Possibilidade de extensão de benefícios fiscais na jurisdição constitucional

Breno J. A. Góes Cruz

A possibilidade de o Poder Judiciário estender o alcance de benefícios fiscais para alcançar sujeitos não expressamente abrangidos pelo texto normativo é antiga, e há muito recebe orientação consolidada da Suprema Corte rechaçando a tese, com fundamento, em especial, na necessidade de lei específica (artigo 150, §6 da CF), e no argumento da conformidade funcional, impedindo o Judiciário de atuar como “legislador positivo”, em respeito à separação de Poderes.

O dogma da vedação da atuação como legislador positivo foi reproduzido ao decorrer do tempo, sendo evidenciado, por exemplo, no julgamento do RE 405.579/PA:

“Ementa: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE IMPORTACAO. PNEUS. BENEFÍCIO FISCAL. REDUÇÃO DE 40% DO VALOR DEVIDO NAS OPERAÇÕES REALIZADAS POR MONTADORAS. PEDIDO DE EXTENSÃO A EMPRESA DA ÁREA DE REPOSIÇÃO DE PNEUMÁTICOS POR QUEBRA DA ISONOMIA. IMPOSSIBILIDADE. LEI FEDERAL 10.182/2001. CONSTITUIÇÃO FEDERAL (ARTS. 37 E 150, II). CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL (ART. 111). Sob o pretexto de tornar efetivo o princípio da isonomia tributária, não pode o Poder Judiciário estender benefício fiscal sem que haja previsão legal específica. No caso em exame, a eventual conclusão pela inconstitucionalidade do critério que se entende indevidamente restritivo conduziria à inaplicabilidade integral do benefício fiscal. A extensão do benefício àqueles que não foram expressamente contemplados não poderia ser utilizada para restaurar a igualdade de condições tida por desequilibrada. Precedentes. Recurso extraordinário provido” [1].

O entendimento servia de fundamento para a improcedência de processos de feição subjetiva, conforme caso acima citado, bem como gerava a procedência de ações diretas para que, sob pena de violação à isonomia, fossem extirpados do mundo jurídico os benefícios fiscais, como se deu no julgamento da ADI nº 3.389 [2], na qual foi declarada inconstitucional a redução de base de cálculo para o café industrializado no estado do Rio de Janeiro.

A evolução da jurisdição constitucional, todavia, demonstrou que a completa eliminação de uma determinada lei do ordenamento jurídico nem sempre representa a melhor solução para uma controvérsia constitucional, podendo ser ainda mais prejudicial, a depender do resultado alcançado. Demonstrou ainda que, uma vez chamado a intervir, não poderia o Poder Judiciário se abster do dever de resguardar direitos ameaçados.

Decisões intermediárias
Nesse contexto estão as leis que instituem benefícios fiscais como instrumentos garantidores de direitos fundamentais a determinados sujeitos, mas com a adoção de critério discriminatório inválido, isto é, leis em que a violação da constituição não consta do benefício fiscal em si, mas na restrição de seu alcance, que promove vulneração da isonomia.

Sob esse prisma, conforme destaca a doutrina [3], as chamadas “decisões intermediárias” servem de alternativa para a tradicional declaração de inconstitucionalidade com pronúncia de nulidade, evitando que benefícios válidos sejam declarados nulos, diminuindo o nível de proteção a determinados direitos.

Propondo uma classificação para as decisões intermediárias, Luís Roberto Barroso e Patrícia Perrone Campos Mello destacam duas espécies: as decisões interpretativas e as decisões construtivas (para alguns, denominadas manipulativas).

As decisões interpretativas seriam aquelas em que o significado pode ser extraído do programa normativo da lei, sendo exemplos a interpretação conforme e a declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto.

As decisões construtivas, a seu modo, atribuem aos dispositivos interpretados significados que não decorrem, a princípio, do programa normativo da lei, atribuindo-lhes efeito aditivo (acrescentando possibilidades ao sentido) ou substitutivo (substituindo o sentindo normativo) [4].

É na viabilidade das decisões com conteúdo aditivo que se enquadra a problemática acerca da possibilidade de se estender o alcance de benefícios fiscais para enquadrar sujeitos não expressamente abrangidos pelo texto normativo.

Extensão da isenção de IPI na aquisição de veículos
A questão foi levantada com excelência, e de forma significativa, pelo voto vencido do ministro Gilmar Mendes, no já citado RE 405.579/PA, no qual destacou o ministro:

“Portanto, é possível antever que o Supremo Tribunal Federal acabe por se livrar do vetusto dogma do legislador negativo e se alie à mais progressiva linha jurisprudencial das decisões interpretativas com eficácia aditiva, já adotadas pelas principais Cortes Constitucionais europeias.

Nesse contexto, a assunção de atuação criativa pelo Tribunal poderá ser determinante para a solução de antigos problemas relacionados à inconstitucionalidade por omissão, que muitas vezes causa entraves para a efetivação de direitos e garantias fundamentais assegurados pelo texto constitucional.”

Conforme antevisto pelo ministro, a repercussão de tal posicionamento tem efeitos práticos atuais, que podem ser percebidos nos recentes julgamentos da ADO nº 30 [5] e da ADI nº 5.363 [6].

No julgamento da ADO nº 30, tratou-se de ação visando a extensão da isenção de IPI na aquisição de veículos por deficientes auditivos, uma vez que a Lei 8.989/1995 previa a isenção apenas para deficientes físicos, visuais, mentais e com transtornos do espectro autista.

Apreciando a controvérsia, o STF reconheceu a omissão inconstitucional da Lei 8.989/1995 em relação aos deficientes auditivos, e estabeleceu o prazo de 18 meses para que o Congresso adote as medidas necessárias a suprir a omissão legislativa.

Enquanto perdurar a omissão, determinou a Suprema Corte que deve ser aplicado às pessoas com deficiência auditiva o artigo 1º, inciso IV, da lei, que beneficia com a isenção do tributo pessoas com deficiência física, visual e mental e com transtornos do espectro autista [7].

A isonomia e a dignidade da pessoa humana foram fatores determinantes para a procedência do pedido com atribuição de efeitos aditivos, conforme destacou o ministro relator:

“Visto isso, destaco que, não obstante o Poder Público tenha, por meio do benefício fiscal em análise, implementado as aludidas políticas públicas, ele o fez de maneira incompleta e discriminatória. Afinal, as pessoas com deficiência auditiva não foram incluídas no rol dos beneficiados de tais políticas. E, ao assim proceder, ofendeu não só a isonomia, mas também a dignidade e outros direitos constitucionalmente reconhecidos como essenciais das pessoas com deficiência auditiva.”

Benefícios fiscais para produtos da cesta básica
Por sua vez, no julgamento da ADI nº 5.363, na essência, estava em discussão decretos que regulamentam o ICMS no estado de Minas Gerais, tratando de benefícios fiscais para produtos da cesta básica “desde que produzidos no estado”.

Apreciando a controvérsia, a Suprema Corte, modificando sua postura em relação ao julgamento da ADI nº 3.389, ao invés de declarar a inconstitucionalidade com declaração de nulidade do benefício, por maioria, conheceu parcialmente da ação direta de inconstitucionalidade e, na parte conhecida, julgou procedentes os pedidos formulados, para declarar a inconstitucionalidade das expressões “desde que produzidos no Estado”, bem como para dar interpretação conforme a diversos dispositivos, de modo a afastar qualquer restrição à respectiva aplicação ou aplicação diferenciada baseada na origem dos bens tributados [8].

A ponderação também foi posta como fator determinante para a manutenção do benefício sem a restrição de destinatários, sendo destacado pelo tribunal, que a supressão judicial de restrições inconstitucionais a direitos assegurados na constituição não implica usurpação das funções legislativas ou executivas. No caso, de acordo com o ministro relator Luiz Fux, o benefício era destinado a fomentar operações com a cesta básica, concretizando o direito fundamental à alimentação:

“Não estamos diante de um mero benefício. Ao reduzir a carga tributária da cesta básica, o Estado de Minas Gerais dá densidade ao direito fundamental à alimentação, que inadmite restrições.

Por estarmos diante da proteção a um direito fundamental, não há que se falar em usurpação de competência, nem de atropelo deletério à separação entre os Poderes.

(…)

Mantivéssemos o não conhecimento do pedido, chegaríamos a um dilema nefasto. A violação mais óbvia é que reduziríamos um instrumento de ampliação do direito à alimentação ao interesse puramente arrecadatório do Estado de Minas Gerais. Porém, também estaríamos a afirmar que a única resposta do controle concentrado ao problema seria a extirpação de todo o gasto tributário, de modo a prejudicar a população mais sensível ao custo da cesta básica.”

Viabilidade de decisões com efeito aditivo
Interessante perceber também, ainda no segundo caso, que o ministro relator propôs a substituição da expressão “benefício” por “gasto tributário” [9], fazendo incidir, como consequência, a possibilidade da aplicação de precedentes judiciais que, direcionados à obrigatoriedade na realização de despesas públicas, impõe a atuação do poder público para concretizar direitos fundamentais, sendo citados, como exemplos, a obrigatoriedade de assegurar a matrícula de crianças em creches e o dever de realização de obras emergenciais em estabelecimentos prisionais.

Tal como a renúncia de receitas, a geração de despesas também possui restrições legais e orçamentárias, muitas das vezes relativizadas pela jurisprudência da Suprema Corte em prol de direitos fundamentais. E assim como a jurisprudência evoluiu no trato da imposição de despesas ao poder público, parece caminhar no mesmo sentido para o tratamento das renúncias fiscais destinadas a resguardar direitos com alta densidade normativa, e que visam substituir despesas (gastos tributários).

Nota-se que o enfrentamento nos dois últimos precedentes partiu da percepção de que, nos referidos casos, o “gasto” em questão revelou-se como um mandamento constitucional, e não como uma mera discricionariedade política. E uma vez em jogo a proteção de direitos constitucionalmente previstos, seria possível a atribuição de efeitos aditivos para permitir a extensão de benefícios fiscais.

Desse modo, à luz da jurisdição constitucional contemporânea, o dogma da vedação à atuação do Judiciário como legislador positivo passa a ser revisto, diante da missão institucional da Suprema Corte em concretizar direitos fundamentais constitucionalmente previstos, sendo atualmente viável a existência de decisões com efeito aditivo para a realidade dos benefícios fiscais, observadas as limitações a elas inerentes.

[1] RE: 405579 PR, Relator: Min. JOAQUIM BARBOSA, Data de Julgamento: 01/12/2010, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 04/08/2011)

[2] ADI nº 3984 SC, Relator: LUIZ FUX, Data de Julgamento: 30/08/2019, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 23/09/2019

[3] JONER, Gabriel. Sentenças interpretativas e aditivas: (in)aplicabilidade no âmbito do direito tributário. Revista dos Tribunais. São Paulo, n.975, jan. 2017. Disponível em: https://www.mpsp.mp.br/portal/page/portal/documentacao_e_divulgacao/doc_biblioteca/bibli_servicos_produtos/bibli_boletim/bibli_bol_2006/RTrib_n.975.16.PDF. Acesso em: 21 fev. 2024

[4] BARROSO, L. R.; MELLO, P. P. C. O PAPEL CRIATIVO DOS TRIBUNAIS – TÉCNICAS DE DECISÃO EM CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. Revista da AJURIS – QUALIS A2, [S. l.], v. 46, n. 146, p. 295–334, 2019. Disponível em: https://revistadaajuris.ajuris.org.br/index.php/REVAJURIS/article/view/1049. Acesso em: 21 fev. 2024

[5] ADO nº 30 DF 8622001-74.2015.1.00.0000, Relator: DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 24/08/2020, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 06/10/2020)

[6] ADI nº 5363 MG, Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento: 12/09/2023, Tribunal Pleno, Data de Publicação: PROCESSO ELETRÔNICO DJe-s/n DIVULG 03-10-2023 PUBLIC 04-10-2023)

[7] https://www.conjur.com.br/2020-ago-25/stf-estende-isencao-ipi-automoveis-deficientes-auditivos/

[8] https://www.conjur.com.br/2023-nov-10/douglas-filho-stf-e-beneficio-fiscal-ao-setor-de-leite/

[9] Nas palavras do ministro: “A principal contribuição do conceito especulativo construído pela SRFB é ajustar-se às linhas da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que tomam os objetivos próprios das despesas públicas como parâmetro de identificação. Noutro dizer, os gastos tributários devem atender à mesma racionalidade dos programas e das ações públicas que formam o núcleo das prestações do Estado. É neste ponto que o conteúdo do pacto constitucional assume relevância. Substancialmente e para uma quadra espaço-temporal específica, o pacto constitucional indicará os programas e as ações públicas que o Estado está obrigado a executar, sem margem para disposição pelos titulares da agência pública (do agir ou da ação). Diferentemente, se a norma examinada estiver total ou substancialmente dissociada da finalidade pública, estar-se-á diante de um verdadeiro benefício, dentro ou não do escopo da legalidade. Em conclusão, diante de um gasto tributário autêntico, legítimo, o Estado não pode simplesmente cogitar sua negativa, pois a prestação será obrigatória”.

Breno J. A. Góes Cruz

advogado, especialista em Direito Tributário, com extensão em tributação sobre o Consumo pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet).

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