O controle judicial da seletividade do IPI
Marcus de Freitas Gouvêa
1. Introdução; 2. O RE 606.314 RG/PE e a tributação indireta da água mineral; 3. A possibilidade de controle da seletividade do IPI; 4. Os fatores relevantes para a fixação e controle das alíquotas do IPI; 5. Conclusão.
1. Introdução
Uma das características mais festejadas do Imposto sobre Produtos Industrializados – IPI é sua seletividade obrigatória, em função da essencialidade do produto, nos termos do art. 153, IV, § 3º, I, da CF/88:
Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
IV – produtos industrializados;
[…]
§ 3º O imposto previsto no inciso IV:
I – será seletivo, em função da essencialidade do produto;
[…]
A seletividade, ao lado da flexibilização do imposto face os princípios da legalidade e da anterioridade do exercício, são apontados como suas principais notas extrafiscais.
De fato, o conjunto formado pela multiplicidade de alíquotas e a possibilidade de sua alteração por ato do Poder Executivo em curto prazo permite que o imposto seja utilizado como instrumento de política econômica conjuntural, seja na redução de alíquotas com vigência imediata ou com a elevação de alíquotas, com vigência no prazo de 90 dias[1].
A doutrina já se debateu muito acerca da seletividade, quanto a seu conteúdo, a seu destinatário e a possibilidade de seu controle: entende tratar-se de um comando apenas relativamente discricionário, pois decorre do princípio da capacidade contributiva[2] e visa a proteção do contribuinte de fato, o consumidor do produto industrializado[3] considerado essencial. Dessa maneira, se o legislador transbordar os limites desta discricionariedade[4], notadamente a vedação de arbitrariedade, regressividade e discriminação[5], a alíquota excessiva ou arbitrária poderia ser rejeitada pelo controle judicial[6].
O Poder Judiciário, também tem enfrentado o tema, especialmente diante de normas que estabeleceram alíquotas relativamente elevadas do IPI para produtos essenciais, tais como o açúcar e equipamentos médicos.
Nestes casos, o STF tem entendido que a seletividade não confere imunidade, sendo possível o estabelecimento de alíquotas positivas a produtos essenciais e que não cabe ao Judiciário apreciar o mérito administrativo das políticas públicas extrafiscais levadas a efeito por meio dos tributos nem agir como legislador positivo, na fixação de alíquotas ou na concessão de isenções[7].
A matéria, porém, está novamente em discussão, no RE 606.314 RG/PE.
Neste texto, vamos buscar elementos que podem orientar a decisão do STF, no julgamento do recurso.
2. O RE 606.314 RG/PE e a tributação indireta da água mineral
No RE 606.314 RG/PE, alega-se que a tributação do vasilhame da água mineral implica tributação, ao menos indireta, de produto absolutamente essencial, violando assim o princípio da essencialidade positivado na Constituição.
Aduz-se que a alteração da Tabela de Incidência do Imposto sobre Produtos Industrializados – TIPI de embalagens para acondicionamento de água mineral. Na redação do Decreto 2.092/96, o produto era classificado como embalagem para alimentos e tributado à alíquota zero, da mesma forma que a água mineral. A TIPI do Decreto 3.777/01, a seu turno, previu rubrica específica “garrafões, garrafas, frascos e artigos semelhantes”, com a alíquota de 15%, afastando a classificação do produto como “embalagem para alimentos”. Discute-se, pois, se a tributação do insumo não ofenderia a seletividade, pois oneraria o produto final, eximido da obrigação.
De fato, em tabelas anteriores do imposto sobre produtos industrializados, a alíquota para o vasilhame para água mineral era zero. A partir do Decreto 3.777/01, os vasilhames para água mineral passaram a ser classificados em conjunto com outros vasilhames plásticos e a sofrer tributação, hoje definida em 15%, conforme Decreto 7.660/11 (posição 3923.30.00, da TIPI vigente).
Nestes termos, o produto final, água mineral envasada, sofre incidência do IPI, não sobre o conteúdo (a água), mas pela carga tributária que incide sobre a embalagem, qual seja, o copo plástico, a garrafa ou o garrafão.
Mesmo que a incidência seja parcial, vale dizer, não incide sobre o valor total do produto acabado, mas somente no custo da embalagem no produto final, não se pode negar que há tributação indireta de bem essencial.
Ao apreciar a matéria, o STF entendeu pela existência dos requisitos da repercussão geral e assim decidiu:
TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE PRODUTOS INDUSTRIALIZADOS. SELETIVIDADE. APLICAÇÃO DE ALÍQUOTA MAIS FAVORÁVEL À OPERAÇÃO DE INDUSTRIALIZAÇÃO DE EMBALAGENS. ALEGADA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SELETIVIDADE. SUSTENTADA APLICAÇÃO APENAS ÀS INDÚSTRIAS ALIMENTÍCIAS. PROPOSTA PELO RECONHECIMENTO DA REPERCUSSÃO GERAL.
Proposta pelo reconhecimento da repercussão geral da possibilidade de o Judiciário estabelecer alíquota inferior àquela correspondente à classificação do produto que a autoridade fiscal entende como correta. Ademais, discute-se se tais critérios teriam ou não sido respeitados pelo Tribunal de origem neste caso, que envolve a produção de embalagens para acondicionamento de água mineral.
(STF; RE 606.314 RG/PE; Min. Joaquim Barbosa; DJe de 10/2/2012)
No inteiro teor da decisão, destacou o Relator:
O princípio da seletividade obriga a União a calibrar a carga do IPI conforme a essencialidade, a utilidade, a nocividade e a ociosidade do produto. Sem me comprometer de pronto com qualquer das teses sobre a matéria, registro que se discute a possibilidade de o Poder Judiciário controlar as alíquotas e as bases de cálculo do tributo a partir do exame da motivação dos atos legais emitidos pelos Poderes Legislativo e Executivo.
Em posição antípoda, argumenta-se que a motivação que revela o conceito de seletividade adotado é imune ao controle judicial, pois se trataria de ato pertencente à esfera decisória do executivo, segundo os critérios da conveniência e da oportunidade.
Duas questões, portanto, ocupam o STF no RE 606.314 RG/PE: a primeira, acerca da possibilidade de controle judicial do mérito do ato administrativo, e, a segunda, acerca dos limites da discricionariedade na definição das alíquotas do IPI.
Prevalecendo a possibilidade do controle, é necessário levantar algumas ponderações levado em conta pelo Judiciário, no desempenho desta tarefa.
3. A possibilidade de controle da seletividade do IPI
A jurisprudência do STF é firme ao impedir o Judiciário de apreciar o mérito administrativo.
De fato, deve-se respeitar, na atuação do Poder Executivo, o princípio da separação dos poderes, de modo que o representante eleito pelo povo seja livre para definir as políticas públicas, os objetivos pretendidos e os meios necessários para alcançá-los. Enfim, o Executivo deve ser livre para escolher os atos que irá praticar.
Nesse sentido, a essência do mérito do ato administrativo encontra-se protegida de interferência tanto do Poder Judiciário quanto do Legislativo.
Este não é, porém, o caso da seletividade do IPI, que não diz respeito à essência do mérito administrativo, vale dizer, ao direito de escolha pelo Poder Executivo do ato a ser praticado, mas às regras impostas pelo legislador a tal ato, uma vez que a administração resolva praticá-lo.
Em outros termos, não está em questão a essência do mérito administrativo quanto a escolha do ato a ser praticado, imune ao controle, mas os critérios e requisitos do ato, definidos pelo legislador, estes, sim, sujeitos ao controle judicial.
Na fixação das alíquotas do IPI, a administração não age com discricionariedade ampla, mas subordinada a critérios, de modo que o Executivo atua com discricionariedade relativa ou parcial, sujeita ao controle jurisdicional, nos limites da restrição imposta pelo legislador.
Em sua leitura mais tradicional, o princípio da seletividade do IPI apresenta dois critérios básicos para a fixação das alíquotas do imposto: a essencialidade do produto para o consumo humano, que decorre da literalidade do art. 153, IV, § 3º, I, da CF/88 e a presença do produto no consumo das camadas mais pobres da população, que deriva da conjugação do art. 153, IV, § 3º, I, da CF/88 com os art. 1°, III, e 145, § 1º, também da Carta Constitucional.
Daí decorrem duas recomendações: quanto mais essencial for o produto para o consumo humano, mais baixa deve ser a alíquota e quanto mais presente no consumo das camadas mais pobres da população, também mais baixa deve ser a alíquota do imposto.
Veremos adiante os fatores relevantes para a fixação das alíquotas do IPI. Por hora, cabe constatar que a Constituição estabelece critérios para a aplicação do princípio da seletividade no tributo pelo Executivo, de modo que estes critérios estão sujeitos ao controle.
Em síntese, a existência de critérios (no caso constitucionais), recomenda a possibilidade do controle judicial. Nos atos administrativos, em geral, vigora discricionariedade ampla, cabendo ao Executivo decidir qual medida pretende tomar e qual finalidade almeja alcançar. Na seletividade do IPI, contudo, há discricionariedade relativa, orientada por critérios, que se perderiam não houvesse o correspondente controle.
4. Os fatores relevantes para a fixação e controle das alíquotas do IPI
Os critérios estabelecidos pelo legislador constituinte, contudo, não são absolutos, pois a aferição da essencialidade não é trivial e a capacidade contributiva e a pessoalidade nos tributos sobre o consumo não se permitem mensurar, senão indiretamente, transformam, por si, a definição das alíquotas dos múltiplos produtos sujeitos ao IPI em tarefa bastante complexa.
Dessa forma, o controle judicial da seletividade do IPI não pode seguir a metodologia conceitual clássica da subsunção, nem ser estendida ao controle de qualquer ato administrativo, mas deve apreciar as alíquotas estabelecidas por critérios fluidos, vedando apenas a arbitrariedade, a regressividade e a discriminação injustificada, bem como limitar-se à hipótese específica.
Ademais, literatura e jurisprudência acolhem outros critérios que podem influenciar a decisão do legislador na definição das alíquotas do imposto, especialmente razões extrafiscais, relacionadas a valores constitucionais e a políticas públicas, que podem legitimar determinadas discriminações compatíveis ou mesmo desejadas pelo ordenamento jurídico.
Diversos valores e princípios constitucionalmente positivados reclamam tratamento tributário distinto daquele proposto pela essencialidade do produto. Podemos mencionar o desenvolvimento econômico (art. 3°, II e 170, VIII, da CF/88), o acesso à cultura (art. 215, da CF/88) e a promoção da ciência e da tecnologia (art. 218 e seg, da CF/88), entre outros.
No caso em apreço, a tributação do vasilhame tem maior relação com a saúde (art. 196, da CF/88) e com o meio ambiente (art. 225, da CF/88), valores que merecem ser considerados na apreciação da alíquota do IPI.
A literatura específica reconhece com maior ênfase a chamada “salvaguarda ambiental”[8], que permitiria o estabelecimento de alíquotas mais elevadas do imposto, com vistas na proteção do meio ambiente.
Com base neste fundamento, deve o Judiciário ponderar o fator de poluição ambiental causado pelos vasilhames plásticos, na apreciação da alíquota do IPI.
Não é possível defender, contudo, que o valor ambiental seja superior aos demais valores também previstos pela Constituição. Deveras, outros valores de igual estatura merecem igual tratamento e, no caso em apreço, poder-se-ia correlacionar ao próprio meio ambiente o valor da saúde, em virtude do potencial danoso causado pelo descarte dos vasilhames.
Poder-se-ia aduzir que os valores constitucionais seriam melhor alcançados por meio de políticas alternativas diretas, como a reciclagem ou o reembolso pelo vasilhame descartado. Mesmo que outras medidas possam se mostrar mais eficazes que a tributação do IPI, que atua indiretamente, elas não desautorizam a medida tributária extrafiscal e ambas podem, inclusive, coexistir.
Neste particular, o mérito administrativo não pode ser controlado pelo Judiciário, pois a escolha dos meios para proteger o meio ambiente ou promover a saúde cabem exclusivamente ao Poder Executivo.
O Judiciário, portanto, somente poderia rejeitar a medida se frontalmente contrária ao ordenamento jurídico, vedada por dispositivo expresso de lei, não substituir o governo na definição das políticas públicas.
Sobremais, no caso em apreço, a medida atende o requisito de proporcionalidade. Deveras, o efeito tributário concreto da incidência do IPI é proporcional à poluição e ao dano potencial à saúde causados pelos diversos tipos de vasilhame, embora a alíquota seja a mesma para todos estes.
A água vendida na garrafa de meio litro sofre a tributação a cada unidade consumida, pois para cada operação é necessário um vasilhame novo; por outro lado, a água vendida nos galões de 20 litros somente é tributada na primeira compra, voltando a ser tributada apenas quando o galão adquirido pelo contribuinte superar sua longa vida útil.
Assim, a tributação é total nos pequenos vasilhames não reaproveitáveis, como copos e garrafas, e diluída nos garrafões de 10 ou 20 litros, que são reutilizáveis.
O controle da seletividade precisa, ainda, ser realizado de modo sistemático, no contexto de toda a tributação dos produtos industrializados, não apenas na avaliação individual de determinado produto. É necessário levar em conta a estrutura e a lógica da TIPI.
Como asseverou o STF, a essencialidade do produto não implica imunidade e a alíquota imposta a determinado artigo deve ter sua razoabilidade mensurada pela comparação com produtos de essencialidade similar.
Os produtos que mais se aproximam da água são os alimentos, em geral não tributados na TIPI, ou pelo reconhecimento de não incidência (não se tratar de produto industrializado) ou pelo estabelecimento de alíquota zero.
Neste passo, cabe observar que as embalagens dos alimentos, também são tributadas, sejam produzidas de plástico, metal, papelão ou da combinação destes, malgrado o produto principal normalmente seja “não tributado” ou esteja sujeito à alíquota zero.
A título de exemplo, embalagens metálicas são tributadas à alíquota de 10%, como se depreende do texto da posição 7310.21.00, da TIPI vigente.
Não há, portanto, desproporção no estabelecimento de alíquotas positivas sobre vasilhames para água mineral, malgrado a essencialidade do produto principal, pois outros produtos igualmente essenciais também recebem tributação similar indireta.
5. Conclusão
O RE 606.314 RG/PE versa sobre dois pontos principais, a possibilidade de controle judicial do mérito do ato administrativo e a fixação de alíquotas do IPI, face o princípio da seletividade.
O controle judicial do mérito na definição da alíquota seletiva do IPI parece possível, nos limites do caso apresentado, pois não se exige do Judiciário a análise do mérito de ato administrativo de discricionariedade plena, mas limitada, dada a existência de critérios constitucionais que vinculam a administração.
Embora os critérios que orientam a seletividade (essencialidade e capacidade contributiva indireta) apresentem amplitude, vedam ao Executivo o estabelecimento de alíquotas com caráter arbitrário, regressivo e discriminatório, vedações que somente podem ser garantidas pelo controle.
O controle judicial na hipótese específica do IPI, não pode se limitar à apreciação dos critérios clássicos que compõem o princípio da seletividade. Deveras, doutrina e jurisprudência acolhem a possibilidade do uso extrafiscal do IPI, mostrando-se legítimo o manejo das alíquotas com vistas à concretização de valores, como a saúde e o meio ambiente.
Sobremais, os critérios de essencialidade do produto e capacidade contributiva, como já decidiu o STF, não implicam imunidade, de modo que o controle das alíquotas do IPI não pode ser realizado de maneira isolada, considerando-se uma previsão deslocada das demais. Exige-se, ao revés, uma análise comparativa das alíquotas da TIPI para produtos com essencialidade equivalente.
No caso em apreço, a tributação dos vasilhames plásticos para água mineral não destoa da tributação de embalagens para produtos de essencialidade equivalente e coaduna-se com os princípios de proteção do meio ambiente e de promoção da saúde, mostrando-se, portanto, compatível com o ordenamento jurídico.
[1] Hoje o imposto obedece a anterioridade nonagesimal, mas antes da EC 42/2003 o tributo poderia ser majorado imediatamente.
[2] TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito tributário: os tributos na Constituição, vol. IV. Rio de Janeiro: Forense, 2007 e DERZI, Misabel. In. BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
[3] DERZI, Misabel. In. BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
[4] Discricionariedade honesta, como adverte Baleeiro (BALEEIRO, Aliomar. Direito tributário brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2003).
[5] TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito tributário: os tributos na Constituição, vol. IV. Rio de Janeiro: Forense, 2007
[6] BOTTALLO, Eduardo Domingos. Fundamentos do IPI. São Paulo: RT, 2002, MELO, José Eduardo Soares de. IPI: teoria e prática. São Paulo: Malheiros, 2009, PAUSEN, Leandro. MELO, J. E. Soares de. Impostos federais, estaduais e municipais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.
[7] STF, T1, RE 344.331/PR, Min. Ellen Gracie, DJ de 14/3/2003; STF, T1, AI 515168 AgR-ED/MG, Min. Cezar Peluso, DJ de 21/10/2005; STF, T2, AI 630.997 AgR/MG, Min. Eros Grau, DJ de 18/05/2007; STF, T2, RE 429.306/PR, Min. Joaquim Barbosa, DJe de 16/3/2011.
[8] Veja-se: BOTTALLO, Eduardo Domingos. Fundamentos do IPI. São Paulo: RT, 2002 e, no mesmo sentido, MELO, José Eduardo Soares de. IPI: teoria e prática. São Paulo: Malheiros, 2009.
Marcus de Freitas Gouvêa
Procurador da Fazenda Nacional; Mestre em Direito Tributário pela UFMG.