O IVA europeu e a reforma
Pilar Coutinho
Pilar Coutinho
Consultora tributária na HerreveldvandenHurk & Partners, professora e pesquisadora na PUC Minas, onde fez doutorado com período de investigação na ULisboa
Não dá para negar: a inspiração mais clara da discutida reforma tributária sobre o consumo é o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) europeu. Isso fica claro nas propostas atuais que abrangem a substituição ou concentração de tributos, a manutenção de um imposto seletivo, a não cumulatividade plena e a adoção do princípio da tributação no destino.
Por tal motivo, fica tão interessante vislumbrar como o IVA real se constituiu dentro da União Europeia, a considerar as diversas forças políticas e realidades econômicas que alteraram o IVA teórico, ou seja, aquele concebido no ambiente perfeito da mente de economistas e juristas.
No IVA europeu há isenções ou alíquotas diferenciadas para serviços e bens muito específicos
Vale a pena começar com dois elementos do modelo IVA: a substituição ou concentração de tributos e a manutenção de um imposto seletivo. Deveras, a concentração não foi total eis que elementos culturais dos diversos países demandaram tributação diferenciada para alguns produtos específicos com forte viés extrafiscal. Em Portugal, por exemplo, existem impostos especiais sobre o consumo a abranger produtos como tabaco, álcool, bebidas adicionadas de açúcar.
Mas, sobretudo, o que se chama de IVA, como se fosse um bloco monolítico, abrange diversos subtipos. Assim, há uma categoria do IVA sobre bens tangíveis com relevantes peculiaridades no caso de operações domésticas, extracomunitárias ou intracomunitárias. Há ainda o IVA sobre a prestação de serviços, que abrange qualquer operação que não constitua uma entrega de bens.
Essa classificação tem impactos significativos sobre a qual Estado membro o tributo é devido, eis que o princípio do destino também não é aplicado de forma absoluta. Para além disso, tratar-se de comércio tradicional ou e-commerce, destinação a consumidores finais ou não, tipo de objeto envolvido, também pode levar a aplicação da tributação na origem. Nesse ponto, prevalece uma ideia de praticabilidade junto com garantia de arrecadação.
Claro que não se compara com a nossa tributação sobre o consumo. O nossos “IVAs” são muitos mais. Além da óbvia abrangência de muitos tributos, o próprio e mais controverso tributo sobre o consumo, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) não tem apenas uma identidade. É possível dizer que temos o ICMS-Mercadorias, o ICMS-Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal / Comunicações e o ICMS-Importação. Isso se não quisermos contabilizar o ICMS interestadual, que também possui dinâmicas próprias.
De qualquer modo, a diferença entre o IVA europeu e a tributação sobre o consumo no Brasil é abissal. No primeiro caso, em termos de imposto a pagar, há pouca diferença na incidência sobre bens tangíveis e intangíveis, havendo também pouco espaço para não tributações. Como as alíquotas, em regra, são as mesmas para cada um dos subtipos, não há tanta dança e manejo para que uma atividade se encaixe em um ou outro subtipo de IVA.
O que não significa que o IVA opera com apenas uma alíquota. Existe uma alíquota padrão, e duas outras reduzidas. Embora a aplicação das alíquotas dependa de cada Estado, as diretivas IVA (ou seja, normas gerais da União Europeia) padronizam a que bens e serviços essas podem se aplicar.
Isenções podem ser concedidas pelos Estados nos limites da diretiva. É o caso, por exemplo, da hospitalização, assistência médica, educação formal etc.
Portanto, a ideia de neutralidade plena, que demanda uma não cumulatividade funcional, sem medidas desonerativas ao longo da cadeia produtiva, é comprometida. Tal será especialmente complicado quando uma mesma entidade realizar atividades isentas e não isentas. A solução europeia é lidar com uma espécie de creditamento proporcional chamado pro rata. Obviamente, em alguma medida com comprometimento da simplicidade tributária, em prol do interesse público.
No nosso caso, dizer que há uma tributação sobre o consumo hoje com não cumulatividade, ainda que imperfeita, seria ser demasiado generoso. O que há são tributos com algum grau de não cumulatividade. Além disso, os tributos sobre o consumo são muitas vezes cumulativos uns com os outros.
Não há no IVA europeu seletividade tributária nos modelos brasileiros, o que há, como dito acima, são isenções ou alíquotas diferenciadas para serviços e bens muito específicos, autorizada em diretiva, mas aplicada conforme interesse dos entes federados. A ausência de uma seletividade tributária, com imensas variações de alíquotas para produtos muitas vezes de consumo parecido, tem o ganho da evidente redução da complexidade e de criatividades abusivas: o puxa e estica das classificações fiscais.
Obviamente, nesses países com índices menos alarmantes de desigualdade social, melhores serviços públicos, uma tributação da renda mais universal e, ao mesmo tempo, mais realista em seu ajuste à capacidade contributiva, falar em seletividade, cashback, regressividade da tributação sobre o consumo, pode parecer, simplesmente, colocar chifre na cabeça de cavalo.
Ao mesmo tempo, afirmar que o modelo IVA é implantado no mesmo formato de laboratório em todos os países, é fingir não ver os cornos na cabeça do boi.
Pilar Coutinho
colaboradora do blog Fio da Meada, consultora tributária na HerreveldvandenHurk & Partners, professora e pesquisadora na PUC Minas, onde fez doutorado com período de investigação na ULisboa