Por que tributar dividendos?
Edison Fernandes
Com a apresentação do Projeto de Lei n° 2.337/2021 finalmente discute-se com seriedade a tributação dos dividendos. Os argumentos são colocados à mesa e procedem-se aos debates. De maneira contrária à substituição do imposto sobre a renda da pessoa jurídica (IRPJ) pela tributação sobre os rendimentos dos sócios, têm ganhado relevo dois argumentos: o sócio já está sujeito ao imposto sobre a renda de maneira antecipada na pessoa jurídica e a redução do imposto sobre o lucro da pessoa jurídica não gera automaticamente (ou necessariamente) investimento.
Com a finalidade de contribuir com o debate, que deve estar aberto aos diversos argumentos sem qualquer pré-julgamento ou qualificações apriorísticas, quero contrapor ambas as alegações acima.
Em primeiro lugar, o entendimento sobre a pessoa jurídica como projeção, como “longa manus” dos sócios (em última instância, pessoas físicas) possui embasamento teórico (especialmente Milton Friedman: “O único propósito de uma empresa é gerar lucro para os acionistas”). Mas essa teoria hoje não cura todas as dores da economia da empresa. Em contraposição, a teoria institucional da pessoa jurídica conclui que a pessoa jurídica possui uma existência própria independentemente dos seus sócios, com patrimônio próprio e interesse próprio – nem sempre a melhor alternativa para a pessoa jurídica é distribuir todo seu lucro como dividendos, o que coloca em rota de colisão os interessas dela e dos seus sócios.
Em adição a essa visão institucional, o capitalismo de stakeholders (Edward Freeman) sustenta que não é apenas o sócio que interessa à pessoa jurídica, mas todas aquelas pessoas, físicas e jurídicas, que com ela mantêm relacionamento, potencial ou efetivo. Nesse sentido, o propósito da pessoa jurídica é gerar “lucro” para todos os contratantes: sócios, trabalhadores, clientes, fornecedores, financiadores (bancos, por exemplo), governo e sociedade. É nesse terreno que germina e floresce o que hoje conhecemos como fatores ESG (“environment, social and governance”).
Sendo assim, prever a incidência de imposto sobre o lucro da pessoa jurídica implica onerar todos os stakeholders e não apenas os sócios. A redução da última linha da demonstração do resultado (lucro líquido) causada pela tributação impacta não apenas a relação da pessoa jurídica com seus sócios (dividendos), como também com os trabalhadores (PLR), os fornecedores e os financiadores (cláusulas de proteção do crédito) e os clientes (investimento). Portanto, a carga tributária suportada pela pessoa jurídica é distribuída entre todos os contratos em que ela toma parte e é suportada por todos os seus contratantes.
De outro lado, certamente a redução da carga tributária do lucro da pessoa jurídica não é sinônimo de investimento. Essa consequência depende da tomada de decisão dos administradores e até dos sócios. No entanto, da mesma forma, é certo que a redução do imposto sobre o lucro da pessoa jurídica reduz o custo de capital para a realização desse investimento. Se não se trata de uma relação de causa e efeito – redução do imposto, aumento do investimento –, indubitavelmente, trata-se de um instrumento fundamental – redução do imposto, redução do custo de capital.
Em busca de recursos financeiros para investir, a pessoa jurídica tem duas alternativas: capital de terceiros e capital próprio.
Com relação ao capital de terceiros, há medidas previstas na legislação societária para garantia aos credores. Tome-se como exemplo marcante a previsão da reserva legal de lucros, de constituição obrigatória nas sociedades por ações, composta de 5% do lucro do exercício até o limite de 20% do capital social. Havendo imposto sobre o lucro da pessoa jurídica, a reserva legal será onerada por essa carga tributária, sendo necessário um volume maior de resultado positivo (lucro) para concluir o quinto do capital social.
De maneira espontânea (ou seja, sem exigência legal), a pessoa jurídica pode garantir seus credores ainda com a reserva estatutária (ou contratual, no caso das sociedades limitadas). Constituída por parcela do lucro gerado na operação, essa reserva se destina a cumprir as cláusulas de proteção do crédito (conhecidas como covenants) constantes nos contratos de fornecimento de longo prazo ou de empréstimos e financiamentos. Dessa forma, a pessoa jurídica assegura aos seus credores capacidade econômica, como nível de liquidez e nível de endividamento, que sejam determinados para a fixação do prazo ou da taxa de juros. O imposto sobre o lucro da pessoa jurídica onera também essa reserva e a consequente garantia aos credores.
Para não me alongar, termino com comentário sobre a hipótese em que a pessoa jurídica decide expandir sua operação utilizando capital próprio. Para tanto, há previsão legal de retenção dos lucros para investimentos, desde que devidamente aprovado o plano de negócios propostos pela administração da pessoa jurídica (reserva para expansão ou investimento). A tributação do lucro da pessoa jurídica aumenta a necessidade de resultado positivo no fim de cada exercício social para cumprir os investimentos.
Em conclusão: há embasamento teórico para entender a pessoa jurídica como uma continuidade dos sócios. A visão institucional da pessoa jurídica, porém, parece responder melhor aos desafios atuais, além de ser instrumento teórico mais útil ao fomento aos investimentos privados.
Edison Fernandes
Professor doutor da FEA-USP, do CEU-IICS Escola de Direito e da FGV Direito SP, titular da Academia Paulista de Letras Jurídicas