Precisamos de regras fiscais óbvias, mas o óbvio não é fácil no Brasil

Élida Graziane Pinto

Diante de problemas antigos e complexos, a solução rápida e fácil tende a ser mais atraente entre os diversos prognósticos disponíveis, por mais equivocada que ela seja. São sintomáticas, aliás, as grandes lucratividade e popularidade auferidas pelos mercadores de ilusões.

Há desafios históricos que se agravam, porque a sociedade brasileira, por vezes, voluvelmente prefere percorrer atalhos temerários, a arcar com o ônus trabalhoso de incorporar aprendizagem a partir do processamento democraticamente lento das suas diversas tensões e iniquidades.

Somos, a bem da verdade, uma sociedade primordialmente infantil que se recusa a assumir a complexidade inerente à gestão cotidiana dos conflitos sob o padrão racional-legal weberiano. Quedamo-nos preguiçosamente à espera de lideranças carismáticas e tradicionais que mimetizem um pai autoritário e substituam os cidadãos na difícil tarefa de escolher, de forma politicamente legítima e racionalmente técnica, as prioridades coletivas.

Fiamo-nos em promessas de tetos milagrosos para induzir — ontológica e automaticamente — eficiência alocativa, com a explicitação estanque e seletiva do limite da escassez. Aceitamos, como se fosse normal, o planejamento de médio prazo ser solenemente ignorado e o orçamento ser capturado pelo curto prazo dos que são política e economicamente mais fortes. Ingenuamente acumulamos regras fiscais descumpridas, enquanto demandamos que sejam feitas novas alterações normativas, como se o redesenho incessante do ordenamento jurídico fosse capaz de superar, em um passe de mágica, as razões e os conflitos que ensejaram o descompromisso cínico com as regras anteriores.

Modelos importados são defendidos, com pompa, a partir da sua nomenclatura em língua estrangeira e tendem a ser oferecidos como inovações infalíveis, mesmo quando correspondem a previsões vetustas do ordenamento brasileiro, que seguem descumpridas ou falseadas há décadas.

Alguns dos nossos maiores problemas no ciclo orçamentário são indiscutivelmente conhecidos e suas possíveis rotas de equacionamento clamam por debates mais maduros, mas o óbvio, no nosso país, não é fácil. Um exemplo dramático disso reside na lógica de terra arrasada e perda da memória do serviço com a mudança recorrente de comissionados nos níveis tático e estratégico de gestão.

Na iminência do envio do projeto de lei complementar que venha a dispor sobre “regime fiscal sustentável”, precisamos nos despir de ilusões, importações, infantilidades e promessas milagrosas.

Tomar consciência do que já existe no ordenamento vigente e buscar sua consecução tópica, ainda que incremental, tende a ser mais resolutivo e efetivo do que mais um arranjo supostamente globalizante e potencialmente quimérico. Penso ser necessário e pragmaticamente possível resgatar impasses basilares e tentar implementar suas rotas de enfrentamento, por mais óbvias e complexas que elas sejam. A partir do “chão de fábrica” federativo das contas locais e regionais que estudo e observo há mais de duas décadas, trago hoje sugestões pontuais e discretas, que buscam dialogar, tanto quanto possível, com o esforço de extrair consequências dos dados levantados pelo Índice de Efetividade da Gestão Municipal.

O elenco que se segue é sabidamente precário e exploratório para debate sobre o que quase sempre negligenciamos como agenda de implementação normativa no debate fiscal brasileiro, notadamente a partir das realidades municipais:

1) Dimensão do planejamento
Problema: elevado nível de padronização/repetição das leis do ciclo orçamentário, que, por sua vez, amplia a margem para redesenho unilateral pelo Executivo e compromete a qualidade do gasto público;
Sugestão: revisão das contratações de sistemas informatizados que oferecem modelos pasteurizados de planejamento governamental (modelo de negócio análogo a uma espécie de pacote Office da Microsoft para PPA-LDO-LOA), as quais são feitas sem diagnóstico circunstanciado das realidades onde vão se inserir e sem prévia avaliação do estágio de cumprimento do planejamento orçamentário e setorial anterior, em afronta ao artigo 74 da CF/1988.

2) Dimensão fiscal
Problemas: (2.1) falta de avaliação qualitativa da despesa de pessoal, cujo inchaço da folha compromete a possibilidade de se premiar o incremento de produtividade e desempenho e (2.2) desídia na gestão da arrecadação própria;

Sugestões: (2.1) regulamentação da avaliação periódica de desempenho e respectiva aplicação anual, sobretudo para controlar pessoal ocioso e produtividade mínima do serviço público, em consonância com o artigo 94, II, IX e X e o artigo 95, ambos do Decreto-Lei 200/1967 e com o artigo 41 da CF/1988. Bem como (2.2) auditoria sobre (2.2.1) nível de prescrição da dívida ativa municipal, sem que tenha sido buscada sua execução extrajudicial; (2.2.2) renúncias fiscais concedidas por prazo indeterminado, em afronta ao artigo 14 da LRF; (2.2.3) verificação da defasagem monetária da planta de valores dos imóveis para fins de incidência do IPTU, em face da última vez que tal correção ocorreu.

3) Dimensão da educação
Problemas: (3.1) elevado nível de inadimplemento das metas e estratégias do Plano Nacional de Educação, cuja vigência expira em 2024; bem como (3.2) falta de clareza sobre a correção monetária e sobre o objeto da medida compensatória determinada pela Emenda 119/2022 (déficit de aplicação em MDE durante a pandemia), a ser feita até 31/12/2023;

Sugestões: (3.1) monitorar o risco de descumprimento das metas e estratégias do PNE nos municípios, as quais perfazem obrigações legais de fazer que devem orientar substantivamente o conteúdo do dever de gasto mínimo em educação e a aplicação dos recursos do Fundeb. Tal diagnóstico é necessário, para que seja possível contrastar o estágio de inadimplemento da Lei Federal 13.005/2014 em cada município com a existência de gastos discricionários que, em tese, comprometem o alcance do planejamento educacional (a exemplo de gastos em subfunções alheias à atribuição municipal, como ensino médio e superior; gastos com a aquisição de material apostilado, a despeito da gratuidade do Programa Nacional do Livro Didático; gastos com shows e festividades; gastos com “Bolsa Atirador do Tiro de Guerra” (a exemplo da prevista aqui); gastos com comissionados e temporários computados na folha da educação, mas cedidos a outros entes políticos etc). Bem como (3.2) determinar a incidência da correção monetária pelo IPCA em relação à medida compensatória prevista no artigo 119 do ADCT (estimada em 25% no período de dezembro de 2020 a dezembro de 2023) e recomendar que tais recursos sejam direcionados para a expansão das vagas em creches e para a oferta de horário integral nos ensinos infantil e fundamental, o que potencializaria o alcance das metas 1, 5 e 6 do PNE, além de permitir o enfrentamento do elevado estoque de obras paradas e/ou atrasadas na política pública educacional.

4) Dimensão da saúde
Problemas: (4.1) excesso de internações por condições sensíveis à atenção primária à saúde, o que sobrecarrega a demanda por atendimentos hospitalares e em unidades de pronto atendimento, de modo mais oneroso para o erário, sobretudo diante da transição demográfica; (4.2) falta de efetivo levantamento das necessidades de saúde da população e dos riscos epidemiológicos no âmbito das equipes de saúde da família, o que compromete tanto a consistência do planejamento sanitário local, quanto as contratações realizadas pelo poder público (falta de clareza quanto à real demanda local por ações e serviços públicos de saúde leva a contratações supostamente feitas em bloco para objetos sobre os quais os gestores não compreendem quais metas devem ser alcançadas e a que custo); bem como (4.3) fuga ao regime jurídico administrativo nos repasses ao terceiro setor no âmbito do SUS, com as decorrentes frustração do dever de transparência, afronta ao teto remuneratório no serviço público, burla à vedação de nepotismo, quarteirizações ilícitas, falta de controle de custos e resultados com pagamentos por estimativa etc.

Sugestões: (4.1 e 4.2) monitoramento da resolutividade da atenção primária à saúde nos municípios, a partir do enfrentamento das internações por condições sensíveis a esse nível de atendimento no SUS; (4.3) rever o modelo de prestação de contas dos repasses ao terceiro setor da saúde, para que haja a análise consolidada dos recursos por CNPJ beneficiado e não por contrato, convênio ou qualquer outro tipo de ajuste.

5) Dimensão ambiental
Problema: elevado nível de contingenciamento e insuficiente dotação orçamentária das políticas públicas ambientais, em face do reduzido nível de coleta e tratamento de esgoto, destinação adequada de resíduos sólidos, bem como capacidade de prevenção e enfrentamento de desastres naturais;

Sugestão: elaborar painel de monitoramento da emergência climática no território entes políticos, com divulgação periódica do estágio da execução orçamentária e potenciais riscos ambientais decorrentes das ações e omissões municipais correspondentes, tensionando o debate político-orçamentário para que tais ações governamentais passem a compor o anexo de despesas não suscetíveis de contingenciamento das LDOs locais, na forma do artigo 9º, §2º da LRF.

6) Dimensão da cidade
Problema: baixo ganho de escala na execução de serviços públicos locais, sobretudo em termos de duplicidade de gastos em atividades-meio;

Sugestão: diagnosticar boas práticas, sobretudo em relação aos municípios com menos de 5 mil habitantes e instituir premiação dos instrumentos de gestão compartilhada de serviços públicos, a exemplo de consórcios intermunicipais e convênios plurilaterais.

7) Dimensão eGov

Problema: insuficiente compreensão acerca das possibilidades de informatização e automação no serviço público municipal;

Sugestão: elaborar roteiro para fomentar que seja feito diagnóstico local de transição tecnológica, onde o custo de implantação das soluções de informatização não suplante o custo de operação do modelo atual de gestão, tomando como referência para fins de comparação dos custos uma transição que se materialize em até dois exercícios financeiros.

Reitero o aviso de que o rol de apontamentos acima não é exaustivo, tampouco suficiente sequer para constranger nossa cultura normativo-institucional na seara das finanças e das políticas públicas. Visa tão somente trazer reflexões pontuais e discretas, talvez para insistir na óbvia constatação de que, mais do que novas regras, precisamos que sejam cumpridas as já existentes.

Temos estado, na maior parte do tempo, anestesiados e entorpecidos pela cantilena de uma inadiável e imprescindível agenda de reformas supostamente estruturais a serem aprovadas no Congresso, enquanto nos descuidamos de regulamentar e implementar — de fato — dispositivos constitucionais e legais já vigentes.

Há décadas aguardamos, por exemplo, a implementação da avaliação periódica de desempenho de servidores, incentivos fiscais e de programas governamentais. Aludidas avaliações pressupõem monitoramento dos seus respectivos custos e resultados em face das metas financeiras e físicas previstas no correspondente instrumento de planejamento setorial e/ou orçamentário. Leio os artigos 37, §16; 41, §1º, III; 74, I e II, 165, §10 e 16; e 193, todos da Constituição e ali antevejo as noções de “regime fiscal sustentável”, de revisão periódica de gastos (Spending Review) e de formulação teleologicamente coerente da plurianualidade orçamentária (Medium-Term Expenditure Framework), que tanto se busca pautar na agenda nacional.

Todavia, a cada vez que ouço a promessa de um novo “arcabouço fiscal”, temo pela reiteração de pirotecnias e diversionismos, alguns deles até bem intencionados. Regras se superpõem e se esvaziam reciprocamente em termos de força normativa e exigibilidade, como se fossem corroídas por uma inflação legislativa que lhes mitiga a credibilidade. É óbvio constatarmos isso após o acúmulo de regras fiscais descumpridas e burladas no ADCT. Insistentemente vale lembrar, porém, que o óbvio, no Brasil, não é fácil.

Élida Graziane Pinto

Livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP)

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