Pacote de ICMS de São Paulo alia insensibilidade e inconstitucionalidades

Igor Mauler Santiago e Fábio Pallaretti Calcini

A Lei paulista 17.293/2020 (artigo 22, inciso I) autoriza o governador a reduzir na forma do Convênio ICMS 42/2016 — isto é, “em, no mínimo, dez por cento” (cláusula 1ª, inciso II) — os benefícios fiscais em matéria de ICMS, classificando como tais todos os casos em que a alíquota do imposto é “fixada em patamar inferior a 18%” (artigo 22, parágrafo 1º).

Com base nessa delegação, editaram-se de outubro a dezembro de 2020 decretos aumentando por várias formas (elevação de alíquotas, mitigação de reduções de bases de cálculo, redução de créditos outorgados) o ICMS incidente sobre insumos agropecuários, alimentos e remédios, entre outros produtos. Apesar de uma parcial volta atrás do governo, o impacto no preço ao consumidor permanece significativo nesses e noutros produtos, conforme levantamento da Fiesp [1], que aponta como efeitos do pacote: 1) maior gasto das famílias com alimentação, “principalmente as de baixa renda que, nesse momento, enfrentam dificuldade para manutenção do emprego e da renda”; 2) aumento no custo das empresas com insumos e serviços de alimentação, com a consequente elevação da necessidade de capital de giro, “em momento de retomada da atividade produtiva” e de “restrição e aumento no custo do crédito para as empresas”; 3) risco ao pequeno comércio, “prejudicando milhares de empreendedores e trabalhadores”; e 4) redução da competitividade da economia paulista, o que “compromete a retomada da economia paulista no período pós-pandemia”.

Além de inoportunas, as medidas são também inválidas por uma série de razões. Começando pela lei, tem-se que a delegação legislativa externa nela operada viola o artigo 150, inciso I, da Constituição. A legalidade é proteção do contribuinte contra o Estado, via de mão única que não pode ser percorrida no sentido oposto. É dizer, pode-se falar em redução de tributo por decreto, mas jamais em sua majoração.

É certo que o STF, no RE 838.284/SC (pleno, relator ministro Dias Toffoli, DJe 21/9/2017), convalidou a flexibilização da legalidade perpetrada pelo artigo 2º da Lei 6.994/82, que instituiu a taxa de ART, delegando ao Crea a manipulação de seu valor. E que, na ADI 4.697/DF (pleno, relator ministro Edson Fachin, DJe 30/3/2017), declarou constitucional o caput e o parágrafo 2º do artigo 6º da Lei 12.514/2011, que adotam a mesma técnica quanto às anuidades dos conselhos profissionais. E ainda que, no RE 1.043.313/RS e na ADI 5.277 (pleno, relator ministro Dias Toffoli, acórdãos ainda não publicados), deu pela validade do artigo 27, parágrafo 2º, da Lei 10.865/2004, que delega ao Executivo a fixação das alíquotas do PIS e da Cofins incidentes sobre as receitas financeiras das empresas sujeitas ao regime não cumulativo. Sucede que, em todos esses casos, a fixação de um teto quantitativo para a discricionariedade do Executivo foi reputada como elemento inafastável da chamada “legalidade suficiente” [2], sucedâneo da ortodoxa “legalidade estrita”. E a lei estadual em tela — ao incorporar o texto do Convênio ICMS 42/2016 — limita-se a fixar um piso para a majoração tributária (no mínimo, 10%). No mais, o céu é o limite, cheque em branco que o STF — atento à separação dos poderes — nunca avalizou, e decerto não avalizará.

Ademais, a premissa de aplicação da lei estadual — definição superabrangente de benefício fiscal, a tal equiparada toda alíquota inferior a 18% — tampouco resiste ao exame de constitucionalidade. De saída porque a faculdade do artigo 155, parágrafo 2º, inciso V, alínea “a”, da Constituição — “estabelecer alíquotas mínimas nas operações internas, mediante resolução de iniciativa de um terço e aprovada pela maioria absoluta de seus membros” — jamais foi exercida pelo Senado. Depois porque, a teor do inciso VI do mesmo parágrafo, “salvo deliberação em contrário dos Estados e do Distrito Federal, nos termos do disposto no inciso XII, ‘g’, as alíquotas internas, nas operações relativas à circulação de mercadorias e nas prestações de serviços, não poderão ser inferiores às previstas para as operações interestaduais”. O mencionado inciso XII, alínea “g”, dispõe que “cabe à lei complementar (…) regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados”.

A conjugação dessas regras leva a uma conclusão clara: uma alíquota efetiva uniforme — aplicável de forma indiscriminada a todas as mercadorias de uma mesma classificação fiscal — só configura benefício fiscal, em se tratando de operações internas, quando inferior à interestadual, isto é, a 7% (índice aplicável às saídas das Regiões Sul e Sudeste em direção às Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e ao Espírito Santo) ou, no pior cenário, a 12% (incide aplicável aos demais casos), conforme a Resolução 22/89 do Senado Federal. Após a Resolução 13/2012, poder-se-ia pensar mesmo num piso de 4% para as alíquotas efetivas internas, tendo-se por benefício fiscal apenas a que se situe abaixo desse nível.

É claro que há benefícios fiscais em operações internas sujeitas à alíquota superior à interestadual, o que ocorre quando o tratamento tributário varia segundo o local da ocorrência do fato gerador ou as características das pessoas a este vinculadas (artigo 14, parágrafo 1º, da Lei de Responsabilidade Fiscal). O que não se admite é pretender um Estado, em ato unilateral, qualificar como incentivada uma alíquota superior à interestadual e aplicável de maneira uniforme, sem exceções de nenhum tipo.

Até agora se tratou das operações internas. Já para as interestaduais, a irrelevância do conceito legal de benefício é nítida. Deveras, as alíquotas a elas aplicáveis são sempre inferiores a 18%, o que, numa interpretação literal, qualificá-las-ia todas como beneficiadas, proposição cujo absurdo avulta quando se recorda que a sua fixação sequer cabe aos Estados, mas ao Senado (artigo 155, parágrafo 2º, inciso IV). Conclui-se, assim, serem inconstitucionais ambos os comandos da lei estadual, o que invalida por consequência todos os decretos com base neles editados.

Cuidando especificamente destes, tem-se em primeiro lugar que são ilegais todos os que restringem supostos benefícios consistentes em isenção, redução de base de cálculo e outorga de créditos substitutivos daqueles da não cumulatividade. De fato, o Executivo fez muito mais do que majorar as alíquotas fixadas abaixo de 18% — este é o conceito de benefício para os fins da Lei 17.293/2000 —, atingindo também esses outros regimes, a que o legislador não faz nenhuma menção.

Acrescente-se que, como já visto, a Constituição exige prévio convênio quer para a concessão, quer para a revogação de benefícios de ICMS — no primeiro caso aprovados à unanimidade, no segundo por quatro quintos dos presentes à reunião do Confaz (Lei Complementar 24/75, artigo 2º, parágrafo 2º). Nem se alegue que a tanto serviria a autorização genérica do Convênio ICMS 42/2016. Como é claro, a exigência constitucional de convênio prévio à outorga e à revogação de benefícios de ICMS, e com quóruns tão elevados, visa a permitir a análise casuística e minuciosa das propostas formuladas pelos Estados, de forma a sopesar os efeitos que gerem sobre a situação econômica de cada um dos demais. Uma autorização dada no atacado, que na verdade transfere de forma integral esse julgamento de conveniência e oportunidade do colegiado para cada um dos seus membros, é a negação completa do desiderato constitucional, a apontar para a inconstitucionalidade desse próprio convênio e da lei que o incorpora por remissão.

Sendo assim, o que os decretos fizeram foi restringir benefícios fiscais [3] de forma unilateral, sem autorização do Confaz — o que é causa de inconstitucionalidade, e não de mera ilegalidade, como atesta a iterativa jurisprudência do STF sobre guerra fiscal. A censura aplica-se a todos os decretos, e sobretudo àqueles que mitigaram benefícios respaldados em convênios prévios, caso da redução de base de cálculo nas saídas interestaduais de insumos agropecuários (Convênio ICMS 100/97, cláusulas 1ª e 2ª), entre outros. Aplica-se no particular o entendimento do STF de que “isenção de ICM concedida por convênio não é revogável por decreto” (2ª Turma, RE 100.386/SP, relator ministro Moreira Alves, DJ 14/10/83).

Saindo da generalidade para um exemplo concreto, tratamos especificamente do Convênio ICMS 100/97, que suscita um argumento adicional. Embora os convênios em regra se limitem a autorizar a concessão ou a revogação de benefícios fiscais, nada obsta a elaboração de convênios obrigatórios, conclusão aliás respaldada no artigo 7º, da lei complementar, segundo o qual “os convênios ratificados obrigam todas as Unidades da Federação, inclusive as que, regularmente convocadas, não se tenham feito representar na reunião”. E nem se pretenda haver paradoxo entre essa força cogente e o fato de os convênios resultarem da deliberação dos Estados. Isso é o que ocorre com os tratados internacionais e, a bem dizer, com os contratos em geral, de que as partes só se desobrigam mediante procedimentos fixados pelo próprio Direito (in casu, a autorização específica de quatro quintos dos presentes).

Pois bem: a redação do Convênio ICMS 100/97 revela sem margem para dúvidas tratar-se de convênio impositivo, sobretudo quanto às operações interestaduais. Basta ver o teor das suas cláusulas 1ª e 2ª, segundo as quais “fica reduzida” — e não “ficam os Estados autorizados a reduzir” — “a base de cálculo do ICMS…”. A tese aqui exposta, que decorre da literalidade do diploma, é reforçada pela principiologia constitucional relativa à tributação do agronegócio. Desnecessário lembrar que se trata de alimentos e de insumos para a sua produção, o que atrai a proteção constitucional à dignidade humana (artigo 1º, inciso III), à vida (artigo 5º, caput), à saúde e à alimentação (artigo 6º, caput). Essas garantias se refletem no campo tributário em geral por meio do artigo 187 da Constituição, que valoriza os instrumentos fiscais (incentivos e benefícios) no âmbito da política agrícola, e no ICMS em particular pela seletividade (artigo 155, parágrafo 2º, inciso III), que recomenda uma incidência mais suave sobre o campo [4]. Também a Constituição paulista predica que “o Estado proporá e defenderá a isenção de impostos sobre produtos componentes da cesta básica” (artigo 161), diretrizes todas solenemente ignoradas — ou, antes, frontalmente violadas — pelos decretos que atingem o agronegócio.

O momento não é para majoração de tributos. Menos ainda sobre bens de primeira necessidade. Que dirá de fazê-lo violando abertamente a Constituição.

[1] http://www.ciesp.com.br/noticias/fiesp-atualiza-lista-de-produtos-impactados-pelo-aumento-do-icms/.

[2] Sobre o tema: FÁBIO CALCINI. Princípio da legalidade: reserva legal e densidade normativa. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2016.

[3] Caso superada a tese da inconstitucionalidade da lei, estará confirmada a qualificação como tais dos regimes tributários agravados pelos decretos em análise.

[4] O tema é desenvolvido por FÁBIO CALCINI em https://www.conjur.com.br/2017-out-20/direito-agronegocio-tributacao-diferenciada-agronegocio-nao-privilegio.

Fonte Conjur

Igor Mauler Santiago e Fábio Pallaretti Calcini

Igor Mauler Santiago é sócio-fundador do Mauler Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela Universidade Federal de Minas Gerais e membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.

Fábio Pallaretti Calcini é advogado tributarista, sócio do escritório Brasil Salomão e Matthes Advocacia, professor da FGV Direito-SP e Ibet, doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra e ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

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