O capital financeiro e a dinâmica da intervenção do Estado na economia

Fernando Facury Scaff

De forma meritória, Gilberto Bercovici, em conjunto com outros colegas, organiza um livro em homenagem a Tadeu de Chiara, docente de direito econômico da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), morto precocemente no início de 2021, e pranteado em texto revelador de sua carreira e dimensão humanística nesta ConJur.

Em conjunto com Lucas Scaff, escrevemos algumas mal traçadas linhas em memória de Tadeu de Chiara, denominadas Entre o discurso e a prática da intervenção do Estado na economia, adotando essa linha de seus ensinamentos:

“A verificação da dominação como condicionamento da situação de liquidez leva a considerar como questão inerente ao estudo da moeda na ordem jurídica a configuração da estrutura do Estado, a revisão da distribuição de suas funções face às linhas que norteiam a sua atuação no cenário econômico de forma geral e, em especial, na gestão da moeda e do crédito. A importância do papel do Estado nesse particular é consequente ao caráter instrumental de que a moeda e o crédito se revestem para a consecução das necessidades do desenvolvimento econômico, e para o equilíbrio da ordem jurídica”

A íntegra do texto ainda será publicada, mas seguem umas pílulas sobre o que nele consta.

Wolfgang Streeck, na obra Tempo comprado — a crise adiada do capitalismo democrático (Coimbra: Conjuntura Actual, 2013) pergunta se as finanças públicas do capitalismo democrático sofrem de excesso de democracia, e aponta que, de certa forma, o sistema econômico acaba blindando as decisões econômicas dos debates democráticos, estabelecendo bancos centrais independentes das oscilações políticas e criando rígidas normas de equilíbrio orçamentário, ou seja, retirando do debate democrático o que se refira aos dinheiros públicos e deixando tal âmbito ao sabor do livre mercado, que como é sabido, não é tão livre assim, e muito menos infenso à política.

Daí a razão da busca por bancos centrais que sejam independentes — porém, independentes em face a quê? Da política submetida aos ritos democráticos, conforme leciona Avelãs Nunes (A institucionalização da união econômica e monetária e os estatutos do Banco de Portugal. Boletim de Ciências Económicas, v. XLV-A, 2002, Coimbra: Coimbra Ed., p. 65-98).

Streeck denomina de justiça contratual aquela que é feita pelos mercados, de acordo com a avaliação que estes fazem dos desempenhos individuais das pessoas físicas ou jurídicas nele envolvidas, tendo o “valor de mercado” como última unidade de produção.

E usa a expressão justiça social como aquela regida por normas legais, e não contratuais, e tem por base “concepções coletivas de honestidade, equidade, reciprocidade”, e concede direitos ao mínimo existencial, independente do desempenho econômico e mesmo da capacidade de desempenho daquele indivíduo ou grupo de indivíduos, atribuindo-lhe vários direitos humanos e fundamentais.

Equiparação de conceitos
Em síntese, embora correndo o risco de equiparar conceitos usados com cerca de 2.500 anos de diferença, pode-se dizer que a “justiça comutativa” de Aristóteles equivale à “justiça dos mercados” capitalista de Streeck; bem como a “justiça distributiva” aristotélica equivale à “justiça social” do alemão.

Assevera Streeck que “o mercado decide aquilo que é justo em termos de mercado, exprimindo-o em preços; aquilo que é socialmente justo decide-se na ponderação do poder, própria dos processos políticos, e exprime-se em instituições formais e informais”.

Exatamente por ser informal e decidida politicamente é que a justiça social/distributiva parece ser sob a ótica dos mercados completamente irracional, imprevisível e arbitrária, que privilegia e compreende apenas a justiça contratual/comutativa. O reverso da moeda encontra-se em quem entende que tais correções políticas distributivas são necessárias para corrigir as relações desiguais entre quem depende do salário e quem depende do lucro.

Afinal, o sistema capitalista pressupõe que os mercados distribuem os recursos segundo regras universais, baseadas em contratos livremente estabelecidos entre as pessoas, sendo que a política distribui os recursos segundo o poder e as relações de influência, discutidas em processos controversos e implementadas ativamente.

Streeck observa a questão da dívida pelo lado da receita pública, isto é pela crise do Estado Fiscal, que desembocou em uma espécie de Estado Endividado, mencionando a concepção doutrinária de que não seria possível fazer com que o Estado funcionasse em prol do interesse público através do sistema tributário, pois os poderosos sempre teriam meios de fugir da carga fiscal, que acabaria sendo arcada pela massa da sociedade, que possui menos recursos disponíveis, o que leva o Estado a cobrir grande parte de suas despesas através de empréstimos obtidos junto ao mercado financeiro.

A explicação de Streeck possui pertinência, quando se verifica pelo menos dois aspectos, um teórico e outro concreto, analisando a realidade brasileira.

Spacca
O aspecto teórico decorre do fato de que o endividamento público é mais indolor e invisível do que a tributação sobre a propriedade e a renda, se assemelhando à tributação que incide sobre o consumo. A população, de quem se arrecada, luta para manter seus recursos em seus bolsos, afastada de qualquer tributação, e luta contra isso pelos meios políticos e jurídicos que dispõe.

Aqui se verifica um direto e imediato confronto entre o interesse individual de cada membro da sociedade e o interesse público e social, que é mediado pela legalidade. Todavia, o endividamento é indolor, pois não alcança direta e imediatamente o bolso de ninguém, e, embora seu pagamento venha a ocorrer futuramente pela sociedade, ele é mediado pelo Estado através do mesmo sistema tributário e usualmente sob a administração de outro governante.

Desta forma a conta é transferida intergeracionalmente na sociedade e entre gestões governamentais. Logo, torna-se mais fácil obter receita pública por meio do endividamento, mesmo que tenha que ser paga no futuro — o que certamente acarretará uma crise em algum momento posterior dessa trajetória.

O aspecto concreto, com os olhos voltados à realidade, pode-se verificar pela análise do perfil das receitas públicas brasileiras, o qual identifica baixa incidência de tributos sobre a renda e sobre a propriedade, sendo mais oneradas as bases impositivas sobre o consumo (e sobre a folha de salários, o que se configura como um absurdo).

Isso comprova o afastamento das bases impositivas mais identificadas com as pessoas economicamente mais aquinhoadas, em detrimento da maioria da população, pois não se identifica capacidade contributiva na tributação sobre o consumo.

Cria-se, desta forma, uma nova dinâmica para a remuneração do capital, amplamente segura, pois ancorada no próprio Estado — e a dívida pública é um refúgio dos mais seguros que existem, se a economia financeira do setor público estiver afastada do jogo de poder democrático, como sói acontecer nos países considerados seguros para os investimentos.

Evidencia-se um confronto quando a massa de investidores se amplia para grandes parcelas da classe média, através de inúmeras formas de poupança financeira (por meio de fundos de pensões e outras formas de investimento pelo sistema financeiro), o qual é também partícipe de uma sociedade desejante de maiores e mais amplos serviços públicos.

Streeck aponta que, “a questão que se coloca a este grupo é a de saber o que lhe seria mais prejudicial: um incumprimento do Estado em relação ‘aos mercados’, que reduziria as poupanças investidas, ou um corte de prestações sociais, para impedir esse cumprimento”. Aqui se estaria defronte de um grupo social intermédio, sob pressão de interesses contraditórios.

Não se pode afirmar, como faz Streeck no âmbito teórico, que no Brasil atual haja tão grande massa de cidadãos de classe média também identificada como investidores. Tudo indica, pelo perfil socioeconômico, que a poupança brasileira é baixa e concentrada em relativamente pequena quantidade de pessoas.

Posição de predominância
Todavia, essa dupla posição dos indivíduos — como investidor e como cidadão —, quando em conflito em caso de escassez de recursos públicos, ocasiona a necessidade de ser assegurado aos investidores da dívida pública uma posição de predominância em face dos cidadãos.

No caso brasileiro, essa dinâmica econômico-financeira funciona por meio de duas metas. A meta de superavit primário, estabelecida anualmente pelo Anexo de Metas Fiscais contido na Lei de Diretrizes Orçamentárias anual, por força da Lei de Responsabilidade Fiscal, estabelecendo o montante que deve ser pago anualmente pelo serviço da dívida.

E a meta de inflação, que é estabelecida pelo CMN (Conselho Monetário Nacional), órgão composto por dois ministros de governo, o da Fazenda e o do Planejamento, e o presidente do Banco Central, que possui mandato fixo. Superávit primário é o resultado positivo de todas as receitas e despesas do governo, excetuando gastos com pagamento de juros, o que faz com que o governo bloqueie ou contingencie o orçamento de investimentos e de gastos sociais em busca dessas metas.

Para que se chegue à meta de superavit primário, é necessário manejar a taxa de juros básica da economia (a taxa Selic), que fica a cargo da diretoria do Banco Central (um órgão denominado Copom — Comitê de Política Monetária, composto pelo presidente e os diretores do BC), em busca do controle da inflação, cuja meta é estabelecida pelo próprio governo federal. Daí que a remuneração do capital (pagamento de juros sobre a dívida pública) está blindada pela autonomia do Banco Central, que pelo manejo da taxa de juros busca alcançar a meta de inflação.

Poderia ocorrer de vir a ser estabelecida pela LDO uma meta de superavit primário menor e pelo CMN uma meta de inflação mais alta, mas, neste caso, os agentes econômicos responderiam de forma estressada, alegando que as contas públicas estariam descontroladas, gerando expectativas econômicas de grande impacto. Isso aponta, na prática, para uma captura do Estado pelos agentes econômicos, que buscam a remuneração mais alta dos recursos disponíveis para investimento no mercado financeiro, hoje financiado pela dívida pública brasileira.

É na disputa entre a arrecadação tributária e a remuneração do capital financeiro por parte do Estado que se trava um dos grandes debates de justiça distributiva no país.

Essa dinâmica financeira está presente em diversos países sob distintos prismas, mas todos vinculados àquilo que se denomina de financeirização do sistema capitalista, que permite aos atuais detentores de capital acumular mais recursos, e, muitas vezes, pagar menos impostos sobre esses recursos. Os esforços para a tributação dessa riqueza vem ocorrendo ao redor do mundo, sendo meritório destacar os pilares que a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) vem propondo para reverter este quadro de injustiça fiscal, dentre outras iniciativas.

O paradoxo está em que, a mesma fração da população que financia o Estado por meio da taxa de juros que remunera a dívida pública, luta para a redução da tributação sobre a propriedade e a renda, fazendo com que o Estado se financie, no âmbito tributário, pela tributação do consumo, que é cobrada indistintamente de toda a população. Com isso, a remuneração do capital investido na dívida pública acaba sendo custeada pela ampla maioria da sociedade, por meio da tributação sobre o consumo, acarretando um efeito perverso e acumulador de capital.

*PS.: estamos seguros que Tadeu de Chiara, se lesse este texto, soltaria sua inesquecível gargalhada e o corrigiria ou acresceria em diversos pontos com sua voz roufenha que expunha o usual agudo raciocínio. Não a escutaremos, pois perdemos o interlocutor sagaz, mas seus ensinamentos permanecem ecoando nos corações e mentes de todos nós, seus sempre alunos.

Fernando Facury Scaff

professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Bentes, Lobato & Scaff – Advogados.

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