Para haver desoneração de ISS, Parecer SF 2 exige
Roberto Duque Estrada
Rio de Janeiro, 21 de abril de 2016. Ressaca. Pelas 11h30, voltava do Santos Dummont depois de deixar minha filha, que tinha ido para São Paulo visitar a madrinha. Distraidamente, acabei seguindo por Copacabana e, esquecido do feriado, me vi enfrentando um trânsito pesado, propício à reflexão. A semana que começou no domingo com a votação favorável à abertura do processo de impeachment seguiu com um travo amargo pela tristeza da imagem refletida no espelho de um país que andou para trás. Somos “filhos da Revolução, burgueses sem religião, (já fui) futuro da nação, geração Coca-Cola” que nos anos de escola vivíamos intensamente essa semana de abril: Dia do índio (19/4), Tiradentes (21/4) e o Descobrimento do Brasil (22/4). Hoje sobrou um Tiradentes “meia-boca” e, aqui em terras cariocas, São Jorge (23/4) venceu Cabral. Porém, na semana cívica, o que se assistiu no Rio de Janeiro foi a um espetáculo de incompetência das autoridades municipais. O mar derrubou a ciclovia da Avenida Niemeyer como quem diz: “Seus tolos, parece que não conhecem os humores do Atlântico”. Já era duvidosa a construção de uma ciclovia em uma escarpa tão perigosa, qualquer queda seria fatal. Num dia de mar revolto, a interdição do caminho teria sido o mínimo a ser feito. No entanto, nada foi feito. A construção frágil foi lambida pelas ondas, e duas pessoas morreram. O dia prosseguiu triste, indo a dois velórios: de gente doente, parente distante da minha mulher, e de gente jovem, mulher de um de nossos melhores juristas. O sol brilhava forte, e a beleza daquele dia quente de céu muito azul contrastava com o cinza de nosso estado de espírito.
Passado o triste feriado, qual surpresa não nos revela o poder público, incansável em abrir frentes de batalha contra os contribuintes. Dessa vez, foi o município de São Paulo, que teve a ousadia de, por meio de um mero parecer normativo — o Parecer SF 2, de 26 de abril de 2016 —, propor um conceito absolutamente equivocado de resultado da prestação do serviço, que acaba por eliminar a exoneração do ISS nas exportações de serviços, exoneração essa prevista em lei complementar justamente para dar cumprimento a comando constitucional.
Com efeito, a sistemática de tributação pelo ISS das prestações internacionais de serviços foi inovada pela Lei Complementar 116/03, que deu execução ao artigo 156, parágrafo 3º, II da Constituição pela Emenda Constitucional 3, de 18 de março de 1993, segundo o qual:
Parágrafo 3º. Em relação ao imposto previsto no inciso III do caput deste artigo, cabe à lei complementar: (…)
II – excluir da sua incidência exportações de serviços para o exterior.
A Lei Complementar 116/03 veio tratar da tributação das prestações internacionais de serviços nos artigos 1º (importação) e 2º, I e parágrafo único (exportação), nos seguintes termos:
Artigo 1º. O Imposto Sobre serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador.
Parágrafo 1º. O imposto incide também sobre o serviço proveniente do exterior do País ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior no País.
Artigo 2º. O imposto não incide sobre:
I – as exportações de serviços para o exterior do País; (…)
Parágrafo único. Não se enquadram no disposto no inciso I os serviços desenvolvidos no Brasil, cujo resultado aqui se verifique, ainda que o pagamento seja feito por residente no exterior.
A Lei Complementar 116/03, ao dar eficácia ao comando constitucional acima citado, consagrou de forma inequívoca o princípio do destino (Bestimmungsland-Prinzip) em matéria de ISS, segundo o qual as importações de serviços são tributadas, e as exportações, exoneradas de tributação[1].
Referido princípio já era adotado no Brasil (em obediência, aliás, ao artigo XVI do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio – GATT), em matéria de IPI e de ICMS que não incidem sobre produtos industrializados, mercadorias e serviços (sujeitos ao ICMS) destinados ao exterior, por força de imunidade constitucional (artigo 153, parágrafo 3º, III, e artigo 155, parágrafo 2º, X “a”). Simetricamente, o artigo 155, parágrafo 2º, IX “a” estabelece que o ICMS incidirá sobre a entrada de mercadoria importada do exterior e sobre serviços prestados no exterior, sujeitos à incidência do ICMS. O mesmo se diga do IPI, por força do artigo 46, I do CTN.
As inovações da Lei Complementar 116/03 no domínio das prestações internacionais de serviços foram assim esclarecidas pela professora Misabel Abreu Machado Derzi:
A Lei Complementar 116/03 altera para melhor o citado Decreto-lei, exonerando as exportações e fazendo incidir o imposto nas importações de serviços. Como sabemos, em mercados não integrados, adota-se o princípio do destino. A Lei Complementar 116/2003, nessa parte, foi correta. Manteve o princípio do destino nas prestações de serviço internacionais. Ela exonera totalmente do ISS as exportações, submetendo as importações à incidência do tributo, para isso elegendo a competência do Município onde se localizar o estabelecimento do tomador. Crescendo a mundialização e surgindo novas formas de prestações de serviços (como o comércio eletrônico), é necessário estabelecer um tratamento equânime, em que sejam os serviços importados sujeitados aos mesmos tributos que incidem sobre a prestação dos serviços nacionais. Como se sabe, a incidência do ISS nas importações de serviços não tem nenhum objetivo protecionista, mas é fenômeno necessário de isonomia e de equidade, nos mercados não completamente integrados. É que a tendência universal adotada no mercado internacional é aquela de desoneração das exportações, de tal modo que os produtos e serviços exportados chegam ao país do destino livres de todo imposto. Seria agressivo à regra da livre concorrência e aos interesses nacionais pôr em posição desfavorável a prestação de serviços nacionais, que sofrem a incidência do ISS[2].
Pois bem. Nos termos da Lei Complementar 116/03, apenas serão suscetíveis de tributação no Brasil as exportações de serviços desenvolvidos no Brasil cujo resultado aqui se verifique.
Evidentemente, essa expressão deve ser interpretada em sentido que dê eficácia ao comando constitucional (artigo 156, II, parágrafo 3º) que conferiu à lei complementar a atribuição de consagrar, também em matéria de ISS, o princípio do país de destino, segundo o qual o bem ou serviço deve submeter-se à tributação no local onde ele é consumido, e não no local onde é produzido[3].
Por isso que, sendo interpretada à luz do princípio do destino, a expressão “cujo resultado aqui se verifique” só pode ser entendida como se referindo ao local onde se verifica o respectivo consumo ou utilização do bem imaterial em que o serviço se traduz[4]. E tal local é precisamente o local onde é satisfeita a necessidade que levou o tomador do serviço a proceder à respectiva contratação.
Interpretação distinta, no sentido de considerar que resultado do serviço respeita à “conclusão” de sua execução, conduziria ao absurdo de só poder haver exportação de serviços se houvesse a concomitante “exportação do exportador”[5].
E foi precisamente essa interpretação, que escapa à razoabilidade, a adotada pelo Fisco paulistano no malfadado Parecer Normativo SF 2/2016, que assim dispõe:
Artigo 1º. Considera-se “resultado”, para fins do disposto no parágrafo único do artigo 2º da Lei 13.701, de 24 de dezembro de 2003, a própria realização da atividade descrita na lista de serviços do artigo 1º da Lei 13.701, de 24 de dezembro de 2003, sendo irrelevante que eventuais benefícios ou decorrências oriundas dessa atividade sejam fruídos ou verificados no exterior ou por residente no exterior.
Parágrafo 1º. O resultado aqui se verifica quando a atividade descrita na referida Lista de Serviços se realiza no Brasil.
Parágrafo 2º. Não se considera exportação de serviço a mera entrega do produto dele decorrente, tais como relatórios ou comunicações, bem como procedimentos isolados realizados no exterior que não configurem efetiva prestação dos serviços no território estrangeiro.
Parágrafo 3º. No caso de serviços de duração continuada, considera-se proporcionalmente realizada a prestação dos serviços com o cumprimento da sua etapa mensal. (grifos nossos)
Registre-se que as disposições citadas da Lei municipal 13.701/2003 têm redação idêntica na Lei Complementar 116/03 e que, por conseguinte, para o Fisco paulistano, apenas haveria desoneração dos serviços que fossem “concluídos” no exterior, o que envolveria, necessariamente, a deslocação do prestador dos serviços para o exterior, a “exportação do exportador”. Por outras palavras, a não incidência apenas se aplicaria às hipóteses em que, ao menos a fase conclusiva da prestação dos serviços, se realizasse no exterior. Porém, mesmo assim, se essa fase conclusiva se limitar à entrega de relatórios ou comunicações, também não haverá espaço para desoneração, como afirma o parágrafo 2º acima transcrito.
Em todas as outras circunstâncias, em que o prestador dos serviços desenvolva e conclua suas atividades no Brasil, os serviços serão tributados, o que configura claríssima afronta à diretriz constitucional do princípio do destino, dada à marginalidade das situações em que a não incidência poderia operar.
Tenha-se presente que no plano dos tributos federais, em que vigora semelhante exoneração em sede de PIS/Cofins, a lei é clara em exonerar incondicionalmente as exportações de mercadorias e, no que concerne aos serviços, exonerá-las sempre que o pagamento represente ingresso de divisas (artigo 5º, I e II da Lei 10.637/02 e artigo 6º, I e II da Lei 10.833/03). Semelhante solução deveria ser adotada também no plano do ISS, o que traria sem sombra de dúvida maior segurança jurídica para os contribuintes.
A jurisprudência dos tribunais superiores nesses 13 anos de vigência da Lei Complementar 116/03 é bastante escassa sobre o tema, e o único precedente do Superior Tribunal de Justiça — o Recurso Especial 831.124/RJ — adotou, por maioria de votos, e à luz de peculiaridades do caso concreto, a teoria da conclusão do serviço em território nacional, mesma sustentada pelo Fisco paulistano.
Trata-se, porém, de um julgado do ano de 2006, que, com a devida vênia, analisou a questão de uma forma simplista, sem mais reflexões sobre suas consequências e contradições com a diretriz constitucional. Reflexões que, ao contrário, foram bem traçadas pelo ministro Teori Zavascki, agora no Supremo Tribunal Federal, em seu voto vencido, in verbis:
Como diz o eminente Ministro Relator, a questão toda é saber o que é o resultado.
Penso que não se pode confundir resultado da prestação de serviço com conclusão do serviço.
Não há dúvida nenhuma que o serviço é iniciado e concluído aqui. Não há dúvida nenhuma que o teste na turbina faz parte do serviço. O fato de ser testado aqui foi o fundamento adotado pelo juiz de Primeiro Grau e pelo Tribunal para dizer que o teste é o resultado. Mas essa conclusão não é correta: o teste faz parte do serviço e o serviço é concluído depois do teste. Depois disso, a turbina é enviada ao tomador do serviço, que a instala no avião, quando então, se verificará o resultado do serviço. O resultado, para mim, não pode se confundir com conclusão do serviço. Portanto, o serviço é concluído no País, mas o resultado é verificado no exterior, após a turbina ser instalada no avião. (grifos nossos)
A orientação adotada pelo ministro Teori Zavascki, a nosso ver, é a que melhor se adequa à diretriz constitucional, pois se trata de uma verdadeira interpretação em conformidade com a Constituição na sua dimensão de princípio da prevalência da constituição, o qual “(…) impõe que, dentre as várias possibilidades de interpretação, só deve escolher-se uma interpretação não contrária ao texto e programa da norma ou normas constitucionais”[6].
Ora, é evidente que ao adotar o princípio do país do destino em sede de ISS, tal como já sucedia com o ICMS, o IPI, e mesmo com o PIS/Cofins, a Constituição quis unificar o tratamento dos impostos sobre o consumo de mercadorias e serviços, assegurando também no domínio do ISS uma plena desoneração de todos os casos em que consumo ou utilização ocorram em território distinto daquele onde se fez a produção econômica do bem imaterial em que o serviço consiste, ou seja, no território do destino.
Interpretar de forma diversa seria tornar inócua a desoneração, em prejuízo ao exportador nacional, que, com o perdão do trocadilho uma vez mais, deveria ser “exportado” para não ser tributado.
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Finalmente se foi o mês de abril, mês em que o país ficou paralisado à espera de uma saída institucional, “pagando para ver” se de fato são sólidas as instituições e que a solução constitucional para dar um ponto final à irresponsabilidade na gestão da coisa pública iria funcionar. Parece que está funcionando. Tudo indica que nos próximos dias teremos um novo governo e uma oportunidade de recomeçar, ainda que com atores já bastante conhecidos. Que venham dias de paz, sem agressões, cuspes e elogios a torturadores, que se dê um basta a tanta degradação.
[1] Cfr. Heleno Taveira Tôrres, Prestações de serviços provenientes do exterior ou cuja prestação se tenha iniciado no exterior, in O ISS na Lei Complementar nº 116/2003 e na Constituição, p. 280 ss. Coleção de Direito Tributário, Série Barão de Ramalho, IASP, vol. 2 (Coord. Heleno Taveira Tôrres).
[2] Cfr. O aspecto espacial do Imposto Municipal sobre Serviços de Qualquer Natureza, p. 67-68, in O ISS na Lei Complementar n.º 116/2003 e na Constituição, cit.
[3] Essa é a opinião de Gustavo Brigagão em coluna publicada aqui na ConJur. http://www.conjur.com.br/2013-jul-31/consultor-tributario-iss-nao-incide-exportacao-servicos.
[4] Nesse exato sentido, veja-se João Luiz Coelho da Rocha: “Nesse critério da LC 116, a utilidade do serviço deve ser desfrutada no exterior do Brasil, para que sua receita seja dispensada do ISSQN, não bastando para qualificar a exportação isenta o fato de ser pago com valores remetidos para o Brasil”, cfr. O novo trato legal do imposto sobre serviços e os problemas que permanecem in Revista Dialética de Direito Tributário 99, 81. Parece-nos chegarem a conclusão análoga Gabriel Lacerda Troianelli e Juliana Gueiros, quando afirmam que “para que haja efetiva exportação do serviço desenvolvido no Brasil, ele não poderá aqui ter consequências ou produzir efeitos. A contrário senso, os efeitos decorrentes dos serviços exportados devem ser produzir em qualquer outro país que não o Brasil”, cfr. O ISS e a exportação e importação de serviços, in ISS – Lei Complementar 116/2003, Marcelo Magalhães Peixoto e Ives Gandra da Silva Martins (org.), Curitiba 2004, 201.
[5] Expressão cunhada por Alberto Xavier em parecer não publicado.
[6] Cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição (7ª ed.), Coimbra, 2003, 1226-1227.
Roberto Duque Estrada
Advogado no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Sócio do escritório Xavier, Duque Estrada, Emery, Denardi Advogados