O princípio da transparência após a EC 132/2023

Carmen Silvia Lima de Arruda, Sergio André Rocha

Dezembro de 2023 ficará marcado na história tributária brasileira não apenas pela aprovação da Emenda Constitucional nº 132 (EC 132), mas também por uma mudança paradigmática que poucos perceberam de imediato: a constitucionalização explícita do princípio da transparência tributária. Enquanto os debates se concentravam nas mudanças estruturais do sistema tributário, uma revolução silenciosa se consolidava no § 3º do artigo 145 da Constituição.

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A transparência, agora alçada ao patamar de princípio constitucional explícito, informando todo o Sistema Tributário Nacional, ao lado dos princípios da simplicidade, da justiça tributária, da cooperação e da defesa do meio ambiente, representa muito mais que uma mera formalização normativa, trata-se de uma verdadeira mudança de paradigma constitucional.

A EC 132 representou uma resposta a décadas de ansiedade por uma reforma constitucional tributária capaz de proporcionar segurança jurídica, confiabilidade aos investimentos, crescimento econômico, justiça e desenvolvimento social. Como demonstraremos ao longo deste artigo, a incorporação expressa da transparência no texto constitucional não é apenas simbólica, mas carrega uma força normativa transformadora que se irradiará por todo o ordenamento jurídico tributário.

Pilares da transparência tributária
A constitucionalização da transparência tributária estrutura-se em alguns elementos fundamentais que impactam significativamente a relação entre Fisco e contribuintes. Estes elementos funcionam de forma integrada e complementar, criando um sistema robusto de accountability fiscal.

O primeiro elemento é o acesso à informação, que transcende a mera disponibilização de dados para constituir-se em verdadeiro direito subjetivo do contribuinte. Não se trata apenas do direito de obter informações pontuais, mas da criação de uma cultura organizacional voltada para a disponibilização sistemática, clara e tempestiva de dados tributários.

A transparência ativa exige que o próprio Estado disponibilize proativamente informações relevantes, antecipando-se às demandas dos contribuintes. A transparência passiva, por sua vez, garante ao cidadão o direito de solicitar esclarecimentos específicos e de receber respostas adequadas em prazo razoável.

O segundo pilar é a motivação das decisões, elemento que ganha nova dimensão e força com a constitucionalização da transparência. A fundamentação adequada das decisões não é apenas uma garantia contra a arbitrariedade, mas permite o controle da adequação dos atos administrativos aos objetivos e missões dos órgãos estatais. A motivação possibilita a sindicabilidade jurisdicional na medida em que serve a todos os envolvidos, partes e interessados, e representa uma expressão dos princípios da publicidade, transparência, da imparcialidade e do devido processo legal.

A Lei nº 13.655/2018, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb), já havia estabelecido uma nova dimensão para o dever de motivar, determinando que “a motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas”. [1] Agora, com a transparência constitucionalizada, este dever se fortalece e ganha status de exigência constitucional explícita, vedando decisões vagas, obscuras, insindicáveis ou impermeáveis.

O terceiro elemento é a participação social na tributação, que representa talvez a mudança mais revolucionária introduzida pela constitucionalização da transparência. Trata-se de um reconhecimento da importância da cidadania participativa para legitimação das ações da Administração e corolário natural do direito de acesso à informação.

A participação popular estabelece um novo paradigma, permitindo que os cidadãos deixam de ser sujeitos passivos das ações governamentais para tornarem-se partícipes ativos, com poder decisório nas políticas públicas a serem adotadas e executadas. Esta participação melhora o processo democrático e possibilita a tomada de decisões mais legítimas e eficientes.

Deve-se observar, contudo, que a transparência não é um princípio unidimensional que estabelece como objetivo apenas a atuação transparente do Poder Público. Trata-se de via de mão dupla que também vai demandar um agir transparente do contribuinte e legitimar normas como as que autorizam o acesso das autoridades fiscais a informações bancárias, autorizam a regulação de declarações de planejamento tributário e estruturas com potencial repercussão fiscal.

Diagnóstico incômodo: o que o TCU revelou
Um relatório de auditoria do Tribunal de Contas da União sobre o processo de concessão e restrição de acesso a informações pessoais no âmbito do Poder Executivo Federal revelou um cenário profundamente preocupante no Ministério da Fazenda e na Receita Federal. A auditoria foi determinada pelo Acórdão 91/2023-TCU-Plenário (disponível aqui) e teve como objeto a governança e gestão de processos relacionados com a proteção de informações pessoais e a divulgação de informações de interesse geral ou coletivo, produzidas ou custodiadas pelas organizações públicas.

As conclusões são inquietantes e explicam, em grande parte, as dificuldades enfrentadas pelos contribuintes no acesso a informações tributárias. A auditoria constatou que se dá menor ou nenhuma ênfase às normas que tratam da transparência das informações, que faltam ações de capacitação dos servidores, que é insuficiente o empoderamento da autoridade de monitoramento da Lei de Acesso à Informação — LAI (Lei nº 12.527/2011), e que existem lacunas significativas na atuação do sistema de controle interno governamental em ações voltadas à avaliação da transparência.

No Ministério da Fazenda, segundo a auditoria, “não foram localizadas normas publicadas, guias e assemelhados que tratem de diretrizes e orientações quanto à transparência das informações de interesse público geridas pelo ministério”. [2] Esta ausência é particularmente grave em um órgão central da administração tributária federal.

Especificamente em relação à Secretaria da Receita Federal, a situação é ainda mais preocupante. O órgão não informou à auditoria sobre a existência de normas “que tratem de diretrizes e orientações quanto à transparência das informações de interesse público geridas pela RFB” [3]. A norma de compartilhamento de dados existente aproxima-se da temática, mas dispõe sobre troca de informações entre órgãos públicos, não sobre transparência de informações à sociedade.

Judicialização como sintoma
A ausência sistemática de transparência nos órgãos fazendários gera um efeito dominó absolutamente previsível: a crescente judicialização dos pedidos de acesso à informação tributária. Esta judicialização não é apenas um inconveniente administrativo, mas representa um sintoma claro do insucesso da administração em cumprir suas obrigações constitucionais e legais.

O Supremo Tribunal Federal já reconheceu há uma década o cabimento de habeas data para acesso a informações do contribuinte incluídas no banco de dados do sistema Sincor da Receita Federal, estabelecendo que “o habeas data é a garantia constitucional adequada para a obtenção, pelo próprio contribuinte, dos dados concernentes ao pagamento de tributos constantes de sistemas informatizados de apoio à arrecadação dos órgãos administração fazendária dos entes estatais”. [4]

Este fenômeno revela o paradoxo brasileiro em toda a sua dramaticidade: apesar de vivermos em plena revolução digital, quando operações financeiras são realizadas instantaneamente via Pix e transações complexas são processadas em tempo real, um simples pedido de restituição ou consulta sobre legislação tributária à Receita Federal pode demorar 360 dias, ou mais, para ser respondido. E, muitas vezes, simplesmente não é respondido.

A situação é tão grave que o Superior Tribunal de Justiça foi obrigado a reconhecer a ofensa ao princípio da duração razoável do processo, corolário dos princípios da eficiência, moralidade e razoabilidade, e fixar tese no sentido de que “tanto para os requerimentos efetuados anteriormente à vigência da Lei 11.457/07, quanto aos pedidos protocolados após o advento do referido diploma legislativo, o prazo aplicável é de 360 dias a partir do protocolo dos pedidos (artigo 24 da Lei 11.457/07)”.

Os números da judicialização são impressionantes e reveladores. Segundo dados fornecidos pelo Núcleo de Estatística do TRF-2, no 1º e 2º graus tramitaram mais de 500 habeas data contra a Fazenda Nacional no período de 2019 a 2025. Estes números representam apenas a ponta do iceberg de um problema sistêmico que afeta toda a administração tributária federal.

Consequências práticas da constitucionalização
A primeira e mais importante consequência da constitucionalização da transparência é vinculatividade de um princípio explícito que foi redigido no texto constitucional como norma que deve ser observada por todo o sistema jurídico tributário normativo, direcionado a todos os entes e instâncias federativas.

Como norma constitucional explícita, a transparência reforça sua supremacia hierárquica sobre toda a legislação infraconstitucional e torna-se parâmetro direto e obrigatório para o controle de constitucionalidade. Leis, decretos, portarias e atos normativos que contrariem ou obstaculizem a transparência tributária tornam-se passíveis de invalidação por inconstitucionalidade.

Esta supremacia normativa abre a possibilidade do exercício direto do controle de validade das normas jurídicas, uma vez que se trata de “uma norma de referência ou parâmetro normativo do controle da constitucionalidade dos atos normativos”. [5] Todas as normas do sistema jurídico tributário devem agora se conformar ao comando constitucional da transparência.

A segunda consequência é a força normativa e a irradiação sistemática. Deixando de ser princípio implícito, correlato ao princípio republicano e ao da publicidade, [6] a transparência ganha autonomia e concretude, passando a gozar do atributo da supremacia constitucional com superioridade jurídica em relação a todas as demais normas. Este novo status permite que o princípio irradie seu comando por todo o ordenamento jurídico e que se espraie sobre as demais normas do sistema tributário. [7]

A terceira consequência prática é a possibilidade de utilização da transparência como instrumento de ponderação em casos de tensão entre bens jurídicos tutelados constitucionalmente. Sabe-se que o princípio da transparência não é absoluto, que comporta exceções previstas no próprio texto constitucional e que impõe limites quando há tensão com outros valores, como nas situações em que o sigilo é requerido, e nas hipóteses de privacidade ou segurança nacional. Nestes casos, os princípios devem ser sopesados de acordo com o caso concreto, estabelecendo-se uma hierarquia axiológica móvel entre os princípios conflitantes. [8]

Primeiros passos da implementação

A Lei Complementar 214/2025, primeira norma infraconstitucional editada após a constitucionalização da transparência, representa um início ainda acanhado da utilização do novo princípio. A lei menciona a transparência ativa apenas no artigo 400, estabelecendo a obrigação de a Receita publicar mensalmente a relação dos beneficiários da compensação de benefícios fiscais, identificando o beneficiário, a unidade federada concedente do benefício oneroso, o ato concessivo, o tipo de benefício fiscal, o montante pago em compensação e o valor do crédito eventualmente retido para verificação ou compensação.

A lei também determina alteração da Lei do Simples Nacional para incluir a transparência como princípio de observância obrigatória, como se somente a este regime de tributação se dirigisse o novo princípio constitucional tributário. Além disso, determina a padronização de documentos fiscais eletrônicos e promete instituir programas de incentivo à cidadania fiscal, bem como disponibilização de informações em plataforma eletrônica unificada.

Embora a LC 214/2025 represente um primeiro passo , a esperança por uma cidadania fiscal efetiva está na aprovação de projetos de lei que efetivamente impulsionem a transparência tributária. Dentre eles destacamos o Projeto de Lei Complementar nº 17/2022, que além de instituir o Código de Defesa do Contribuinte, torna obrigatória a disponibilização em ambiente digital e centralizado, de forma atualizada, transparente, acessível e organizada, das informações relevantes para o atendimento das obrigações tributárias pelos contribuintes, e ainda regula o procedimento de consulta fiscal, permitindo ao contribuinte a formulação de consulta sobre a adequação da estruturação dos seus negócios, dentre outras questões.

Uma revolução em marcha
A reforma tributária representa, de fato, uma verdadeira revolução do sistema jurídico tributário constitucional ao consagrar o princípio da transparência tributária, que pode ser traduzido, de um lado, no dever da administração tributária de disponibilizar acesso a informações claras e atualizadas, no dever de motivação e na possibilidade de participação do cidadão na tomada de decisões, e de outro, no direito do cidadão contribuinte a informações fiscais claras, precisas, tempestivas e atualizadas, e ao conhecimento dos dados e procedimentos fiscais a que está submetido.

Trata-se de dar ao cidadão a possibilidade não apenas de obter informações acerca de seus dados fiscais, mas de formular consultas e obter respostas claras, tempestivas e confiáveis, além de ser informado sobre o real valor do tributo que está lhe sendo cobrado.

Sabe-se que há muito a ser feito para dar concretude e efetividade ao comando constitucional de transparência fiscal, e que muitas dessas novas orientações já fazem parte de um conjunto de projetos de lei, encaminhados ao Congresso Nacional, que visam adequar o Sistema Tributário Nacional aos novos princípios constitucionais tributários, com a necessária capacitação dos servidores públicos de forma a tornar transparentes as ações fiscais.

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[1] Cf. Decreto-Lei nº 4.657/1942, Artigo 20, Parágrafo único.

[2] Relatório, p. 14.

[3] Relatório, p. 16.

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 673.707/MG. Relator Ministro Luiz Fux. Julgado em 17/06/2015.

[5] CANOTILHO, J.J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 921.

[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Tribunal. Pleno. Relator: Ministro ROBERTO BARROSO Julgamento: 04/03/2015. Publicação: 08/05/2015.

[7] TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário: Constituição Financeira, Sistema Tributário e Estado Fiscal. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. v. I. p. 330.

[8] CANOTILHO, J.J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2000, p. 1.241.

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Carmen Silvia Lima de Arruda, Sergio André Rocha

Carmen Silvia Lima de Arruda
é juíza federal na Seção Judiciária do Rio de Janeiro, doutora em Sociologia e Direito pelo PPGSD/UFF, PhD em Direito Público pela Università di Pavia, mestre em Justiça Administrativa pela UFF, juris doctor pela University of Miami, com especialização em Direito Comparado, e autora do livro "O princípio da transparência", recém-lançado pela editora Quartier Latin.

Sergio André Rocha
é professor titular de Direito Financeiro e Tributário da Uerj, livre-docente em Direito Tributário pela USP, diretor vice-presidente da ABDF, advogado e parecerist

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