O princípio gemelar do IVA dual (CBS e IBS) e o processo administrativo
Eduardo Salusse
Desde a gênese dos estudos que orientaram a reforma tributária aprovada pela Emenda Constitucional nº 132 (EC 132), houve a justa preocupação de simplificar, reduzindo-se os custos de conformidade fiscal, trazendo maior segurança jurídica a todos.
A partir deste propósito, a simplicidade foi elevada ao grau de princípio constitucional no artigo 145, parágrafo 3º, da Constituição Federal, ao lado da transparência, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente. É notável que o comando despontou deontologicamente de forma bastante impositiva, definindo, sem muita margem interpretativa, que o Sistema Tributário Nacional “deverá” observar referidos princípios.
No decurso dos debates e costuras políticas, deparou-se com uma insuperável dificuldade de criação de um único IVA, denominado IBS, com o compartilhamento de competência deste tributo entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Teria surgido, àquele momento, um óbice federativo instransponível no plano político, ameaçando a viabilidade do projeto de reforma tributária. Foi uma espécie de disputa de poder, ou melhor, a falta de disposição de Estados, Distrito Federal e Municípios dividirem poder com a União Federal, o que se justifica por razões históricas que podem ser tratadas em outro artigo.
Leia também:
Dono da Dolly é condenado à prisão por corrupção e crime ambiental em SP
Papel do CFO está mudando, aponta estudo da EY
Sem adentrar nas razões que fizeram com que os entes federativos não desejassem “dar os braços” para a União Federal na competência para instituir e gerir um tributo comum, rechaçando a inviável submissão de uns entes ao outro, buscou-se uma solução política. Sugeriu-se a criação de um IVA-Dual, com o desmembramento do então isolado IBS em dois tributos sobre o consumo: a CBS de competência da União Federal e o IBS de competência compartilhada dos Estados, Distrito Federal e municípios.
Mas o comando de simplificação não poderia ser ameaçado, sendo desejo de todos inaugurar uma nova era no sistema de tributação do consumo. E por esta razão foi que a EC 132 definiu, em seu artigo artigo 149-B, que os tributos previstos nos artigos 156-A (IBS) e 195, V (CBS), observarão regras comuns em relação a: I – fatos geradores, bases de cálculo, hipóteses de não incidência e sujeitos passivos; II – imunidades; III – regimes específicos, diferenciados ou favorecidos de tributação; IV – regras de não cumulatividade e de creditamento.
Vale dizer, seriam dois tributos gêmeos em todos os elementos da regra matriz de incidência tributária, exceto na sujeição ativa (entes tributantes). Preconizou-se, ainda, que dada as identidades, a CBS e o IBS deverão ser apurados em conjunto e recolhidos na mesma guia de pagamento. A divisão em dois tributos será quase uma mera formalidade para divisão do poder de tributar e preservação das independências dos entes tributantes que não desejavam coabitar as mesmas competências.
Ainda sob as amarras constitucionais da simplicidade – e consequente segurança jurídica – a EC 132 definiu, em seu artigo 156-B, parágrafo 8º, que a lei complementar “poderá” prever “a integração do contencioso administrativo” relativo aos tributos previstos nos artigos 156-A (IBS) e 195, V (CBS). Na linguagem das normas ou na lógica deôntica, a expressão “poderá” não necessariamente remete a uma faculdade, mas pode efetivamente significar uma conduta obrigatória. A expressão tem a conotação de outorga de poder ou de autorização para que o Estado – atividade vinculada – faça o que deve ser feito. Em outras palavras, a integração do contencioso deve ocorrer na medida em que a simplificação, a segurança jurídica ou outros comandos de observância obrigatória assim recomendarem.
Deve-se atentar para a raiz da palavra “integração” constante no comando da norma, cujo significado diz respeito “tornar íntegro, fazer um só”. Provêm do latim integrare (in = não; tangere = tocado). Assim como leite integral ou o período integral não se dividem, o contencioso administrativo integrado tampouco pode ser dividido. É o mesmo sentido das dezenas de vezes em que a palavra “integração” é utilizada no texto constitucional
Nesta mesma toada a EC 132 impôs, no art. 156-B, que os Estados, o Distrito Federal e os municípios exercerão de forma “integrada”, exclusivamente por meio do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (…) as seguintes competências administrativas relativas ao imposto de que trata o art. 156-A: I – editar regulamento único e uniformizar a interpretação e a aplicação da legislação do imposto; II – arrecadar o imposto, efetuar as compensações e distribuir o produto da arrecadação entre Estados, Distrito Federal e Municípios; III – decidir o contencioso administrativo.
Tais competências “integradas” não poderão ser divididas, assim como o contencioso administrativo do IBS e da CBS também não poderão ser divididos.
A despeito do claro comando constitucional determinando a unificação (integração) dos contenciosos do IBS e da CBS, a conclusão decorreria de forma lógica dos demais preceitos principiológico da EC nº 132. Não convive com o obrigatório princípio da simplificação a manutenção de dois contenciosos para tributos idênticos, com regras processuais distintas e, sobretudo, com competências distintas para o controle de legalidade.
Refiro-me, aqui, ao artigo 92, 3º, do PLP 108, que exclui a competência dos julgadores dos recursos administrativos interpostos em face de lançamentos de IBS de afastar legislação tributária (dentro da qual estão os atos infralegais) em decorrência de possível ilegalidade. O tributo gêmeo – CBS – será controlado no âmbito do processo administrativo fiscal sob as regras do Decreto 70.235/72, tramitando perante o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), cujos órgãos julgadores tem competência para afastar normas ilegais. O debate assombra, eis que mesmo diante do dever constitucional da administração pública observar a legalidade (artigo 37 da CF/88), o PLP 108 pretende subtrair tal competência do órgão julgador administrativo do IBS.
Dirão alguns que houve a criação de Comitês de Harmonização para unificar interpretações divergentes entre os tributos gêmeos CBS e IBS, assim, estaria suprido o comando de integração já referido.
Não se podem confundir conceitos. A expressão harmonizar, que inclusive consta no preâmbulo a Constituição Federal com um valor a ser perseguido pela sociedade, guarda relação com conciliação, congraçamento ou fazer concordar. Não tem nenhuma relação com a palavra “integração”.
Mas, pior do que isso, a harmonização social no campo tributário deve envolver a busca pelo consenso entre partes com interesses ou entendimentos contrapostos. Na relação jurídica tributária – afinal é disso que estamos tratando aqui – a contraparte do cobrador de tributos é o sujeito passivo ou contribuinte. A harmonização pretendida no PLP 108 ocorre entre sujeitos ativos (União e Comitê Gestor), ocupantes de um mesmo lado da mesa na relação jurídica tributária.
A proteção do jurisdicionado ocorre no e por meio do processo. É aquele em relação a quem é exercido o poder de tributar. É o sujeito oprimido por quem detém o poder e a quem serve o processo administrativo para frear ímpetos e exigências arbitrárias e ilegais (art. 5º LIV e LV da CF/88).
Portanto, voltando aos já referidos princípios da simplificação e da segurança jurídica, a instituição de dois processos não integrados, sem harmonização efetiva entre interesses contrapostos na relação jurídica – mas somente entre entes tributantes com interesse comum de arrecadar -, não há o atendimento aos comandos constitucionais. Não haverá harmonia social e, ao contrário, um estímulo à litigância por força da ausência de observância dos requisitos mínimos de controle de arbitrariedades. É a contramão de tudo que se está pregando e construindo em termos de aproximação entre Fisco e contribuintes.
O princípio gemelar que orientou o IBS e a CBS deve se estender ao processo administrativo tributário, pois é nele que o crédito tributário envolvendo os gêmeos será aperfeiçoado, com adequada interpretação dos fatos e da lei, de forma simples, segura, transparente. Em outras palavras, de forma integrada como determinado pela EC 132.
Não adentrarei aos custos que a estrutura proposta irá provocar, com órgãos de julgamento diluídos em 27 entes da federação, com centenas de integrantes, onerando, por puro afago às vaidades federativas e ao desejo de poder, os cofres públicos em detrimento de todos os interesses sociais preconizados na EC 132.
Eduardo Salusse
Sócio fundador do escritório responsável pela área de direito tributário. Responsável executivo de pesquisa no Núcleo de Estudos Fiscais da FGV DIREITO SP. Professor em direito tributário no IBET, APET, FGV Direito e outras instituições. Conselheiro Honorário e atual Presidente do MDA – Movimento de Defesa da Advocacia. Colunista no Jornal Valor Econômico (Fio da Meada).