PLP nº 68 e revisão da carga tributária pelo Poder Executivo
Pedro Merheb
A chamada “fórmula de compromisso dilatório”, como cunhada por Carl Schmitt [1], é uma antissolução para tranquilizar o ânimo político em torno de determinada demanda sem que esta seja efetivamente endereçada pelo legislador. Embora vulgar em matérias críticas e de interesse geral, como aquela objeto deste texto, a sua adoção durante o processo de elaboração das leis deve respeitar a primazia do equilíbrio entre os Poderes.
Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputadoscâmara dos deputados reforma tributária
O legislador tributário, quando da apreciação do Projeto de Lei Complementar nº 68, que regulamenta o IVA dual e o imposto seletivo, pela Câmara dos Deputados, cedeu ao apelo para que as proteínas fossem incluídas na cesta básica, tornando-as forçosamente isentas em função da EC nº 132. Certa do impacto sobre a alíquota do IVA, em vez de contornar pelo próprio processo legislativo, a Casa Iniciadora passou a fatura dessa decisão ao presidente da República, que deverá encaminhar projeto de lei complementar destinado à revisão das alíquotas do IBS/CBS quando a soma exceder 26,5%.
No Senado, a determinação foi mantida e pormenorizada pelo relatório do senador Eduardo Braga (artigo 472, §§ 11 e 12, do substitutivo), o qual vai além e estabelece condições formais e materiais a serem observadas pelo Poder Executivo quando da propositura da matéria. Embora precário, posto que a sua inobservância não traz qualquer implicação política ou financeira, o comando em análise traz evidente desconforto político ao governo federal, agora responsável pelas consequências de decisões que não foram suas.
A jurisprudência do STF, porém, empresta pouca simpatia a “soluções” dessa natureza. Quando do julgamento da ADI 4.727/2023, a Corte seguiu a divergência conduzida pelo ministro Gilmar Mendes, [2] o qual ponderou, secundando entendimento adotado em julgados anteriores, que:
a Constituição, ao estabelecer as competências de cada um dos Poderes constituídos, atribuiu ao Chefe do Poder Executivo a função de chefe de governo e de direção superior da Administração Pública (CF, art. 84, II), o que significa, ao fim e ao cabo, a definição, por meio de critérios de conveniência e oportunidade, de metas e modos de execução dos objetivos legalmente traçados e em observância às limitações financeiras do Estado. Por esse motivo, a tentativa do Poder Legislativo de impor prazo ao Poder Executivo quanto ao dever regulamentar que lhe é originalmente atribuído pelo texto constitucional sem qualquer restrição temporal, viola o art. 2º da Constituição.
Iniciativa do Legislativo não teria inconstitucionalidade
A técnica em comento, ordinariamente articulada sob a forma de “nos termos da lei” no inventário da nossa legislação simbólica, não é inédita no trato da reforma tributária. A reforma da tributação da folha de salários, uma reivindicação compartilhada por todo o corpo parlamentar que milita pelo setor produtivo, foi enfrentada pela EC nº 132 como uma determinação para que o Poder Executivo encaminhasse um projeto com esse fito em até 90 dias (artigo 18, III). Como a prioridade tendia pela regulamentação do IVA dual, do imposto seletivo e do Comitê Gestor do IBS, o dispositivo em questão não trouxe maiores dissabores desde a promulgação da Emenda.
Há quem entenda que a obrigação introduzida pelo Poder Legislativo não ostenta inconstitucionalidade, visto que a iniciativa de matéria tributária não é privativa ao chefe do Poder Executivo e que o julgado trazido se refere apenas ao exercício do poder regulamentar. Mas fato é que a inovação parlamentar em tela outorga ao Poder Executivo a propositura de as medidas para atenuar a carga tributária exponenciada justamente pelas alterações promovidas pelo Congresso Nacional ao longo da tramitação.
A procrastinação normativa na forma como intentada pelo Congresso tem sua validade desafiada pelo equilíbrio entre os Poderes, de modo que não seria despropositada a aposição de veto ou impugnação em controle abstrato de constitucionalidade por parte do presidente da República.
[1] SCHMITT, Carl. Teologia política. Tradução de Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
[2] STF. ADI 4727, Rel. Min. Edson Fachin. Relator(a) p/ Acórdão: Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, j. 23-02-2023,
Pedro Merheb
é advogado e membro do Grupo de Trabalho nº 7 sobre acompanhamento legislativo da Comissão Extraordinária da Reforma Tributária da OAB/DF.