O artigo 61 da Lei nº 8.981/1995 e suas controvérsias no Carf (parte 4)

Carlos Augusto Daniel Neto

Na coluna de hoje, daremos seguimento à análise das controvérsias jurídicas envolvendo a aplicação do artigo 61 da Lei nº 8.981/95, que estabelece a cobrança do IRRF de 35% sobre os pagamentos feitos a beneficiários não identificados e em decorrência de operações não comprovadas ou sem causa. Os demais artigos dessa série estão disponíveis aqui (parte 1, parte 2 e parte 3).

Como de praxe, para facilitar a consulta dos nossos leitores, reproduziremos abaixo a parte do artigo relevante à análise, in verbis:

“Art. 61. Fica sujeito à incidência do Imposto de Renda exclusivamente na fonte, à alíquota de trinta e cinco por cento, todo pagamento efetuado pelas pessoas jurídicas a beneficiário não identificado, ressalvado o disposto em normas especiais.
1º. A incidência prevista no caput aplica-se, também, aos pagamentos efetuados ou aos recursos entregues a terceiros ou sócios, acionistas ou titular, contabilizados ou não, quando não for comprovada a operação ou a sua causa, bem como à hipótese de que trata o § 2º, do art. 74 da Lei nº 8.383, de 1991.”

Problemática específica: remessas para o exterior a beneficiários não identificados ou por pagamentos sem causa
Trataremos aqui da situação dos pagamentos/remessas sem identificação do beneficiário ou sem comprovação da causa, realizadas a pessoas físicas ou jurídicas residentes ou domiciliadas no exterior. A controvérsia específica reside no fato de que ambas as situações (pagamento a beneficiário não identificado e pagamentos a residentes/domiciliados no exterior) são hipóteses próprias de IRRF definitivo, com suas alíquotas correspondentes.

O artigo 97 do Decreto-lei nº 5.844/43 (atualmente consolidado no artigo 744 do RIR/2018) estabelece que “sofrerão o desconto do imposto à razão de 15% os rendimentos percebidos: a) pelas pessoas físicas ou jurídicas residentes ou domiciliadas no estrangeiro”, com a possibilidade dessa retenção ir ao montante de 25%, no caso do beneficiário residir em países com a tributação favorecida.

O tema retomou a atenção recentemente em razão das recentes autuações fiscais lavradas no contexto da operação “lava jato”, especificamente em razão das remessas de valores para empresas de fachada no exterior, por intermédio de “doleiros” ou por meio de pagamentos feitos pelas próprias empresas envolvidas, mas a questão não é recente no âmbito do Carf.

Jurisprudência do Carf a respeito
No ac. nº 106-15.823 [1], o relator afirma em seu voto que “a tributação da remessa de valores para o exterior sem comprovação de origem está sujeita à incidência do IRRF, à alíquota de 35%, (…), nos termos do art. 674 do RIR/99”. Nesse caso, entretanto, não há qualquer menção a potencial conflito normativo com as regras relativas à tributação dos valores percebidos por não residentes.

No ac. 107-09.465 [2], que analisava remessas para o exterior apuradas no “Caso Banestado”, é interessante observar que o relator reconhece expressamente que esse pagamento estaria sujeito a um regime específico, mas “deixa de lado” tal questão, senão vejamos:

“Pois bem, deixando de lado o fato de que nas remessas ao exterior, ainda que não se conheça o beneficiário ou a causa, há previsão legal de tributação específica, admitindo-se como correta a aplicação pela fiscalização da tributação exclusiva do art. 61 da Lei nº 8981/95, as saídas de recurso equivalem a um pagamento terceiro, cujo ônus do imposto a lei autoriza a fonte pagadora a assumir”

Na sequência, causa espécie que ele se limite a enfrentar o ponto da decadência, sem retomar a correção ou não da aplicação do IRRF de 35% ao caso.

No ac. nº 1301-003.898 [3] analisou-se a cobrança do IRRF de 35% sobre remessas para o exterior, dissimuladas sob a forma de pagamentos de importações, realizada por meio de doleiros que, no contexto do caso, utilizavam-se de empresas de fachada no exterior para simular operações de importação com o Brasil, recebendo os valores e repassando aos reais beneficiários no exterior.

Spacca
Apesar disso, também não se abordou, nesse caso, o conflito com as regras de IRRF de pagamento a não residentes — no mérito, discutiu-se apenas a natureza sancionatória do IRRF de 35%, já por nós enfrentado anteriormente. O mesmo contexto fático está presente no ac. nº 1201-002.509 [4], também sem que a questão ora suscitada tenha sido enfrentada.

O ac. 1201-006.825 [5] averiguou a cobrança de pagamentos feitos para o exterior a título de reembolso, sem que fosse comprovada a efetividade do serviço prestado, ensejando a cobrança do IRRF de 35%, em razão do pagamento sem causa. Nesse caso, afastou-se a cobrança do IRRF do artigo 61 da Lei nº 8.981/95 por se entender que a fonte pagadora, no Brasil, já havia identificado os beneficiários, quando da remessa dos valores, bem como havia recolhido o IRRF em razão da condição de não residente deles, e que ainda que esses beneficiários repassassem tais valores a outras empresas ligadas no exterior, isso estaria fora da jurisdição fiscal brasileira. Apesar de afastar a cobrança do IRRF (35%) nesse caso, o voto focou mais no ponto da identificação do beneficiário do que na ausência de causa dos pagamentos.

O tema chegou a ser tangenciado pela 1ª CSRF, ao analisar recurso especial contra o ac. 1301-003.898, que visava à redução da multa qualificada. No ac. 9101-006.307 [6], a redatora designada aduziu que havia uma causa simulada nas remessas ao exterior, que ocultaria o ilícito de “evasão de divisas” sob a forma de pagamento pela importação de bens (não sujeito, em regra, à incidência do IRRF), razão pela qual se entendeu que haveria fraude tributária no caso. O voto vencedor adota, ainda que a título de obter dictum, uma preponderância do IRRF do artigo 61 da Lei nº 8981/95 sobre aquele referente às remessas para o exterior, verbis:

“Em tais circunstâncias, o fato de as remessas restarem sem causa e sem beneficiário identificados quando afastada a simulação praticada pelos sujeitos passivos, a ensejar incidência na forma do art. 61 da Lei nº 8.981/95, e não sob a alíquota ordinária de remessas ao exterior, não se preta a afastar o dolo presente na ocultação da real causa e do verdadeiro beneficiário destas remessas. Tivessem a causa e o beneficiário dos pagamentos no exterior sido demonstrados e poder-se-ia cogitar da incidência limitada à alíquota de operações regulares de remessa ao exterior. Sem isto, correta a incidência sob alíquota majorada na forma do art. 61 da Lei nº 8.981/95, que em nada obsta a qualificação da penalidade.”

Análise crítica da jurisprudência
Como se viu, apesar da recorrência do tema, o conflito normativo entre o artigo 61 da Lei nº 8.981/95 e o art. 97 do DL nº 5.844/43 praticamente não foi explorado pela jurisprudência do Carf, ou pelo menos não como ratio decidendi dos julgados.

Como tratamos no primeiro artigo dessa série, Rubens Gomes de Sousa já explicara que o IRRF nas remessas para o exterior, que compunha o rol das primeiras hipóteses de tributação exclusiva na fonte, era fundamentada no fato de o beneficiário estar fora do alcance da lei brasileira, justificando a tributação na fonte pagadora [7].

A lógica dessa tributação para não residentes se baseia na irrelevância, ou mesmo ignorância, para o Estado brasileiro, a respeito de aspectos pessoais do beneficiário que não está sujeito à jurisdição brasileira (não obstante a recente e equivocada decisão do STF ao julgar o Tema 1.174 de Repercussão Geral).

Em uma interpretação histórica da norma encampada pelo artigo 61 da Lei nº 8981/95, a tributação de pagamentos sem causa ou a beneficiário não identificado vem originalmente do artigo 2º da Lei nº 3.470/58, que dispunha sobre pagamentos a título de comissões, bonificações e semelhantes.

Posteriormente, a Lei nº 4.154/62, no artigo 3º, §2º, tratou do tema em relação ao pagamento de rendimentos de títulos ao portador, quando ele não se identificasse, e o § 3º regulou os pagamentos sem causa feitos por sociedades anônimas. Entretanto, aqui vale observar que o artigo 3º, §2º, da Lei nº 4.154/62 ressalvava que aquele IRRF não serviria para base de reajustamento do imposto devido pelos residentes ou domiciliados no estrangeiro.

O que se depreende, do referido dispositivo, é que as regras estabelecidas para tributar pagamentos a beneficiários não identificados não deveriam afetar o regime de tributação dos não residentes, previsto em regra própria.

O RIR/1980, em seu artigo 570 [8], a pretexto de consolidar, ampliou ilegalmente o alcance dessa regra para qualquer pagamento feito por sociedade anônima para beneficiário não identificado ou sem causa. Essa redação veio a ser “legalizada” apenas em 1995, com o artigo 61 da Lei nº 8.981/95, que deixou de fazer referência às sociedades anônimas, passando a abranger todas as pessoas jurídicas.

Olhando o histórico do dispositivo, se verifica que desde a Lei nº 4.154/62 já existia uma ressalva específica de aplicação desse regime de IRRF, no caso de pagamentos a não residentes. Essa exceção já existente provavelmente foi a raiz da redação atual do artigo 61 da Lei nº 8.981/95 estabelecer que o IRRF seria cabível, “ressalvado o disposto em normas especiais”, para tratar especialmente de situações nas quais as mesmas materialidades estariam sujeitas simultaneamente a mais de uma regra de retenção definitiva na fonte.

Pela leitura do artigo 61, verifica-se que ele é uma “ultima ratio” da tributação na fonte de pagamentos feitos. Em outras palavras, ele será aplicável somente quando o pagamento não esteja sujeito a nenhuma outra regra específica de retenção na fonte.

Esse racional faz sentido diante das próprias hipóteses legais do IRRF definitivo, muitas delas que decorrem exatamente da desnecessidade de identificação do beneficiário do pagamento, como a tributação dos títulos ao portador (artigo 96 do DL nº 5.844/43) ou de prêmios em geral (artigos 732 e 733 do RIR/2018). Caso o IRRF do artigo 61 tivesse preponderância sobre outras hipóteses, no caso de conflito, como inferido do obter dictum do ac. nº 9101-006.307, então nesses casos mencionados deveria ser aplicada alíquota de 35%, e não as suas próprias, fazendo letra morta da ressalva do caput do artigo 61 da Lei 8981/95.

Isso foi corretamente observado, por exemplo, no ac. 9202-003.470 [9], que analisou o pagamento de prêmios de sorteios (por meio de máquinas operadas pelo contribuinte) a beneficiários não identificados. Entendeu o colegiado, com razão, que o artigo 61 (então artigo 674 do RIR/99) ressalva expressamente a sua aplicação quanto a pagamentos que, mesmo que realizados a beneficiários não identificados, estariam sujeitos a uma regra mais específica de incidência, delimitando assim o caráter residual do seu alcance.

Esse mesmo entendimento, do caráter residual do IRRF do artigo 61, já havia sido assumido pela 1ª CSRF no ac. nº 9101-001.845 [10], ao analisar o pagamento de prêmios por vídeo-loterias a beneficiários desconhecidos, aduzindo que “o art. 61 da Lei nº 8.981/95, ao instituir uma tributação mais onerosa para os pagamentos a beneficiários não identificados (…) ressalvou a aplicação de normas especiais”.

Conclusão
Conforme analisado acima, o artigo 61 foi criado para ser um “soldado de reserva”, alcançado situações que não estivessem atingidas por outras regras específicas, incidentes sobre a mesma situação jurídica — especialmente em se tratando de outras hipóteses de retenção definitiva na fonte, e mais ainda quanto os pagamentos a não residentes, cuja ressalva se origina desde os dispositivos que originaram a regra atual.

Nos casos em que o Carf se debruçou especificamente sobre o conflito normativo entre o artigo 61 da Lei nº 8.981/95 e outras regras de tributação na fonte, verificou-se que as câmaras superiores deram efetividade ao seu caput, preservando a eficácia das regras especiais, em desfavor do próprio artigo 61. Pelos acórdãos analisados, observa-se que esse conflito normativo não foi suscitado, tampouco enfrentado, de maneira direta nos casos em que o conflito se dá com as regras de tributação das remessas para não residentes.

Não nos parece haver, nesse sentido, qualquer razão jurídica para que a ressalva do caput do art. 61 seja flexibilizada para as regras de tributação de remessas para não residentes, ou para qualquer outra regra de tributação na fonte que com esse artigo conflite. Poder-se-ia argumentar que a ressalva quanto ao disposto em normas especiais não se aplicaria aos casos do artigo 61, §1º, relativos aos pagamentos sem causa, mas essa nos parece ser uma interpretação extremamente forçada, visto que ela adota “a incidência prevista no caput”, i.e., o âmbito de alcance do caput, incluindo aí também a sua restrição e seu caráter residual, sob pena de se criar um parágrafo com alcance mais amplo do que o seu caput.

O tema ainda precisa ser enfrentado de maneira clara pelo Carf, consolidando assim o caráter residual da cobrança do IRRF de 35% sobre os pagamentos sem causa ou a beneficiários não identificados. Nas hipóteses de remessa a beneficiário no exterior, devem prevalecer as regras próprias do artigo 744 do RIR/2018, pela sua especificidade, sobre o regime residual do artigo 61 da Lei nº 8.981/95.

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[1] J. 20/09/2006

[2] J. 14/08/2008

[3] J. 15/05/2019

[4] J. 20/09/2018

[5] J. 11/06/2024

[6] J. 15/09/2022

[7] SOUSA, Rubens Gomes de. Compêndio de Legislação Tributária. Rio de Janeiro: Edições Financeiras, 1952, p.213.

[8] Art. 570. Estão sujeitas ao desconto do imposto na fonte, à alíquota de 40% (quarenta por cento), as importâncias declaradas como pagas ou creditadas por sociedades anônimas, quando não for indicada a operação ou a causa que deu origem ao rendimento e quando o comprovante do pagamento não individualizar o beneficiário (Lei nº 4.154/1962, art. 3º, § 3º, e Decreto-Lei nº 157/1967, art. 19).

[9] J. 10/12/2014

[10] J. 10/12/2013

Carlos Augusto Daniel Neto

é sócio do escritório Daniel & Diniz Advocacia Tributária, com estágios pós-doutorais de pesquisa na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e no Max-Planck-Instituts für Steuerrecht und Öffentliche Finanzen (MPI), doutor em direito tributário pela USP (Universidade de São Paulo), mestre em direito tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, professor permanente do mestrado profissional do Cedes, do IBDT e da Apet.

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