O sistema da nota fiscal eletrônica e sua influência no momento da efetiva constituição do crédito tributário pelo contribuinte de ICMS

Guilherme Lopes de Moraes & Jean Paolo Simei e Silva

1. Introdução
Temos observado, de forma atônita, o processo comunicacional do direito ser inovado por inúmeras tecnologias de informação, que buscam trazer dinamismo a essa área do conhecimento. Elas conferem maior agilidade aos processos e permitem que novos usos sejam incorporados por essa onda comunicacional digital.

Esse processo de informatização passa a estabelecer novas relações jurídicas a partir de um simples “clicar”. Assinaturas digitais passam a substituir documentos assinados “de punho”. Eis que surgem novas situações e novos meios de prova, tudo isso a inovar o sistema do direito positivo.

Normas individuais e concretas são expedidas eletronicamente e passam, de maneira imediata, a fazer parte do sistema jurídico. Algumas formalidades exigidas para a constituição de determinados fatos jurídicos vão dando espaço a certificados e assinaturas digitais, documentos de validade jurídico-virtual, arquivos magnéticos etc.

Não há dúvidas de que essas novas tecnologias agregam valores ao direito positivo, porém esse novo cenário exige que as mesmas sejam compreendidas em sua profundidade vez que passam a fazer parte da enunciação das normas jurídicas.

Atualmente as tomadas de ciência de alguns atos administrativos se dão de forma digital e endereços tributários eletrônicos são uma realidade no cotidiano das administrações tributárias. Além disso, contribuintes e documentos existem apenas virtualmente, sendo que as pessoas contratam a quilômetros de distância por intermédio de um computador conectado à internet.

Essa nova realidade digital exige novos conhecimentos e novas posturas do intérprete do direito positivo. As respostas deverão ser buscadas junto às teorias existentes, de forma que só se manterão aplicáveis aquelas devidamente testadas, comprovadas e aprovadas.

A proposta do presente estudo é focar nossa atenção no processo informatizado de emissão da Nota Fiscal Eletrônica e nos reflexos que sua utilização trouxe em relação à intersubjetividade das relações jurídicas entre fisco e contribuintes. Essas modificações influenciam precisamente no momento em que o crédito tributário deve ser considerado constituído pelo contribuinte de ICMS, nos casos de autolançamentos. (§ 4º do art. 150 do Código Tributário Nacional).

2. Breve histórico da Nota Fiscal Eletrônica
Um dos maiores avanços na informatização fiscal brasileira (se não o maior) foi o sistema da Nota Fiscal Eletrônica (que passaremos a denominar simplesmente NF-e), que permitiu uma série de vantagens, entre as quais podemos destacar a facilidade de acesso ao documento fiscal eletrônico, a rapidez na troca de informações entre os interessados (remetentes, destinatários, administrações tributárias e outros órgãos públicos) e o armazenamento descomplicado e sem custos.

Para que fosse possível dar validade aos documentos expedidos de forma eletrônica, foi publicada a Medida Provisória n. 2.200-2, de 24 de agosto de 2001, através da qual foi criada a Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira – ICP – Brasil. O art. 10 desse ato normativo considerou esses documentos válidos para todos os fins legais e, no § 1º desse mesmo artigo, estabeleceu-se uma presunção de veracidade para todas as declarações constantes dos documentos em formato eletrônico, desde que produzidos com a utilização de certificação disponibilizada pela ICP – Brasil.

Assim, foi possível a instituição do Sistema Público de Escrituração Digital – SPED, que contou com a participação efetiva e integrada de inúmeras administrações tributárias. Uma das três grandes bases de dados desse sistema é a da NF-e, que conta ainda com a Escrituração Fiscal Digital e a Escrituração Contábil Digital. Fiquemos apenas com o estudo da NF-e de seus efeitos jurídico-tributários.

A NF-e é um documento fiscal eletrônico (emitido e armazenado eletronicamente, de existência apenas digital) instituído pelo Ajuste SINIEF 07/05, de 05 de outubro de 2005, cuja validade jurídica é assegurada pela assinatura digital do emitente. Deverá, ainda, contar com a autorização de uso pela administração tributária do Estado/DF do contribuinte, antes mesmo da constituição do fato jurídico tributário (“ocorrência do fato gerador”, conforme § 1º da Cláusula Primeira do referido ajuste). Dessa forma, para que seja concluída a emissão da NF-e, é necessário que o contribuinte transmita o arquivo eletrônico para a Secretaria da Fazenda (ou de Finanças) de sua jurisdição, a qual devolverá uma Autorização de Uso da NF-e e gerará, ainda, um protocolo de confirmação de recebimento do arquivo.

Somente após essa autorização, o Documento Auxiliar da Nota Fiscal Eletrônica – DANFE poderá ser impresso para poder acompanhar as mercadorias até seu destino, conferindo portabilidade à NF-e. Esse documento consiste num suporte material (papel) que, além de contar com as informações fiéis e íntegras do registro eletrônico do fato jurídico tributário, auxilia na escrituração das operações e permite que seja colhida a assinatura do destinatário das mercadorias.

Tomado como um fato jurídico informatizado, o processo de emissão da NF-e servirá como pano de fundo para as questões levantadas no presente trabalho.

3. Necessária intersubjetividade nas relações jurídico-tributárias
O direito permite a vida em sociedade e a convivência pacífica entre os indivíduos, visto estipular direitos e deveres entre eles. Segundo Paulo de Barros Carvalho[1]

A função pragmática que convém à linguagem do direito é a prescritiva de condutas, pois seu objetivo é justamente alterar os comportamentos nas relações intersubjetivas, orientando-os em direção aos valores que a sociedade pretende implantar. (…) E é desse modo que atua o direito, vertendo-se sobre as condutas intersubjetivas, já que as intra-subjetivas refogem de seu campo de abrangência, sotopondo-se aos preceitos da moral, da religião etc.

Partindo das afirmações do professor paulista, podemos concluir que a intersubjetividade é uma característica indispensável dos enunciados prescritivos, necessitando da ciência de seu destinatário para que possam surtir seus efeitos jurídicos próprios e instaurar novas relações jurídicas. Em regra, o enunciado prescritivo (lei, decreto, portaria, lançamento tributário ou uma sentença) deve possuir uma específica forma de ciência por parte de seu destinatário. Essa providência é de fundamental importância para o direito, pois somente a partir dela é que começam a contagem de prazos (de decadência, de prescrição, para ingressar com uma ação ou recurso etc.). As leis, decretos e alguns atos normativos são publicados nos respectivos diários oficiais e, na grande maioria das vezes, não chegam ao conhecimento dos indivíduos. Essa é uma situação que o ordenamento jurídico busca contornar com um enunciado que opera como uma metanorma sobre todo o sistema, tratando-se do art. 3º da Lei de Introdução ao Código Civil, segundo o qual “ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”.

Em se tratando do ato de emissão da NF-e, importa destacar o efeito jurídico da “ciência do fisco”, que ocorre antes mesmo de sua emissão. Como o direito positivo existe para regrar as condutas intersubjetivas, se torna imprescindível a verificação do exato momento em que uma conduta intrassubjetiva passa para o campo da intersubjetividade ou, em outras palavras, quando uma situação passa a ser regrada juridicamente.

Essa ciência instantânea do fisco (ou, mais precisamente, anterior) provoca mudanças substanciais na maneira de encarar a intersubjetividade das relações jurídico-tributárias, exatamente porque desloca para o momento da emissão da NF-e os efeitos jurídico-tributários próprios.

Para melhor fixação da questão, tomemos o ato de emissão de uma NF-e por um contribuinte de ICMS em comparação com o sistema anterior. Antes da NF-e, para acobertar uma operação mercantil, o contribuinte emitia o documento fiscal e somente no final do mês (ou nos primeiros dias do mês seguinte) a operação era registrada no livro fiscal próprio. Após o encerramento do prazo, os contribuintes deviam entregar um arquivo magnético (ou similar) com todas as operações ocorridas no período (entradas e saídas de mercadorias, bem como outras situações modificadoras do saldo devedor do ICMS). Dessa forma, o fisco passava a ter conhecimento das operações bem depois de sua ocorrência, uma vez que o prazo de entrega desses arquivos se estendia até meados do mês subsequente. Ainda assim, esse conhecimento era apenas indicativo, uma vez que havia ainda a necessidade de checar a veracidade das informações entregues eletronicamente (ou de forma diversa), pois estas podiam divergir daquelas contidas nos livros fiscais (juridicamente válidas). Com o advento da NF-e, as administrações tributárias passam a ter conhecimento das operações mercantis antes mesmo delas serem relatadas em linguagem competente, ou seja, antes de sua emissão.

Esse procedimento previsto na legislação própria da NF-e, salvo melhor juízo, estabelece uma importante inovação em matéria tributária, vez que o sujeito passivo, de forma antecipada, “cientifica” o sujeito ativo da ocorrência da operação de circulação de mercadorias, conferindo intersubjetividade a esse ato comunicacional.

O evento é recortado pela linguagem jurídica competente e o fato jurídico tributário devidamente constituído no momento da emissão da NF-e, visto ser instantânea a ciência do sujeito ativo da relação tributária. Temos, neste sentido, configurado o autolançamento conforme os precisos ensinamentos do professor Paulo de Barros Carvalho.

Enquanto no sistema anterior a emissão dos documentos fiscais não dependia da ciência do destinatário (fisco), a emissão da NF-e depende dessa ciência (retorno do protocolo de autorização). Dessa forma, a emissão da NF-e já configura um ato comunicacional, uma vez que conta com a presença do receptor da mensagem, cujo conteúdo faz referência a todos os critérios da regra-matriz de incidência tributária (no caso, do ICMS). Esse documento digital é o próprio recorte linguístico da ocorrência factual (evento) da circulação de mercadoria. Eis a norma individual e concreta expedida pelo sujeito passivo (autolançamento), ao qual compete, além de aplicar corretamente as normas gerais e abstratas da legislação, informar ao fisco a ocorrência do respectivo fato.

Dessa forma, o sistema de emissão de NF-e resgatou a própria essência do ICMS (e de outros tributos), uma vez que tornou clara a distinção entre “circulação de mercadorias” e “apuração do imposto”. Isso porque as sucessivas operações de circulação de mercadorias (que são os verdadeiros fatos jurídicos tributários) perdiam sua relevância quando comparadas à apuração do imposto. A sistemática de compensação do imposto, unida à ausência de comunicação prévia, retirava o foco do fato jurídico tributário, deslocando-o para sua apuração. Esse deslocamento prejudicava o estudo desse imposto, pois misturava distintas normas (regras-matrizes, normas de crédito, normas de compensação etc.). No sistema anterior, a apuração do imposto se confundia com o autolançamento (norma individual e concreta), pois a informação recebida pelo fisco era reunida no Livro de Apuração do ICMS, no qual encontramos os débitos e também os créditos fiscais (em razão do regime de compensação), ou seja, normas de naturezas distintas.

Não há que se confundir o direito ao crédito do contribuinte com os débitos oriundos da ocorrência dos fatos jurídicos tributários, porém o referido livro fiscal unia essas duas realidades e as apresentava como se fossem normas de mesma natureza. Com o sistema da NF-e, fica patente a separação entre norma jurídica individual e concreta para a constituição do fato jurídico tributário (que é expedida no momento da emissão da NF-e) e norma jurídica individual e concreta para usufruir o direito ao crédito fiscal (constituída no momento da entrega da respectiva escrituração fiscal digital).

4. Conclusão
O avanço da informatização fiscal observado na maioria dos países é algo irreversível. A utilização da informática atingiu os mais diversos setores e vem agregando valores aos processos, além de diminuir consideravelmente os custos.

O sistema jurídico tem sido inovado muito rapidamente e nele orbita toda a gama de produção de normas jurídico-tributárias virtuais, o que exige do intérprete um conhecimento profundo para a boa compreensão dessas normas, resultados que são do processo de enunciação virtual.

Algumas considerações feitas ao longo desta pesquisa merecem ser revisitadas, como é o caso da intersubjetividade. Em nosso sentir, o sistema da NF-e trouxe inovações importantes no que diz respeito ao momento da constituição do crédito tributário nos casos de autolançamentos do ICMS. Entendemos que a referida constituição se dá por ocorrida não mais no momento da entrega da escrituração fiscal para o fisco, mas no exato momento em que o contribuinte emite a NF-e, pois é neste momento que se dá o recorte linguístico do evento (transformando-o em fato tributário) com foros de intersubjetividade, o que o torna apto a irradiar seus efeitos jurídico-tributários próprios. Diante dessa singela conclusão, aguardamos as diversas críticas, sem as quais não se evolui no pensamento científico. Além do mais, uma coisa temos como certa: a plena convicção de que o assunto não se esgota nesse breve e superficial trabalho.

5. Bibliografia
ARAUJO, Clarice von Oertzen de. Incidência Jurídica: Teoria e Crítica. São Paulo: Noeses, 2011.

CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1969.

ROBLES MORCHÓN, Gregorio. Teoría del Derecho: Fundamentos de Teoría Comunicacional del Derecho.. Volumen I. 5. ed. Navarra-ES: Thomson Reuters, 2013.

TOMÉ, Fabiana Del Padre. A Prova no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2005.

Nota
[1] CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 13.

Fonte: Jusnavegandi

Guilherme Lopes de Moraes & Jean Paolo Simei e Silva

Guilherme Lopes de Moraes
Mestre e Doutorando em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Professor do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Auditor Fiscal da SEFAZ/GO.

Jean Paolo Simei e Silva
Mestre e Doutorando em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Professor do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET. Advogado em São Paulo.

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