Método do Preço de Venda nas Exportações), PVA (Método do Preço de Venda por Atacado), PVV (Método de Preço de Venda a Varejo) e CAP (Método do Custo de Aquisição ou de Produção mais Tributo e Lucro).
(10) HUCK, Hermes Marcelo. Evasão e elisão: rotas nacionais e internacionais do planejamento tributário. São Paulo: Saraiva. p. 305
Fábio Messiano Pellegrini
Advogado. Coordenador Tributário do escritório Pereira de Carvalho e Monteiro Galvão Advogados.