O Novo CPC e os reflexos no processo tributário administrativo
Maurício Pereira Faro e Bernardo Motta Moreira
Introdução
A Lei nº 13.105, publicada em 17 de março de 2015, que contempla o novo Código de Processo Civil (CPC), entrará em vigor um ano após sua publicação (art. 1.045).A aprovação desse novo Codex tem provocado uma profunda reflexão no meio jurídico e ensejado amplos debates.
Um grande avanço do novo CPC é, sem dúvida, a valorização dos precedentes judiciais. Novos instrumentos, como o incidente de resolução de demanda repetitiva (IRDR) e o mecanismo do recurso repetitivo, previsto de forma mais explícita e abrangente, para abarcar, inclusive, o Supremo Tribunal Federal, somam-se ao esforço de toda a comunidade jurídica para a criação de uma jurisprudência uniforme e estável. Além de minimizar a insegurança jurídica e a litigiosidade, as medidas irão proporcionar mais celeridade e, sobretudo, um tratamento igual entre os jurisdicionados. Ora, não basta o mero tratamento isonômico perante a lei, sendo fundamental que assim seja perante as decisões judiciais.
Não se pode perder de vista, contudo, como advertiu Hugo de Brito Machado, ao comentar sobre a nova lei processual, que ela deverá resolver alguns problemas, mas com certeza muitos outros serão por ela criados, porque as vantagens de uma nova lei podem ser apontadas por quem elabora o seu projeto, enquanto as desvantagens só podem ser apontadas por quem vivencia a sua aplicação.[1]
De há muito temos defendido a importância e a necessidade de que Administração Tributária reproduza a jurisprudência firmada do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça.[2] No atual contexto, a partir da vigência das novas regras processuais, fica ainda mais evidente que os órgãos administrativos, em especial os judicantes, apliquem os precedentes das Cortes Superiores.
O objeto deste estudo, portanto, é, sem qualquer pretensão de esgotar o tema, contribuir para os debates sobre as inovações e as alterações do novo código e o seu impacto no Direito Processual Tributário. Nosso foco, nesse momento, é desvendar eventuais efeitos das novas normas, sobretudo no Processo Tributário Administrativo. Dessa forma, analisar-se-á a importância da aproximação do Direito Processual Civil como Processo Administrativo Fiscal, de suma importância para o interesse público e para os contribuintes, bem como as implicações do novo CPC em relação ao respeito aos precedentes judiciais.
Processo Administrativo Tributário: inexistência de regramento uniforme nacional
Como se sabe, não foram integradas no texto do Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172, de 25.10.1966) as matérias concernentes ao processo tributário, uma vez que, segundo a Comissão Especial,[3] estas não estavam incluídas na competência legislativa federal sobre normas gerais de direito financeiro.[4]
Incluíram-se no CTN apenas alguns dispositivos relativos ao procedimento do lançamento tributário, à extinção das relações entre a Fazenda Pública e o contribuinte, substituindo os artigos referentes ao processo tributário, desconsiderados do texto do anteprojeto de Rubens Gomes de Sousa (artigos 184 a 190).
Certo é que o Código Tributário Nacional, justamente por ter tratado do aspecto procedimental do lançamento, matéria correlata, poderia ter ido além para ao menos traçar diretrizes e princípios do processo tributário. Confira-se os esclarecimentos de Gilberto de Ulhôa Canto:
Ao tempo da elaboração do projeto do Código Tributário Nacional vigente, cogitou-se da conveniência de se inserir nele um elenco de normas sobre processo. Como, entretanto, àquela época, o ‘anteprojeto do Gilberto’ ainda não tinha sido desenganadamente perdido, pareceu à comissão que não havia motivo para se disciplinar de modo formalmente exteriorizado como sendo disciplina de processo tributário, aquilo que, ao tempo, dada a afinidade de pensamentos dos demais membros da comissão do Código comigo, provavelmente seria uma repetição do que eu próprio já havia sugerido. Então, e só por esse motivo, o Código Tributário Nacional não dispôs, de modo expresso sobre processo tributário. A rigor, parece-me que, no Código, estariam bem dispostas algumas regras, como aquelas mínimas, de observância obrigatória, que figuraram no projeto de 1954, por se tratar de uma lei complementar.[5]
Ante a inexistência de um regramento nacional acerca do processo tributário e a dificuldade de uniformização de tais regras e princípios para todos os entes federados brasileiros, hoje sabemos o quanto seriam bem vindas as referidas disposições no texto do nosso Código Tributário.
Ao longo de sua história, as normas processuais fiscais brasileiras sempre apresentaram um caráter assistemático e lacunoso. Concordamos com Paulo Celso Bergstron Bonilha,[6] no sentido de que o retrospecto histórico nos deixa a conclusão de que, a despeito do evidente progresso alcançado pelo direito tributário material, principalmente após a codificação, o direito processual administrativo não o acompanhou a contento.
É certo que, num primeiro momento, a aplicação da legislação tributária como também as reclamações e impugnações daí advindas estavam regulamentadas na própria legislação fiscal.
Cada Regulamento (v.g., Regulamento do Imposto sobre Produtos Industrializados – RIPI, o Regulamento do Imposto de Renda – RIR, etc.) disciplinava, além das normas de direito material, certas normas de direito formal, com o escopo justamente de garantir os direitos subjetivos das partes envolvidas nessa relação jurídico-tributária, no seio da Administração Pública.
Pela própria história das regras processuais tributárias observa-se que a intensa mutação legislativa e a seqüência de leis, que se limitaram à correção de imperfeições flagrantes das anteriores, contribuíram para o descompasso entre a evolução e o progresso do direito substantivo tributário em relação ao direito processual, que permaneceu com uma legislação assistemática e fragmentária.
A doutrina não cuidou de acompanhar a evolução da aplicação da lei tributária e dos instrumentos, administrativos e judiciais, de garantia dos direitos emergentes dessa relação jurídica. Alberto Xavier estatui que “o desenvolvimento obtido no plano científico pelo chamado direito tributário material nunca foi acompanhado de esforços comparáveis no direito tributário formal, até há pouco atrofiado e subalternizado pela doutrina”.[7]
Por outro lado, temos percebido uma certa evolução do direito positivo relacionado ao processo administrativo, aliado ao aperfeiçoamento da dogmática.[8]No entanto, até os dias de hoje o Processo Administrativo Tributário brasileiro carece de uma ampla sistematização, visando a um funcionamento mais articulado e orgânico, nas diversas fases procedimentais.
Apesar de não existir um Código de Processo Tributário ou lei orgânica, “não se pode dizer que não haja um direito processual tributário brasileiro”, como assinalava Geraldo Ataliba, para quem, mesmo não havendo sistematização legal a respeito, devem ser aplicados princípios específicos a esse ramo do direito.[9]
No âmbito federal, por exemplo, o processo administrativo tributário permaneceu sem disciplina própria, regrado pelos preceitos de cada Tributo da União, até o advento do Decreto Federal nº 70.235, de 1972 (que rege a “determinação e exigência dos créditos tributários da União e o de consulta sobre a legislação tributária aplicável” – artigo 1°). Mencionado decreto foi recepcionado pela Carta de 1988 e, possui, atualmente, o status de lei ordinária.
Recentemente, preenchendo uma enorme lacuna no Direito Público brasileiro, adveio a Lei nº 9.784, de 1999, denominada Lei Geral do Processo Administrativo Federal – LGPAF, que, na dicção de seu art. 1º, “estabelece normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da Administração Federal”.
A própria Lei 9.784/1999 expressamente prevê sua aplicação subsidiária ao processo tributário, ao definir em seu artigo 69, que os procedimentos administrativos específicos “continuarão a reger-se por lei própria, aplicando-lhes apenas subsidiariamente os preceitos desta Lei”.
Não obstante tais regras, ainda assim, muitas vezes, o processo tributário administrativo tem que se socorrer às disposições do Código de Processo Civil. Vejamos a seguir.
A aplicação supletiva e subsidiária do Código de Processo Civil
De forma inovadora em relação ao código anterior, o novo CPC foi expresso quanto à sua aplicação supletiva e subsidiária, aos processos eleitorais, trabalhistas e também aos administrativos. Observe-se:
Art. 15. Na ausência de normas que regulem processos eleitorais, trabalhistas ou administrativos, as disposições deste Código lhes serão aplicadas supletiva e subsidiariamente.
O novo art. 15 estabelece a sua aplicação no Direito Processual Administrativo supletiva e subsidiariamente, compreendendo, portanto, o processo administrativo tributário, subespécie daquele. É interessante notar que,sendo a aplicação subsidiária e supletiva, devem ser aproveitadas as regras processuais do novo código não só na ausência de norma do processo administrativo, mas também, para complementação de matérias já previstas.
Sobre a aplicação subsidiária, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (anteriormente denominada Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro), o Decreto-Lei no 4.657/42, dispõe em seu art. 4o sobre o preenchimento de eventuais lacunas no ordenamento jurídico, estabelecendo que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.
A propósito do mesmo tema, o Código Tributário Nacional, ao dispor sobre a interpretação da legislação tributária, dispõe, em seu art. 108, que “na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará, sucessivamente, a analogia, os princípios gerais do direito tributário, os princípios gerais do direito público e a equidade”.
Dessa forma, na aplicaçãoo subsidiária o aplicador do Direito supera as lacunas e as antinomias porventura existentes entre o complexo normativo do direito positivo promovendo a integração da legislação subsidiária na legislação principal.Por seu turno, a aplicação supletiva tem por desiderato complementar as normas processuais, isto é, mesmo não havendo omissão na matéria na lei regente do PAF, deverá ser aplicado a lei processual civil, caso haja necessidade de complementação.
Em sua redação original, o projeto do novo CPC não especificava a aplicação supletiva e subsidiária. Apesar ter sido uma preocupação específica para o direito processual do trabalho, essa foi a lógica da emenda parlamentar apresentada ao projeto de lei no8.046/2010, na Câmara dos Deputados, que originou a Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Segundo o deputado federal Reinaldo Azambuja:
Justifica-se a alteração redacional do citado dispositivo porque, como é do pleno conhecimento dos operadores do direito que o processo trabalhista é lacunoso, em especial, no cumprimento (execução) da sentença e ou acórdão; sendo que neste caso específico tem sido utilizada a Lei no 6.830/80 (Lei de Execução Fiscal), que causa, com freqüência, muita celeuma e confusão. Acrescentamos o termo “subsidiariamente”, visando uma maior aplicabilidade e eficácia do dispositivo, em especial, quanto ao exposto acima. Com freqüência, os termos “aplicação supletiva” e “aplicação subsidiária” tem sido usados como sinônimos, quando, na verdade, não o são. Aplicação subsidiária significa a integração da legislação subsidiária na legislação principal, de modo a preencher os claros e as lacunas da lei principal. Já a aplicação supletiva ou complementar ocorre quando uma lei completa a outra.
Por outro lado, atualmente, antes mesmo de entrar em vigor o novo código, mesmo não existindo a norma expressa estabelecendo a aplicação subsidiária e supletiva do Código de Processo Civil ao processo administrativo fiscal, a aplicação já ocorre por força dos critérios para o preenchimento de lacunas na lei. Antonio da Silva Cabral assim leciona sobre o tema:
há regra no processo civil, segundo a qual o juiz não pode deixar de julgar, sob a alegação de que a lei não prevê solução para o caso que tem diante de si. […] Costuma-se dizer que há lacunas na lei, mas não as há no sistema jurídico de um país. Assim, para os casos omissos, vale-se o julgador do CPC, caso este ofereça solução não prevista na legislação processual fiscal.[10]
São inúmeros exemplos de casos julgados pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) em que houve aplicação do CPC. Vejam-se as seguintes ementas:
IRRF – ÔNUS DA PROVA – CPC ARTIGO 333 – APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA. A regra contida no artigo 333 do CPC é de aplicação subsidiária ao PAF. Cabe ao contribuinte a prova quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do fisco. Não comprovada a retenção pela fonte pagadora, tampouco o recolhimento por parte do beneficiário dos rendimentos, incabível o aproveitamento do respectivo valor na Declaração de Ajuste Anual. (Processo no 11030.001431/2008-18, Relator Rodrigo Santos Masset Lacombe, Acórdão no 2201-001.980, Sessão de 23 de janeiro de 2013).
FALHA NA INTIMAÇÃO – COMPARECIMENTO ESPONTÂNEO AO PROCESSO. O comparecimento espontâneo do interessado ao processo, do qual obteve cópia integral, supre qualquer eventual falha na intimação da decisão de primeira instância. Considera-se ocorrida a ciência na data do recebimento das cópias, contando a partir daí o prazo para interposição de recurso voluntário. Aplicação subsidiária do art. 214, § 1º, do CPC e do art. 26, § 5º, da Lei nº 9.784/1999. (Processo no 10930.005369/2003-12, Relator Waldir Veiga Rocha, Acórdão no 105-17274, Sessão de 16 de outubro de 2013).
Há entendimento majoritário do órgão judicante federal no sentido da aplicação subsidiária do art. 13 do atual Código de Processo Civil ao processo administrativo.
REPRESENTAÇÃO PROCESSUAL – FALTA/PARTE ILEGÍTIMA – Falta de instrumento de procuração – Duplo grau de jurisdição administrativa. O próprio sujeito passivo, em processo administrativo, ao contrário do judicial, pode subscrever impugnações e recursos. O fazendo através de Advogado, deverá ser anexado instrumento de procuração. Não estando o processo devidamente instruído com a mesma, deverá a autoridade julgadora a quo saneando o processo nos termos do art. 13 do CPC, intimar o contribuinte para anexá-la. Decisão que não conheça do recurso por falta de instrumento de procuração, sem antes intimá-lo nos termos supra, será nula por afetar o direito de defesa do contribuinte. Não sendo válida a decisão a quo, será nula a decisão de órgão julgador recursal enquanto pendente aquela, pois seria suprimida uma instancia julgadora, o que feriria o princípio do devido processo legal. Processo anulado a partir da decisão de primeira instancia, inclusive para que outra seja prolatada atacando o mérito. (Acórdão no 201-70.652, DOU de 22/09/1997).
É bom notar que outros “tribunais administrativos” seguem o mesmo procedimento. A título de exemplo, com fulcro na norma art. 336 do Código Tributário Municipal,[11]a antiga Junta de Recursos Fiscais de Belo Horizonte, atual Conselho Administrativo de Recursos Tributários do Município de Belo Horizonte (CART-BH), já aplicou a teoria da causa madura, prevista do art. 515, §3o, do atual Código de Processo Civil, diante de caso que chegou à segunda instância de julgamento oriundo de decisão terminativa. Confira-se a ementa de acórdão cuja relatoria foi um dos coautores do presente artigo:
TFEP – TAXA DE FISCALIZAÇÃO DE ENGENHOS DE PUBLICIDADE – REPETIÇÃO DE INDÉBITO – RECLAMAÇÃO EXORDIAL INTEMPESTIVA – SUPERAÇÃO DA ALEGAÇÃO DE INTEMPESTIVIDADE – CAUSA MADURA – LANÇAMENTOS EM ESTRITA CONSONÂNCIA COM CRITÉRIOS LEGALMENTE ESTABELECIDOS REFERENTES AOS CADEP”s N°s 0001 E 0002 – INEXISTÊNCIA DE VALORES A REPETIR – RECURSO VOLUNTÁRIO DESPROVIDO.
– A Taxa de Fiscalização de Engenhos de Publicidade fundada no poder de polícia tem como fato gerador a fiscalização exercida pelo Município sobre a instalação e a manutenção de engenho de publicidade, em observância à legislação municipal específica, nos termos do disposto nos artigos 9° e 10 da Lei n° 5.641/89, com nova redação dada pela Lei n° 8.725/03.
– Tratando-se de pedido de repetição de indébito, aplicável o prazo de 05 (cinco) anos, constante do art. 168, I, do Código Tributário Nacional, não havendo falar em intempestividade da exordial.
– Aplicável, ao caso, o princípio da causa madura, subsidiariamente e por analogia (art. 336 do Código Tributário Municipal), presentes que estão os pressupostos do §3° do art. 515 do CPC, hábeis a permitir o julgamento da lide, desde logo, pela Junta de Recursos Fiscais. (Acórdão nº: 8.833/3ª, data da publicação: 02/10/2010, processo nº: 01-156.451/08-37, Relator: Bernardo Motta Moreira).
Dessa forma, muito embora já haja essa nítida correlação entre o código processual e o processo administrativo fiscal, o novo art. 15 vem reforçar esse entendimento, estabelecendo a sua aplicação no Direito Processual Administrativo (aí incluído o PAF) de forma supletiva e subsidiária.
A sistematização dos precedentes no novo CPC
Os precedentes não constituem novidade em nosso sistema processual, mas claramente ganharam espaço e importância no novo CPC, como forma de agilizar os procedimentos e resguardar a segurança jurídica, evitando decisões conflitantes e contraditórias.
Comungando do entendimento que a doutrina especializada tem exarado, pode-se dizer que a sistematização dos precedentes consubstancia um dos grandes pontos de destaque no novo estatuto processual. Fredie Didier Jr. ressaltou que o novo CPC será o “primeiro regramento da história sobre o que é um precedente, quais são seus efeitos, quem se vincula a ele, como se interpreta, além de regular o direito a demonstrar que um caso não se encaixa no precedente”.[12]
Para fins deste estudo, cumpre tecermos considerações sobre as seguintes regras atinentes ao assunto:
4.1. A sistematização dos precedentes e a necessidade de fundamentação das decisões judiciais
Ao tratar dos elementos e dos efeitos da sentença, a Lei nº 13.105/2015 dispõe sobre o dever de fundamentação, com destaque para o respeito aos precedentes.Estabelece o § 1º do art. 489, em seus incisos IV e V, que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que, entre outros:
– se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos (inciso V);
– deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento (inciso VI).
É dizer: não será considerada fundamentada a decisão, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que, invocando um precedente, não mencione seu adequado enquadramento à hipótese sob julgamento. Igualmente, ao deixar de invocar o precedente, não poderá a decisão deixar de justificar sua não utilização.
Lado outro, caso não se utilize dos precedentes apontados, será necessário apontar eventual superação ou distinção, positivando, assim, a aplicação das conhecidas técnicas de confronto, interpretação e aplicação do precedente (distinguishing) e sua superação (overruling).[13]
De mais a mais, a sistematização dos precedentes se desdobra em distintas orientações aos Tribunais, com objetivo de estabilizar a interpretação e aplicação da norma.
Assim é que, ao tratar dos processos nos tribunais e dos meios de impugnação das decisões judiciais,no Livro III, da Parte Especial,a Lei nº 13.105/2015 começa as disposições gerais (Capítulo I, do Título I) com o seguinte comando: “os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente” (art. 926), seguindo-se em seus parágrafos a possibilidade de uniformização mediante súmulas que observarão as circunstâncias fáticas dos precedentes que as orientaram.
Em seguida, no art. 927, o novo código determina a necessidade de respeito aos precedentes, in verbis:
Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I – as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II – os enunciados de súmula vinculante;
III – os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
1º Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1º, quando decidirem com fundamento neste artigo.
2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
5º Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores.
Destarte, os Juízes e Tribunais, ao observarem as orientações dos Tribunais Superiores, não poderão “decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício” (art. 10), reafirmando que a decisão em desconformidade não será considerada fundamentada.
A sistematização segue com orientações que devem ser observadas quando houver alteração no entendimento que fora anteriormente consolidado, tendo em vista a segurança jurídica, a proteção da confiança e da isonomia (§ 4º).
Quando da alteração por parte do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, é possível promover-se a modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica (§ 3º).
4.2. Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas
O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas – IRDR –caberá sempre que identificada controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica questão de direito e de causar grave insegurança jurídica, decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes. Com efeito, de acordo com o art. 976, o novel incidente será cabível quando atendidos, simultaneamente, dois pressupostos, quais sejam:
– efetiva repetição de processos que contenham controvérsia sobre a mesma questão unicamente de direito (inciso I);
– risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica (inciso II).
O IRDR faz com que determinada questão de direito, comum a diversas demandas que passam a ser adjetivadas de “repetitivas”, seja submetida ao Tribunal de Justiça ou Tribunal Regional Federal, para fixação de um precedente. Cabe a um dos legitimados (juiz ou relator por ofício, partes e Ministério Público ou Defensoria Pública mediante petição, ambos os casos instruídos com documentos comprobatórios do preenchimento dos requisitos), requerer a uniformização do entendimento. Observe-se:
Art. 977. O pedido de instauração do incidente será dirigido ao presidente de tribunal:
I – pelo juiz ou relator, por ofício;
II – pelas partes, por petição;
III – pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública, por petição.
Parágrafo único. O ofício ou a petição será instruído com os documentos necessários à demonstração do preenchimento dos pressupostos para a instauração do incidente.
Segundo o art. 979, a instauração deverá ser imediatamente comunicada ao Conselho Nacional de Justiça, possibilitando ampla publicidade, a exemplo do que já ocorre nos casos de repercussão geral analisados pelo Supremo Tribunal Federal.
Distribuído o incidente, e depois de confirmada sua admissibilidade, nos termos do art. 982, o relator suspenderá os processos em trâmite no estado ou região e que versem sobre idêntica matéria pelo prazo de um ano, prazo no qual deverá ser julgado, tendo inclusive preferência sobre os demais feitos, excetuando-se aqueles de habeas corpus e com réus presos (art. 980).
Na análise da matéria, o relator poderá requisitar informações ao órgão onde inicialmente tramita a demanda, bem como será facultada manifestação ao Ministério Público. Nos termos do art. 983, “o relator ouvirá as partes e os demais interessados, inclusive pessoas, órgãos e entidades com interesse na controvérsia, que, no prazo comum de 15 (quinze) dias, poderão requerer a juntada de documentos, bem como as diligências necessárias para a elucidação da questão de direito controvertida, e, em seguida, manifestar-se-á o Ministério Público, no mesmo prazo”.
Após concluir o relator estar apto para julgamento com a conseqüente inclusão em pauta, e, após sessão onde os interessados poderão manifestar-se, lavrar-se-á acórdão que fixará a tese e que “abrangerá a análise de todos os fundamentos suscitados concernentes à tese jurídica discutida, sejam favoráveis ou contrários” (art. 984, § 2º).
Segundo o art. 985, incisos I e II, a tese será aplicável a todos os processos individuais ou coletivos que versem sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo tribunal, inclusive àqueles que tramitem nos juizados especiais do respectivo Estado ou região e aos casos futuros que versem idêntica questão de direito e que venham a tramitar no território de competência do tribunal, salvo revisão na forma do art. 986.
Da decisão do órgão colegiado caberá recurso especial ou extraordinário, conforme a situação (art. 987), com efeito suspensivo e presumindo-se a repercussão geral de questão constitucional eventualmente discutida (art. 987, § 1º). Apreciado o mérito pela corte superior, a decisão tomada, então, passará a vigorar em todo o território nacional.
Adotado o posicionamento, sua inobservância enseja reclamação (art. 985, § 1º) ao tribunal competente. Como todo precedente, sua revisão é possibilitada pelo mesmo tribunal, de ofício ou mediante requerimento dos legitimados mencionados no art. 974, inciso II.
Destaque-se que, nos termos do art. 932, IV, “c”, poderá o relator negar seguimento a recurso que vá de encontro ao entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência.
Como se pode perceber, o IRDR é mais uma técnica do novo CPC, para fazer prevalecer a isonomia entre os jurisdicionados, aumentando a previsibilidade das decisões judiciais e desestimulando a litigiosidade. Se assemelha ao regime hoje vigente dos recursos repetitivos, mas tramitará em segundo grau.
Com o incidente, serão fixados os precedentes, os quais representarão uma decisão tomada por órgão jurisdicional frente a um ou mais casos concretos deduzidos em juízo, cujo núcleo essencial tem o potencial de servir como paradigma para julgamentos posteriores em situações análogas.
A pacificação dos litígios no menor tempo possível é valor que deve ser prestigiado.Além disso, a introdução do referido incidente no ordenamento representa uma poderosa proposta para efetivar o valor equidade no âmbito do processo civil brasileiro. Se há somente uma lei para reger duas relações distintas, porém juridicamente idênticas, em hipótese alguma há de se admitir interpretações contraditórias na aplicação da norma legal.
Fixada a tese jurídica aplicável a um conjunto de demandas no qual se controverta a mesma questão de direito, acelera-se a construção da jurisprudência, estabilizando-se o sistema e tornando-o mais previsível. Limita-se, desse modo, a arbitrariedade e a injustiça. Será afastado, dessa forma, o risco de o jurisdicionado ver o seu direito tutelado de forma injusta e ao arrepio da lei.
Protege-se, assim, a confiança da população e dos operadores do direito, os quais estarão esclarecidos acerca do entendimento do Direito Positivo no âmbito do Poder Judiciário, evitando-se surpresas e frustrações. É a isso que se propõe o incidente ora analisado: trazer mais igualdade e segurança jurídica no âmbito do processo, veiculando, por via reflexa, mais Justiça nas suas decisões.
4.3. Ampliação dos efeitos do julgamento dos Recursos Extraordinário e Especial Repetitivos
A maior força das decisões tomadas sob o rito dos recursos repetitivos – seja em sede de recurso especial ou extraordinário – foi uma das grandes novidades do novo código.Para ter força e não ocasionar insegurança, a jurisprudência precisa ser estável e pacífica, assim como decisões sumuladas ou oriundas de julgados decorrentes dos incidentes de resolução de demandas repetitivas ou de recursos repetitivos.
De acordo com o art. 1.036 do novo código, sempre que houver multiplicidade de recursos extraordinários ou especiais com fundamento em idêntica questão de direito, haverá afetação para julgamento de acordo com as disposições previstas na nova lei, observado o disposto no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal e no do Superior Tribunal de Justiça.
O presidente ou o vice-presidente de Tribunal de Justiça ou de Tribunal Regional Federal selecionará 2 (dois) ou mais recursos representativos da controvérsia, que serão encaminhados ao Supremo Tribunal Federal ou ao Superior Tribunal de Justiça para fins de afetação, determinando a suspensão do trâmite de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitem no Estado ou na região, conforme o caso (§ 1o do art. 1036).
Trata-se de uma inovação na medida em que, no atual regime, disposto no art.543-C, a afetação do repetitivo provoca apenas o sobrestamento dos recursos especiais interpostos perante os tribunais de segunda instância.
Na nova lei, o §4º do art. 1.037 diz que “os recursos afetados deverão ser julgados no prazo de um ano e terão preferência sobre os demais feitos, ressalvados os que envolvam réu preso e os pedidos de habeas corpus”.Se o julgamento não ocorrer no prazo previsto, determina o §5º que a afetação será suspensa e os processos paralisados em primeira e segunda instância retomarão seu curso normal.
Com o novo CPC, as decisões em repetitivos, súmulas, repercussão geral e súmula vinculante do STF serão, de fato, vinculantes aos juízes de primeiro grau. Se uma sentença violar uma decisão, súmula ou repetitivo vai caber reclamação direta ao STJ ou ao STF (vide art. 927, transcrito acima).
No plano dos recursos repetitivos, a força vinculante da decisão havida sob esse método vai beneficiar em muito não só os tribunais, mas toda a sociedade brasileira. Gerará economia de tempo, economia de recursos para as partes e para os tribunais, evitará a criação de estoques de processos que tratam da mesma questão de direito e permitirá ainda a garantia da razoável duração do processo.
Os precedentes e sua necessária observância no Processo Administrativo Tributário
Além de privilegiar a celeridade e a economia processual, as novas medidas constantes do novo CPC prestigiam a uniformização e a estabilização da jurisprudência. Essa maior previsibilidade quanto ao teor das decisões que serão proferidas beneficia os litigantes, além de observara isonomia e a segurança jurídica (e seu corolário, a proteção da confiança), em face da repetição de processos que contenham a mesma controvérsia sobre questão de direito, material ou processual.
A discussão sobre a recepção dos julgados dos Tribunais pelas instâncias administrativas não é nova e sempre se revelou intrincada, haja vista a dificuldade em se definir quando a jurisprudência se tornaria pacífica de forma a autorizar, por exemplo, que não se efetue a atividade plenamente vinculada nos termos do art. 142 do CTN diante de um entendimento consolidado da Corte Maior. Ricardo Lobo Torres assim se manifestou sobre o tema:
Conclui-se, portanto, que a solução depende da análise de cada caso, para que a Administração, em nome da moralidade, recepcione o julgado quando entender que há expressiva convicção de que a jurisprudência já se tornou mansa e pacífica. Necessita-se da prévia ponderação de valores para que se possa afastar princípio de natureza constitucional diante de outro, da mesma hierarquia, que no caso específico se tenha tornado mais importante.[14]
Temos visto, nos últimos anos, uma preocupação da própria Administração Pública em preservar a unidade do ordenamento jurídico, uniformizando seus procedimentos e decisões de acordo com os precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça. Consideramos meritórias essas preocupações, sobretudo porque, em última análise, dão cumprimento ao princípio da isonomia, ao pretender dar tratamento igual a contribuintes que se encontrem em idêntica situação, independentemente se litigando perante o Poder Judiciário ou no contencioso administrativo.
Não se pode, por outro lado, perder de vista que, se no âmbito do processo administrativo federal tem havido uma evolução nesse sentido, pouco se tem avançado em relação aos processos em trâmite nos conselhos de contribuintes estaduais e municipais.
Ocorre que, com o advento do novo Código de Processo Civil,não há mais justificativa para a Administração Tributária, de qualquer ente tributante ou nível federativo, se esquivar do cumprimento dos precedentes exarados pelas Cortes Superiores.
5.1. A recepção dos julgados dos Tribunais na esfera administrativa de julgamento: o novo CPC e a moralidade administrativa
Consoante a doutrina de Misabel Derzi, a decisão judicial, no momento em que se firma em uma das alternativas possíveis de sentido dos enunciados legislativos, criando a norma específica e mais concreta do caso, e repetível para o mesmo grupo de casos, fecha as demais alternativas, antes possíveis. A partir dessa escolha judicial, temos um sentido unívoco para certo grupo de casos, sentido esse que preenche o conteúdo de uma norma de forma mais concreta do que a norma legal. Essa norma concreta (ratio decidendi) não é individual e estritamente aplicável inter partes. Tem vocação para aplicação aos casos iguais e futuros.[15]
Merece atenção o fato de que se essa norma judicial for considerada nos processos e procedimentos administrativo-tributários, resultará na redução da complexidade de um grupo de casos e vai ao encontro da legítima confiança gerada nos resultados desses casos iguais, em cumprimento do princípio da igualdade.
No dia 21 de dezembro de 2010, o Ministério da Fazenda editou a Portaria nº 586, que alterou o Regimento Interno do CARF, aprovado pela Portaria nº 256, de 2009, para inserir a obrigação de os relatores de recursos que estejam em trâmite no órgão reproduzirem em seus votos a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça. Confira-se:
Art. 62-A. As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional, na sistemática prevista pelos artigos 543-B e 543-C da Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973, Código de Processo Civil,deverão ser reproduzidas pelos conselheiros no julgamento dos recursos no âmbito do CARF.
Ou seja, pela sistemática, as decisões de mérito prolatadas em sede de repercussão geral e de recurso repetitivo deverão ser reproduzidas pelos conselheiros nos julgamentos do CARF.
Observe-se que, antes mesmo da entrada em vigor do novo código, as normas do PAF federal consolidam a cooperação entre os Poderes da República, impondo o alinhamento do julgamento feito pelo órgão administrativo fiscal às decisões definitivas emanadas dos Tribunais Superiores.
A própria Administração Fazendária já vinha reconhecendo que o desrespeito às decisões do STF e do STJ estava afetando a legitimidade do CARF, que, após a alteração legislativa, está a proferir julgados mais coerentes com o sistema e dando tratamento igual a contribuintes que se encontram em situações iguais.
Tal medida contribui, e muito, para que haja uma coerência entre as instâncias judiciais e administrativas e com a previsibilidade do contribuinte.A observância da jurisprudência dominante do STF e do STJ pelo CARF e a obrigatoriedade de os conselheiros daquele colegiado reproduzirem essas orientações jurisprudenciais em seus votos representa a mudança de um antigo paradigma vigente no CARF que, como órgão pertencente à Administração Pública, tinha como regra não afastar a aplicação de leis, tratados, acordos ou decretos, sob o argumento de inconstitucionalidade.
Essa nova orientação, a nosso ver, decorre de mandamento constitucional, sendo dispensável norma regimental com tais previsões, e deve, por isso mesmo, ser seguido por todas as instâncias administrativas de julgamento, de todos os entes tributantes.
Infelizmente, diversos órgãos administrativos de julgamento tributário de Municípios e Estados tem ignorado os entendimentos emanados dos Tribunais Superiores, na esfera judicial.
Para nós, a partir do advento do novo CPC e a valorização que o diploma deu aos precedentes judiciais que, como visto, devem ser reproduzidos pelos próprios juízes monocráticos, obriga, também que o julgador administrativo também siga tal orientação. É imperativa tal conduta da Administração judicante diante da moralidade administrativa e da proteção à confiança do administrado, na sua vertente de confiabilidade no ordenamento jurídico.
A uniformização se faz necessária e urgente para prestigiar o processo tributário administrativo, que não pode ser visto como uma mera instância a ser percorrida, mas como um instrumento de pacificação social e redução da complexidade.
Ressalte-se, por oportuno, forte na doutrina de Misabel Derzi, que o princípio da proteção da confiança ganha alta relevância na “continuidade da ordem jurídica”. Leciona a professora que a expressão tem como sinônimos a “inviolabilidade do ordenamento legal”, “confiabilidade”, “previsibilidade”, “diagnóstico precoce” e “segurança de orientação”. Está associada ao princípio da segurança jurídica, fruto do Estado de Direito. A confiabilidade do ordenamento jurídico e a previsibilidade das intervenções do Estado conduzem à proteção da confiança na continuidade da lei ou da norma.[16]
Trata-se de uma exigência do nosso Estado Democrático de Direito que o administrador público atue de modo isonômico e coerente em relação aos cidadãos. O princípio constitucional da isonomia, que prescreve a igualdade de tratamento, só pode ser concebido com uma interpretação uniforme dos comandos legais, atividade realizada pelos órgãos jurisdicionais, e, em decorrência, pelas instâncias administrativas. Além da efetivação da igualdade, a submissão do Estado à juridicidade deve se dar em respeito à própria segurança jurídica.[17]
A moralidade administrativa, ainda que tenha maior abstração, tem grande importância para proteção da confiança do administrado (e contribuinte), por ter como finalidade, além da conduta da Administração de acordo com a ética, que prevaleça um estado de confiabilidade e estabilidade nas relações entre a Fazenda e os contribuintes.
Gabriel Lacerda Troianelli ensina que, apesar da dificuldade de se estabelecer, abstratamente, uma regra de aferição da moralidade administrativa, é possível, em cada caso concreto, saber se determinado ato administrativo terá, ou não, violado o princípio da moralidade por meio da ofensa a alguma de suas manifestações, como as regras da lealdade e boa-fé.[18]
5.2. A recepção dos julgados dos Tribunais Superiores pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e pela Receita Federal do Brasil
Por vislumbrar a “força persuasiva especial e diferenciada” das decisões de mérito prolatadas em sede de repercussão geral e de recurso repetitivo, cujo advento torna remoto o êxito de eventual impugnação, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional – PGFN – chegou à conclusão de que não mais deverá contestar ou interpor recursos quando a tese sustentada pela parte contrária ou a decisão judicial fundar-se em julgado proferido na forma dos arts. 543-B e 543-C do CPC (Parecer PGFN/CRJ nº 492, de 2010).
Ainda com o desiderato de conferir maior racionalidade e uniformidade à defesa da Fazenda Nacional em juízo, a Portaria PGFN nº 294, de 2010, contemplou, no rol de situações em que se autoriza a não apresentação de contestação e/ou a não interposição de recursos, bem como a desistência dos já interpostos, os casos em que a demanda e/ou a decisão tratar de questão já definida, pelo STF ou STJ, em sede de julgamento realizado na forma dos arts. 543-B e 543-C do CPC, respectivamente.
Para coroar a evolução normativa e a tendência em se prestigiar a missão constitucional do STF e do STJ, foi publicado no Diário Oficial da União do dia 5 de julho de 2013, o despacho do Ministro da Fazenda aprovando os termos do Parecer PGFN/CDA/CRJ nº 396/2013, que concluiu que a existência de dispensa de impugnação judicial em virtude de tese julgada sob a sistemática dos recursos repetitivos, deve implicar na abstenção de fiscalização e de novos lançamentos; impedimento aos procedimentos de cobrança dos créditos já constituídos, inclusive quando submetidos a parcelamento; impedimento às restrições quanto à regularidade fiscal e à inscrição no CADIN; óbice ao envio dos créditos já constituídos para inscrição em dívida ativa pela PGFN. A dispensa de contestação e recursos judiciais não implica, de per si, concordância com a tese contrária aos interesses da Fazenda Nacional.
Dessa forma, não só os órgãos administrativos federais judicantes, mas também os próprios setores de fiscalização da Administração ativa federal ficarão obrigados a não cobrar créditos fiscais nem fazer autos de infração referentes a teses já decididas pelo sistema da repercussão geral ou dos recursos repetitivos.
Com a aprovação do novo parecer, compatibilizou-se o exercício das atribuições de inscrição, administração e cobrança administrativa e judicial da dívida ativa da União, com a diretriz encampada pela Fazenda Nacional em juízo de não contestar e não recorrer, o que decorre da interpretação e da aplicação dos imperativos da legalidade, da isonomia, da eficiência administrativa e da proporcionalidade.
Essa nova orientação é muito positiva, consolidando a conscientização da Administração de respeitar o contribuinte, dando tratamento isonômico, reduzindo a litigiosidade e trazendo celeridade aos tribunais.
Carecia ainda o ordenamento jurídico de uma lei em sentido formal regulando o assunto e determinando a vinculação da fiscalização às decisões proferidas pelo STF e STJ por meio de repercussão geral e recurso repetitivo. A aprovação de uma lei sobre o assunto era, inclusive, uma exigência da própria Secretaria da Receita Federal do Brasil, justamente para dar segurança aos auditores fiscais, que poderiam ser responsabilizados por deixar de cumprir a função de fiscalizar e autuar.
Sobreveio, assim, a Lei nº 12.844, de 19 de julho de 2013, que alterou a Lei nº 10.522/2002[19], prevendo a vinculação da RFB às decisões judiciais desfavoráveis à Fazenda Nacional proferidas em Recursos Extraordinários com Repercussão Geral (STF) ou em Recursos Especiais Repetitivos (STJ), após expressa manifestação da PGFN.
Nos termos do art. 3º da Portaria Conjunta PGFN/RFB nº 1/2014, regulamentadora das alterações legislativas acima mencionadas, a manifestação da PGFN dar-se-á por meio de notas explicativas, que conterão a delimitação da matéria decidida e os esclarecimentos e/ou orientações sobre questões suscitadas pela RFB.
Essa nova portaria conjunta, publicada em 17 de fevereiro de 2014, formaliza a troca de informações entre a PGFN e a RFB na hipótese de ser proferida decisão favorável aos contribuintes, seja em controle concentrado de constitucionalidade, seja em Recursos Extraordinários com repercussão geral reconhecida, bem como, em recursos especiais repetitivos, obedecendo à sistemática dos artigo 543-B e 543-C do Código de Processo Civil.
Para reforçar e coroar essas alterações legislativas, o advento do novo CPC, trazendo mais espaço e valor aos precedentes judiciais, proporciona maior segurança jurídica e previsibilidade ao contribuinte, garantindo a uniformidade na aplicação das regras tributárias, e, sobretudo, o tratamento isonômico na aplicação administrativa da lei tributária para casos semelhantes.
É imperioso, a partir do advento do novo CPC, que as Administrações Tributárias dos Estados e dos Municípios brasileiros também se atentem para esse novo paradigma que ora exsurge, que tem muito a salvaguardar interesses do cidadão contribuinte.
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[1] MACHADO, Hugo de Brito. “O Novo CPC”. Jornal O Povo, de 30/6/2010. Disponível em: . Acesso em 20/4/2015.
[2] Um dos coautores desse artigo, na condição de Presidente da Comissão Especial de Assuntos Tributários da OAB/RJ tem colaborado com a seccional para que a Procuradoria-Geral do Estado e a Secretaria da Fazenda passem a observar os precedentes do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça ao julgar os autos de infração e contestações dos contribuintes, objetivando evitar litígios desnecessários.
Recentemente noticiou o site Consultor Jurídico que “pedido nesse sentido já fora feito pela OAB-RJ, por meio da Comissão de Assuntos Tributários da entidade, em maio do ano passado. Em ofício encaminhado à PGE, a seccional destacou que medida semelhante já foi adotada pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda, que chegou a alterar o regimento interno para determinar aos conselheiros que reproduzam, nos casos que chegam ao órgão, as decisões definitivas proferidas nos casos idênticos pelos tribunais superiores, na sistemática de repercussão geral (“OAB-RJ pede a secretaria de Fazenda que observe precedentes”. Disponível em: , acesso em 22/4/2-15).
Ainda sobre o tema vide obra do também coautor: MOREIRA, Bernardo Motta. Controle do Lançamento Tributário pelos Conselhos de Contribuintes. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.
[3] BRASIL. Ministério da Fazenda. Trabalhos da Comissão Especial do Código Tributário Nacional. Rio de Janeiro: Ministério da Fazenda, 1954, pp. 90-215.
[4] Constituição da República de 1946: “Art. 5º – Compete à União: XV – legislar sobre: b) normas gerais de direito financeiro; de seguro e previdência social; de defesa e proteção da saúde; e de regime penitenciário”.
[5] CANTO, Gilberto de Ulhôa. “Do Processo Tributário Administrativo”. In: Teoria do Direito Tributário, Curso Editado pela Secretaria da Fazenda de São Paulo, São Paulo: 1975, p. 95 apudBONILHA, Paulo Celso Bergstron. Da prova no Processo Administrativo Tributário. 2ª edição, São Paulo: Dialética, 1997, p. 32-33.
[6]BONILHA, Paulo Celso Bergstron. Da prova no Processo Administrativo Tributário. 2ª edição, São Paulo: Dialética, 1997, p. 37.
[7] XAVIER, Alberto Pinheiro. Do Lançamento: Teoria Geral do Ato, do Procedimento e do Processo Tributário. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 6.
[8] Por todos os excelentes autores que já se debruçaram sobre o tema do processo administrativo tributário, vale citar e recomendar a obra do Professor Sergio Andre Rocha: ROCHA, Sergio André. Processo Administrativo Fiscal: Controle Administrativo do Lançamento Tributário. 4ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
[9] RIBAS, Lídia Lopes. “Processo Administrativo Tributário em Perspectiva da Cidadania Democrática”. In: ROCHA, Sergio André (Coord.). Processo Administrativo Tributário: Estudos em Homenagem ao Professor Aurélio Pitanga Seixas Filho. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 393.
[10] CABRAL, Antônio da Silva. Processo administrativo fiscal. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 43.
[11] “Art. 336. Aos casos omissos ou contraditórios serão aplicadas as disposições da lei federal atinente à espécie”.
[12] DIDIER JUNIOR, Fredie. “Reconhecimento de precedente judicial é principal mudança do Novo Código de Processo Civil”. 2013. Disponível em: . Acesso em: 11 abril de 2015.
[13] “Fala-se em distinguishing (ou distinguish) quando houver distinção entre o caso concreto (em julgamento) e o paradigma, seja porque não há coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base à ratio decidendi (tese jurídica) constante no precedente, seja porque, a despeito de existir uma aproximação entre eles, alguma peculiaridade no caso em julgamento afasta a aplicação do precedente. (…) Overruling é a técnica através da qual um precedente perde a sua força vinculante e é substituído (overruled) por outro precedente. Como esclarece LEONARDO GRECO, o próprio tribunal que firmou o precedente pode abandoná-lo em julgamento futuro, caracterizando o overruling. Assemelha-se à revogação de uma lei por outra. Essa substituição pode ser (i) expressa (expressoverruling), quando um tribunal resolve, expressamente, adotar uma nova orientação, abandonando a anterior; ou (ii) tácita (impliedoverruling), quando uma orientação e adotada em confronto com posição anterior, embora sem expressa substituição desta última – trata-se de hipótese rara”. (DIDIER Jr., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. “Curso de Direito Processual Civil”. Vol. II. 12ª ed. Salvador: JusPodivm, 2010, p. 393).
[14] TORRES, Ricardo Lobo. “Processo Administrativo Tributário”. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord.). Processo Administrativo Tributário. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais: Centro de Extensão Universitária, 1999, p. 167.
[15] DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência: proteção da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao poder judicial de tributar, São Paulo: Noeses, 2009, p. 257.
[16] DERZI, Misabel Abreu Machado. Modificações da jurisprudência: proteção da confiança, boa-fé objetiva e irretroatividade como limitações constitucionais ao poder judicial de tributar, São Paulo: Noeses, 2009, p. 407.
[17] Como assevera José Augusto Delgado ao tratar da imprevisibilidade das decisões judiciais, “nós temos que ver a segurança jurídica como sendo um valor extrajurídico. Segundo, a segurança jurídica como previsibilidade jurídica. E terceiro, a segurança jurídica como um conjunto de garantias constitucionais. Então, nós temos três patamares estabelecidos, três posturas estruturais determinando o que é segurança jurídica. O Direito não pode se afastar dessas três posturas: os aplicadores do Direito precisam trabalhar vendo a segurança jurídica como um valor extrajurídico, como previsibilidade jurídica, através dos efeitos concretos que aquela decisão vai determinar, e também como um conjunto de garantias constitucionais” (DELGADO, José Augusto. “A imprevisibilidade das decisões judiciais”. Revista Internacional de Direito Tributário, v. 8, jul./dez. 2007, Belo Horizonte: Del Rey, p. 394).
[18] TROIANELLI, Gabriel Lacerda. “Os Princípios do Processo Administrativo Fiscal”. In: ROCHA, Valdir de Oliveira (Coord.). Processo Administrativo Fiscal, 4º vol., São Paulo: Dialética, 1999, p. 72.
[19] Art. 19. Fica a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional autorizada a não contestar, a não interpor recurso ou a desistir do que tenha sido interposto, desde que inexista outro fundamento relevante, na hipótese de a decisão versar sobre: (Redação dada pela Lei nº 11.033, de 2004)
I – matérias de que trata o art. 18;
II – matérias que, em virtude de jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal, do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Superior do Trabalho e do Tribunal Superior Eleitoral, sejam objeto de ato declaratório do Procurador-Geral da Fazenda Nacional, aprovado pelo Ministro de Estado da Fazenda; (Redação dada pela Lei nº 12.844, de 19 de julho de 2013)
III – (VETADO). (Incluído pela Lei nº 12.788, de 2013)
IV – matérias decididas de modo desfavorável à Fazenda Nacional pelo Supremo Tribunal Federal, em sede de julgamento realizado nos termos do art. 543-B da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil; (Incluído pela Lei nº 12.844, de 19 de julho de 2013)
V – matérias decididas de modo desfavorável à Fazenda Nacional pelo Superior Tribunal de Justiça, em sede de julgamento realizado nos termos dos art. 543-C da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, com exceção daquelas que ainda possam ser objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal. (Incluído pela Lei nº 12.844, de 19 de julho de 2013)
1º Nas matérias de que trata este artigo, o Procurador da Fazenda Nacional que atuar no feito deverá, expressamente: (Redação dada pela Lei nº 12.844, de 19 de julho de 2013)
I – reconhecer a procedência do pedido, quando citado para apresentar resposta, inclusive em embargos à execução fiscal e exceções de pré-executividade, hipóteses em que não haverá condenação em honorários; ou (Incluído pela Lei nº 12.844, de 19 de julho de 2013)
II – manifestar o seu desinteresse em recorrer, quando intimado da decisão judicial. (Incluído pela Lei nº 12.844, de 19 de julho de 2013)
2º A sentença, ocorrendo a hipótese do § 1º, não se subordinará ao duplo grau de jurisdição obrigatório.
3º Encontrando-se o processo no Tribunal, poderá o relator da remessa negar-lhe seguimento, desde que, intimado o Procurador da Fazenda Nacional, haja manifestação de desinteresse.
4º A Secretaria da Receita Federal do Brasil não constituirá os créditos tributários relativos às matérias de que tratam os incisos II, IV e V do caput, após manifestação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional nos casos dos incisos IV e V do caput. (Redação dada pela Lei nº 12.844, de 19 de julho de 2013)
5º As unidades da Secretaria da Receita Federal do Brasil deverão reproduzir, em suas decisões sobre as matérias a que se refere o caput, o entendimento adotado nas decisões definitivas de mérito, que versem sobre essas matérias, após manifestação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional nos casos dos incisos IV e V do caput. (Redação dada pela Lei nº 12.844, de 19 de julho de 2013)
6º (VETADO). (Incluído pela Lei nº 12.788, de 2013)
7º Na hipótese de créditos tributários já constituídos, a autoridade lançadora deverá rever de ofício o lançamento, para efeito de alterar total ou parcialmente o crédito tributário, conforme o caso, após manifestação da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional nos casos dos incisos IV e V do caput. (Incluído pela Lei nº 12.844, de 19 de julho de 2013)
Fonte site Jota
Maurício Pereira Faro e Bernardo Motta Moreira
Maurício Pereira Faro
Advogado no Rio de Janeiro e em Brasília; Conselheiro Titular da Primeira Seção do CARF; Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho; Professor dos cursos de Pós-Graduação em Direito Tributário da PUC-RJ e FGV/RJ e Presidente da Comissão Especial de Assuntos Tributários da OAB/RJ.
Por Bernardo Motta Moreira
Advogado em Belo Horizonte; Conselheiro do Conselho de Contribuintes do Estado de Minas Gerais; Mestre em Direito pela UFMG; Professor de cursos de Pós-Graduação das Faculdades Milton Campos e do bacharelado em Direito do Centro Universitário UNA;Consultor efetivo da ALMG; Membro da Comissão de Direito Tributário da OAB/MG.