Parcelamentos podem ser armadilhas se incluirmos neles o que não devemos

Raul Haidar

“Se a pressa é inimiga da perfeição, no
exercício do Direito é a inimiga da prescrição.”
(Jean Carcagne)

O projeto de lei que resulta da conversão da Medida Provisória 766/17 institui o Programa de Regularização Tributária (PRT) perante a Secretaria da Receita Federal, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a Procuradoria-Geral Federal, autarquias e fundações públicas federais. Trata, ainda, de outras questões específicas que, a rigor, deveriam ser reguladas pela legislação ordinária.

Já tivemos oportunidade de, em coluna anterior, questionar a inobservância de regras constitucionais quando medidas provisórias ignoram as normas impostas pela nossa lei maior.

Ao observarmos com atenção o texto final apresentado pelo relator, vemos que algumas das alterações atingem o Código Tributário Nacional e o Código de Processo Civil, o que é vedado pelo parágrafo 1º do artigo 62 da Constituição Federal.

Em 19 de setembro de 2016, escrevemos, nesta coluna, que o “Brasil precisa urgentemente de uma ampla renegociação tributária”. Daquele texto, pedimos licença aos leitores para destacar sua conclusão:

“Nossa economia precisa recuperar-se, e uma ampla renegociação tributária é um instrumento adequado para isso. Precisamos adotar uma política de pacificação não apenas na área política, mas principalmente no campo econômico e tributário. Sem isso, ficaremos o resto deste século procurando culpados pelos nossos problemas. O que precisamos não é encontrar os culpados, mas as soluções”.

A Medida Provisória 766 foi publicada em 5 de janeiro de 2017, data em que entrou em vigor. Em princípio, representa a “ampla renegociação tributária” com que sonhávamos e vem com “um instrumento adequado” para sua implementação. Todavia, ainda depende de “regulamentação”.

O artigo 13 do texto apresentado pelo Senado é idêntico ao original que se vê na MP e diz:

“Art. 13. A Secretaria da Receita Federal do Brasil, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, as autarquias, fundações públicas e a Advocacia-Geral da União, no âmbito de suas competências, editarão os atos necessários à execução dos procedimentos previstos nesta Lei”.

Como é público e notório, burocratas da administração fazendária e demais servidores públicos possuem o hábito de alterar, ampliar ou restringir o alcance de normas legais, quando as deveriam apenas regulamentar ou editar atos necessários à sua execução, tornando-as mais simples e práticas.

Contribuintes vítimas dessa situação sofrem com tais dificuldades, que muitas vezes os obrigam a contratar profissionais especializados (contadores ou advogados) para resolvê-las, ocasionando despesas que deveriam inexistir.

Mas a grande questão que pode criar prejuízo e ilegalidade está no artigo 5º da MP aqui examinada:

“Art. 5º Para incluir no PRT débitos que se encontrem em discussão administrativa ou judicial, o sujeito passivo deverá desistir previamente das impugnações ou dos recursos administrativos e das ações judiciais que tenham por objeto os débitos que serão quitados, e renunciar a quaisquer alegações de direito sobre as quais se fundem as referidas impugnações e recursos ou ações judiciais, e protocolar, no caso de ações judiciais, requerimento de extinção do processo com resolução do mérito, nos termos da alínea “c” do inciso III do caput do art. 487 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil”.

Tal artigo pretende que, ao ingressar com o parcelamento agora pleiteado, fique o contribuinte totalmente impedido de continuar questionando, no Judiciário ou nos órgãos julgadores administrativos, débitos pretéritos que repute indevidos.

Esta coluna destina-se a divulgar princípios da verdadeira “Justiça Tributária”. Jamais sugerimos que o contribuinte deixasse de cumprir suas obrigações ou recolher o tributo devido. Em diversas oportunidades, invocamos a singela definição de Justiça: dar a cada um o que é seu.

Hoje trouxemos o trecho da conclusão de nossa coluna de 19 de setembro de 2016, em que assinalamos a necessidade de uma “ampla renegociação tributária”.

Não se pode admitir que alguém deva pagar dívida que não exista, seja ilegal ou flagrantemente injusta, contrariando farta jurisprudência, para que possa exercer o direito de pagar outra em condições mais favoráveis.

Os Poderes da República representam o povo, mas o verdadeiro poder a este pertence, como ordena nossa Constituição. Em praça pública, próximo da morte, nosso saudoso colega Sobral Pinto[1] bradou: “Todo poder emana do povo e em seu nome deve ser exercido”.

Muitas vezes, o suposto débito inexiste, embora ainda permaneça “exigível” nos registros legais. Exemplo dessa situação foi noticiado na ConJur, em 14 de julho de 2015, com o título Execução que ficou 12 anos parada é arquivada por prescrição intercorrente.

Note-se que os processos administrativos também permanecem sem julgamento além do prazo de 360 dias previsto em lei para que se resolvam.

Não podemos nos esquecer jamais que, acima de medidas provisórias e quaisquer outras leis ou normas, nosso mandamento maior em matéria legal é a Constituição. O artigo 5º, II é muito claro: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Tal clareza também alcança os demais incisos do mesmo artigo, que tratam do direito de apreciação pelo Poder Judiciário para proteção judicial de lesão ou ameaça a direito, direito adquirido, duração razoável do processo etc.

Registre-se, por oportuno, que propostas de negociação aparentemente generosas podem esconder verdadeiras armadilhas, sempre em prejuízo do suposto devedor, cuja dívida ou não existe ou está ilegalmente exagerada.

Isso é praticado com enorme frequência por instituições financeiras e empresas de grande porte, inclusive concessionárias de serviços públicos.

Em nossa coluna de 1º de agosto de 2016, sobre dívida ativa, comentamos ato explícito de ilegalidade, no caso cometido por um banco:

“…pessoa física recebeu mensagem de um escritório de advocacia onde se informava a existência de uma dívida de mais de R$ 900 mil da empresa da qual fora sócio. O credor era um banco incorporado por outro que, por sua vez, cedera o crédito a uma empresa de cobrança que o escritório representava. O suposto cessionário do crédito estava disposto a conceder um desconto de 90% da dívida. Isso seria bom se a dívida ainda existisse, pois estava ela prescrita, já que vencida há mais de 20 anos! Ainda bem que o comerciante teve a boa ideia de consultar um advogado de sua confiança antes de prosseguir na negociação”.

Como o primeiro escritório não conseguiu receber, outro advogado fez a mesma tentativa, novamente repelida. Recentemente, esse mesmo banco teve que ser acionado na Justiça por exigir dívida imobiliária quitada há mais de 15 anos. A sentença lhe foi contrária, mas dela apelou, apenas para aumentar as perdas de seu ex-cliente. Os advogados poderão sofrer representação perante o Tribunal de Ética da OAB por infração ao artigo 34, VI do Estatuto. O ex-cliente (agora vítima) do banco ainda está no prejuízo. E, mesmo assim, o Judiciário insiste em conciliações que só adiam a solução do caso e viabilizam “acordos” que tangenciam as raias da criminalidade.

Entendemos que os contribuintes devem se preparar para aderir a esse programa de parcelamento, conforme suas necessidades. Afinal, tributos devem ser pagos, em nome do bem comum. Mas devemos ter muito cuidado com parcelamentos, e não incluir neles o que não devemos. Afinal, o que parece ser bom não precisa se transformar em armadilha.

[1] A OAB-SP pediu alteração do nome da Rua Taguá, na Liberdade, para Rua Advogado Sobral Pinto para o prefeito Kassab. Mudar nome de rua é prerrogativa do Prefeito, conforme artigo 70 da Lei Orgânica da Capital. Há precedentes. Exemplo: trecho da Rua Turiassu para Rua Mancha Verde. Ver nossas colunas de 06/11/2004, 04/11/2005, 06/11/2006 e 11/08/2007.

Raul Haidar

Jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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