Obrigações constitucionais e volume de precatórios limitam ajuste fiscal
Élida Graziane Pinto
Ainda não foi enviado ao Congresso o projeto de lei complementar sobre “regime fiscal sustentável”, a que se referem os artigos 6º e 9º da Emenda Constitucional 126, de 21 de dezembro de 2022. Até o presente momento, somente houve a apresentação dos seus pressupostos econômicos na última quinta-feira (30/3).
Na ausência do texto do que seria essa nova regra fiscal e das suas exceções, cabe a nós apenas apontarmos limites e preocupações, a partir do que já está positivado no ordenamento brasileiro vigente.
De antemão, é preciso cautela para que sejam resguardadas a credibilidade e a própria sustentabilidade das propostas de bandas mínima e máxima de oscilação para crescimento real da despesa primária, em proporções variáveis do crescimento da receita, a depender do cenário de atingimento, ou não, das bandas de oscilação do resultado primário. Neste momento preliminar, ao nosso sentir, cabem dois alertas:
Despesas primárias que correspondam a obrigações constitucionais e que, portanto, não são suscetíveis de contingenciamento não podem se submeter a ajuste determinado por mera lei complementar.
Obviamente, o comportamento intertemporal dessas despesas precisa ser devidamente estimado para evitar que seja imposta sobre as demais despesas primárias uma trajetória de achatamento desarrazoado e potencialmente insustentável, em moldes análogos ao que ocorreu com o teto de despesas primárias dado pela Emenda 95, de 15 de dezembro de 2016.
O grande mérito do arranjo que o Executivo busca assinalar passa pelo reconhecimento da necessidade de aprimorar a gestão da receita, em esforço de integração das rotas de ajuste fiscal. Porém, ao condicionar o crescimento real da despesa primária, salvo poucas exceções, a porcentuais delimitados de crescimento da receita, tende a se configurar como uma margem muito restritiva para as despesas primárias discricionárias, sobretudo quando não se avaliam adequadamente todas as exceções constitucionais cabíveis. A única flexibilidade daí decorrente seria a de optar por permanecer asfixiando as despesas discricionárias ou ter de buscar expandir significativamente a arrecadação estatal, por vezes na contramão da capacidade de a economia produzi-la.
Diferentemente do que consta na apresentação empreendida pelo Ministério da Fazenda, as obrigações constitucionais não se resumem ao piso dos profissionais da enfermagem e ao Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação).
Há regras tópicas, por exemplo, sobre duodécimos repassados pelo Executivo aos demais poderes, repartições tributárias na federação, pisos em saúde e educação, fundos eleitoral e partidário, emendas parlamentares impositivas (individuais e de bancada), benefícios assistenciais e previdenciários, seguro-desemprego, abono salarial, passivos judiciais, bem como outros fundos constitucionais.
Aludido elenco de obrigações constitucionais opera como um verdadeiro limite qualitativo à pretensão de redução fiscal do tamanho do Estado brasileiro. As escolhas acerca da sua consecução escapam às leis do ciclo orçamentário, de modo que somente poderiam ser redefinidas por meio de novas emendas constitucionais, sob cauteloso debate que não afronte cláusula pétrea, nem importe retrocesso vedado em face do estágio alcançado de proteção dos direitos fundamentais.
O ponto de partida para qualquer revisão estrutural das regras fiscais brasileiras deveria passar, necessariamente, por identificar a projeção planejada do tamanho constitucionalmente necessário do Estado em nosso país, para fins de atendimento pleno do pacto civilizatório de 1988.
Todavia não fazemos tal esforço substantivo de concepção e controversamente acumulamos filas de espera, passivos judicializados e omissões regulamentares em torno do mínimo existencial fiscal, o qual, em maior ou menor medida, corresponde ao rol de programas de duração continuada do plano plurianual — PPA e ao anexo de despesas não suscetíveis de contingenciamento da lei de diretrizes orçamentárias – LDO.
Daí decorre o segundo problema que merece nossa consideração, enquanto aguardamos que seja, enfim, remetido o projeto de lei complementar ao Congresso sobre “regime fiscal sustentável”, para que haja o horizonte de revogação do teto dado pela Emenda 95/2016.
Na falta de planejamento intertemporal que resguarde satisfatoriamente o cumprimento ordinário das obrigações constitucionais, tem crescido consideravelmente o estoque de demandas judiciais e, por conseguinte, de determinações de gasto a serem inseridas no ciclo orçamentário sob o regime dos precatórios.
Vale lembrar que, por força da Emenda Constitucional 114, de 16 de dezembro de 2021, foram parcelados precatórios federais até 2026, na forma do artigo 107-A do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Em seus “Comentários da IFI nº 14”, a Instituição Fiscal Independente estimou represamento de precatórios federais não pagos, que poderiam oscilar — a depender do cenário considerado — de R$ 420,9 bilhões a R$ 744,1 bilhões até 2026[1], mesmo já excluído o cômputo dos precatórios do extinto Fundef (parcelados na forma do artigo 4º da EC 114/2021).
Trata-se de uma verdadeira bola de neve de endividamento judicial, ocultada temporariamente, como já dito, pela Emenda 114, que visou, no curto prazo, apenas abrir espaço fiscal no teto da EC 95, para impactar o ciclo eleitoral de 2022.
No bojo de tal alteração constitucional (artigo 6º da EC 114/2021[2]), houve a promessa de um levantamento detido das demandas judiciais e dos riscos fiscais a elas associados, como forma de suavizar o próprio absurdo de a União deixar de pagar em dia as dívidas impostas, em caráter definitivo, pelo Poder Judiciário. Todavia, tal promessa até os presentes dias não passou de mera intenção retórica.
Os alertas acima se somam e se reforçam reciprocamente, até porque a judicialização das políticas públicas é apenas a expressão febril de um adoecimento anterior e maior. Nenhum ajuste fiscal se sustenta ao longo do tempo se pretender ignorar ou tentar minimizar o tamanho constitucionalmente necessário do Estado brasileiro.
Nesse contexto, o real desafio é o de aprimorar a governança orçamentária, até porque nosso país não consegue ordenar legitimamente prioridades por meio do planejamento, tampouco é capaz de equacionar seu conflito distributivo estrutural em relação à regressiva matriz tributária e ao opaco e ilimitado fluxo de despesas financeiras.
Por faltar concepção de futuro que mobilize as forças produtivas da economia e porque o Estado não consegue fazer os investimentos em infraestrutura necessários diante de tantas amarras fiscais, não há desenvolvimento socioeconômico que permita superar os impasses de curto prazo.
A desigualdade agrava o caos orçamentário, assim como é por ele acirrada, dada a lógica nacional reinante de “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Daí se explica porque a riqueza subtributada encontra remuneração muito segura, opaca e alta na dívida pública, enquanto são prometidos ajustes seletiva e primordialmente direcionados à contenção das despesas primárias.
Como bem definido no artigo 1º, §1º da Lei de Responsabilidade Fiscal, não há horizonte de sustentabilidade fiscal quando não há ação planejada e transparente, até porque — na ausência de metas claras — faltam os instrumentos de prevenção de riscos e correção de desvios capazes de afetar as contas públicas.
Assim se consuma literalmente o estreitamento não só financeiro-orçamentário, mas, sobretudo temporal das políticas públicas. Não há clareza sobre os médio e longo prazos. A expansão das demandas judiciais em busca da promessa constitucional de máxima eficácia de direitos fundamentais é, desse modo, apenas um doloroso e cada vez mais crônico sintoma desse profundo mal-estar fiscal.
Se adiar é uma forma de ajustar, obviamente negar execução constitucionalmente adequada aos direitos sociais, frustrando a consecução ordinária das correspondentes políticas públicas, é uma escolha pelo risco fiscal de vê-las mais adiante precatorizadas. Eis o real endividamento que o país tem assumido em relação ao déficit de eficácia desses direitos, algo que o Judiciário, sozinho, jamais será capaz de equalizar e oferecer respostas. A litigância fiscal aumentará e tenderá a expor abruptamente o quanto rolamos essa bola de neve de cinismo fiscal… Ironicamente, a questão em aberto é apenas quando isso ocorrerá.
É oportuno lembrar que, daqui a cerca de dez dias, será enviado o projeto de lei de diretrizes orçamentárias para 2024 e ali será feita a identificação não apenas das metas fiscais que apontarão para o horizonte intertemporal de sustentabilidade da dívida pública, mas também serão arroladas as despesas incomprimíveis que perfazem o tamanho constitucionalmente necessário do Estado brasileiro. Tal diagnóstico é essencial para pautarmos em patamar mais equitativo a reflexão sobre os rumos das nossas finanças públicas.
Em igual medida, precisamos fortalecer o PPA, cujo projeto de lei para o quadriênio 2024-2027 será enviado ao Congresso em 31 de agosto nos níveis federal e estaduais, mas não apenas ele. Precisamos resgatar a intrínseca correlação substantiva entre os planos orçamentários quadrienais, de um lado, e as peças de planejamento setorial nas mais diversas políticas públicas, de outro.
É oportuno lembrar que a essência do PPA reside nos programas de duração continuada, porque ali é que estão densificados fiscalmente os serviços públicos essenciais que devem ser mantidos ao longo do tempo, independentemente do governo que entrar ou sair; assim como porque eles se referem a demandas permanentes da sociedade.
Esse horizonte de essencialidade fiscal delimita o tamanho do Estado e fixa as despesas que não podem ser preteridas ou mitigadas ao longo do tempo. Trata-se, como já dito, da própria identidade constitucional mínima do que o orçamento público precisa contemplar. Ao invés de mirarmos apenas parâmetros quantitativos potencialmente controversos de redução proporcional do patamar de gasto público, ideal seria que o projeto de lei complementar sobre “regime fiscal sustentável” tivesse em mente o resgate dessa dimensão qualitativa.
Vale a pena insistir e reafirmar que os programas de duração continuada do PPA e o anexo de despesas não suscetíveis de contingenciamento da LDO são o locus onde podemos reconhecer o tamanho constitucionalmente necessário do Estado. Somente a partir desses dois eixos substantivos é possível repensar e buscar corrigir a trajetória de acelerada expansão de demandas judiciais, oferecendo políticas públicas planejadamente mais robustas e qualificadas, para enfrentar os vazios assistenciais diagnosticados pelas instâncias competentes de controle.
Afinal, as grandes questões que temos diante de nós, durante as várias rodadas de debate que serão trazidas pela premente agenda de revisão das regras fiscais brasileiras, são exatamente o que esperamos ser o tamanho ideal do Estado e qual é a sua capacidade intertemporal de cumprir os desideratos constitucionais que lhe atribuímos há 35 anos.
[1] Como se pode ler no seguinte excerto: “[…] o represamento da expedição dos precatórios e sentenças judiciais produzirá um passivo com crescimento exponencial. A seguir, apresentamos duas simulações, com premissas distintas, para elucidar o problema. Por hipótese, no Cenário 1 (Tabela 1-A), se o fluxo de precatórios crescer pelo IPCA e pela Selic, e dada a regra proposta já explicada, esse passivo poderia alcançar R$ 420,9 bilhões até 2026. No Cenário 2 (Tabela 1-B), o fluxo de precatórios é corrigido pela média de crescimento dos precatórios e sentenças judiciais entre 2021 e 2022 (35,3%), considerando-se os valores previstos. O objetivo é evidenciar o risco associado à evolução dos passivos em um quadro mais pessimista, não limitado ao IPCA e à Selic. Neste caso, o passivo total no início de 2026 chegaria a R$ 744,1 bilhões.
Não se sabe, até o momento, o tratamento a ser dado aos precatórios não expedidos. O risco é a criação de uma espécie de “limbo”, em que o precatório não existiria (já que não teria sido expedido), mas, sob o aspecto econômico, representaria uma dívida para a União”.
[2] A seguir transcrito: “Art. 6º No prazo de 1 (um) ano a contar da promulgação desta Emenda Constitucional, o Congresso Nacional promoverá, por meio de comissão mista, exame analítico dos atos, dos fatos e das políticas públicas com maior potencial gerador de precatórios e de sentenças judiciais contrárias à Fazenda Pública da União.
§ 1º. A comissão atuará em cooperação com o Conselho Nacional de Justiça e com o auxílio do Tribunal de Contas da União e poderá requisitar informações e documentos de órgãos e entidades da administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, buscando identificar medidas legislativas a serem adotadas com vistas a trazer maior segurança jurídica no âmbito federal.
§ 2º. O exame de que trata o caput deste artigo analisará os mecanismos de aferição de risco fiscal e de prognóstico de efetivo pagamento de valores decorrentes de decisão judicial, segregando esses pagamentos por tipo de risco e priorizando os temas que possuam maior impacto financeiro.
§ 3º. Apurados os resultados, o Congresso Nacional encaminhará suas conclusões aos presidentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, para a adoção de medidas de sua competência.”
Élida Graziane Pinto
Livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).