Panorama constitucional da persistente regressividade tributária

Guilherme Magalhães de Brito

A reforma tributária (PEC 110/2019) está para ser votada pelo Senado e, por isso, vale ressaltar seus maiores trunfos e inovações, por meio de uma análise constitucional e de direitos humanos, com destaque para a tentativa louvável de combater o persistente problema da regressividade no Direito Tributário brasileiro.

Ao contrário do que muitos possam imaginar, o Direito Tributário, em especial a face pública dessas relações, tem um papel muito maior do que arrecadatório. Resta claro na doutrina do Direito Tributário seu caráter indutor, ou seja, através da tributação, pretendem-se e, por conseguinte, alcançam-se efeitos extrafiscais de diversas dimensões. Assim, desde seletividade no tocante aos produtos industrializados (IPI) ou a flexibilidade na majoração e redução de alíquotas de impostos de aduaneiros como o imposto de importação (II) e o imposto de exportação (IE), é fato que há muito mais um teor político-democrático de manutenção da soberania brasileira relacionada com essa arrecadação do que apenas a arrecadação em si.

Essa realidade acaba sendo de extrema importância quando se observa o caráter dirigente da CRFB/88 e, ainda, a presença de diversas disposições sobre direitos sociais e ideais de igualdade a serem alcançados, sendo esses a própria base para todo o ordenamento, haja vista o artigo 1º da CRFB/88 na sistemática de seus incisos e, posteriormente, no artigo 5º e todas as outras disposições que, em conjunto, zelam pela redução das desigualdades [1], por uma sociedade mais justa, inclusiva e equitativa.

Antes de qualquer análise desse produto é essencial entender seu substrato, ou seja, não podemos partir de uma análise tópica da palavra de lei, mas sim entendê-la como o sistema que é. Por conta disso, é necessário que se reitere que, tendo como base princípios de igualdade, inclusão e solidariedade, a Constituição não pode ser contrariada por nenhum de seus instrumentos de atuação, independentemente de sua natureza. Sendo assim, reconhecendo esse caráter sistemático, entende-se que todo instituto do direito tem, em seu ramo específico de atuação, a responsabilidade de fazer valer os pressupostos constitucionais dentro de suas limitações.

No Direito Tributário, no que tange às desigualdades sociais, há a atuação mais expressiva do supracitado, já que o Brasil adota o modelo político-econômico capitalista, que tem em seu cerne as relações econômicas e as manifestações da renda que são o próprio objeto do Direito Tributário (dão origem aos mais diversos fatos geradores). Faço uma interrupção aqui para ressaltar que, no ordenamento jurídico brasileiro, há apenas alguns institutos que têm um impacto tão concreto e imediato na sociedade, dois exemplos são o Direito Tributário e o Direito Penal, por isso, ambos os citados têm um estrito vínculo com a legalidade, contudo, o primeiro instituto tem como fundamento a justiça distributiva, enquanto o segundo a justiça retributiva. Essa diferença é importante, afinal, mostra que a boa atuação do aplicador do direito tributário pode significar o acesso aos princípios constitucionais de igualdade, solidariedade e justiça de uma forma antecipada e, por isso, menos onerosa para os indivíduos que são sujeitos dessas relações.

Destaco aqui que ambos os ramos jurídicos são de extrema relevância e devem ser tratados com a maior celeridade dentro de suas peculiaridades e formas de atuação. No entanto, concluo o ponto de que o Direito Tributário é uma ferramenta eficaz, rápida e preventiva para diminuir as desigualdades e promover uma sociedade com todos as características almejadas pela CRFB/88.

Dito isso, é indiscutível a persistência da regressividade no Direito Tributário brasileiro. Para aqueles que não são familiarizados, a regressividade é a antítese da progressividade no ordenamento jurídico brasileiro, sendo assim, enquanto a progressividade trata “igualmente os iguais e desigualmente os desiguais” na medida de suas desigualdades (em conformidade com a CRFB/88), a regressividade não faz essa distinção, ao passo de que o tributo se torna mais oneroso para aquele que tem menos capacidade contributiva e menos oneroso para aquele que tem maior capacidade contributiva.

Isso ocorre, pois, o Brasil, assim como outros países menos desenvolvidos, adota a “tributação disfarçada”, pois faz o cálculo por dentro de impostos indiretos, principalmente aqueles sobre produtos e serviços e mantém o papel prioritário desses impostos no ordenamento. A título de exemplo, segundo matéria do Istoé [2] o ICMS (Imposto sobre Consumo de Mercadorias e Serviços) bateu a marca de 86% da arrecadação dos Estados em 2021, parcela assustadora da arrecadação pública.

Sendo assim, podemos perceber o seguinte panorama. Se o indivíduo A ganha R$ 100 mil, enquanto o indivíduo B ganha R$ 1 mil, se A consumir R$ 10 mil estará tendo 10% de sua renda sujeita a tributação, enquanto B, caso gaste R$ 500 reais, estará tendo 50% de sua renda sujeita a tributação. Dessa maneira, mesmo que o IR (Imposto de Renda) seja progressivo e os impostos como IPI e ICMS seletivos, a importância dos impostos sobre consumo é tão expressiva que o ônus tributário do mais pobre supera o do mais rico. O professor Luís Eduardo Schoueri, em seu excelente livro “Direito Tributário” [3], cita o trabalho de pesquisa da professora Maria Helena Zockun [4], esse que foi feito com dados de 2002/2003 e chegou na seguinte conclusão gráfica do sistema tributário brasileiro:

Vê-se, portanto, o exatamente o que foi dito, quanto mais pobre o indivíduo é, mais ele sofrerá com o ônus tributário total. Essa regressividadade é a maior ofensa que o Direito Tributário poderia fazer ao cidadão e à CRFB/88 e persiste no nosso ordenamento desde que o Direito Tributário se organizou nessa métrica, ou seja, são décadas que o Direito Tributário está sendo usado no efeito contrário do que deveria ser, ao passo que corrobora com desigualdades ao invés de extinguí-las.

Faço aqui algumas ressalvas. Primeiramente, com esse aumento das alíquotas de ICMS e essa solidificação dos tributos sobre consumo como centro do Direito Tributário brasileiro, essa realidade se agravou ainda mais e, certamente, os dados trazidos pela professora são ainda mais chocantes hoje em dia, quase 20 anos depois. Outra coisa é que, como já foi referenciado, países mais desenvolvidos tendem a tributar a renda com mais severidade, concentrando a tributação nesse único imposto. Não é o caso de países menos desenvolvidos, esses que optam por tributar o consumo, fato que causa esse tipo de distorção, como a regressividade. Por conta disso, muitos acadêmicos acreditavam que a saída dessa problemática seria a inversão de prioridade, fazendo do imposto de renda mais ativo e os impostos sobre consumo subsidiários e, a partir daí, tributar de forma mais intensa a renda dentro de seu regime progressivo.

A própria professora Maria Helena Zockun afirmou o seguinte: “O Brasil precisa não é de uma reforma tributária, mas de uma mudança no sistema tributário. Algo muito mais profundo que devolva a ele aquilo que a teoria econômica recomenda para um sistema racional”.

Com isso, já sabemos com antecedência que a reforma tributária, mesmo que contemple diversos problemas do ordenamento tributário não será capaz de atingir essas demandas em seu núcleo da forma mais efetiva possível. Porém, só o fato de existir esse progresso já é um indicativo que esse panorama pode ser alterado e que está no caminho de ser.

Sobre a reforma em si, a PEC 110/2019 propõe, em linhas gerais, as seguintes mudanças. A priori, pretende fundir os impostos sobre consumo na Contribuição Social Sobre Bens e Serviços (CBS) que utiliza a mesma lógica de tributar o valor agregado na operação — é inspirado no IVA (Imposto sobre Valor Agregado) que outros países já adotaram — a fim de simplificar a tributação, tanto para o erário quanto para o contribuinte. Além disso, pretende aumentar as faixas de isenção do Imposto de Renda, além de fazer alterações dos valores na tabela do imposto.

Essas mudanças em si já são produtivas, um sistema tributário mais simples e coeso corrobora com a igualdade e transparência das finanças públicas e do próprio orçamento público, além de poupar o contribuinte de diversas obrigações tributárias anexas e toda burocracia nelas envolvida. Mas, o que realmente brilha nessa proposta de emenda constitucional é a seguinte passagem:

“Artigo 146 — Cabe à Lei Complementar […]

IV – definir os critérios e a forma pela qual poderá ser realizada a devolução de tributos incidentes sobre bens e serviços adquiridos por famílias de baixa renda” [5].

O inciso IV foi emendado na proposta com a finalidade de findar com a regressividade no Direito Tributário brasileiro, visto que os valores tributados pela nova CBS poderiam ser restituídos, mediante disposição de lei complementar, para os contribuintes de baixa renda. Essa medida é interessante, pois abre ao legislador uma possibilidade imensa de métodos de restituição — principalmente com o advento das novas tecnologias — que, definitivamente, ajudarão a, no mínimo, minimizar esse problema histórico no nosso ordenamento e sociedade.

Claramente, tal proposta não é a reestruturação pretendida pela professora Maria Helena e, certamente, não é a saída ideal do problema, contudo, contempla uma realidade que foi ignorada por décadas e faz o Direito Tributário atuar da forma que melhor o faz, promovendo a igualdade social, a justiça e a solidariedade, além de conciliar a cultura nacional de tributação do consumo (não faz nenhuma mudança radical) com a necessidade de extinção dessa regressividade. Que esse seja o primeiro passo de muitos e que, finalmente, o Direito Tributário possa cumprir esse grande papel indutor das bases constitucionais, em busca de um direito mais equitativo e realmente justo.

REFERÊNCIAS
[1] Brasil. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 1/6/2022.
[2] Istoé, “Com altas da luz e da gasolina, arrecadação do ICMS bate recorde”, 2 de fevereiro de 2022. Disponível em https://www.istoedinheiro.com.br/com-altas-da-luz-e-da-gasolina-arrecadacao-do-icms-bate-recorde/. Acesso em 1/6/2022.
[3] SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito tributário. 11ª ed. São Paulo: Saraiva, 2022. 958p. ISBN 9788547223403.
[4] ZOCKUN, Maria Helena. EQUIDADE NA TRIBUTAÇÃO. Setembro de 2016. Disponível em https://downloads.fipe.org.br/publicacoes/textos/texto-15-2016-v2020.pdf. Acesso em 1/6/2022.
[5] ALCOLUMBRE, Davi. PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO N° 110 DE 2019. Disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7977727&ts=1654087970732&disposition=inline. Acesso em 1/6/2022.

Guilherme Magalhães de Brito

graduando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), acadêmico de Direito Tributário e estagiário em Pinheiro Neto Advogados.

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